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[Conteúdo] A donzela guerreira por Walnice Nogueira Galvão

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5 minutos de leitura

Trecho do livro A donzela-guerreira: um estudo de gênero

IV Patrícias Façanhudas

Rico é o acervo brasileiro de mulheres de ação e brio, como as de São Paulo de Piratininga que se recusaram a acolher os maridos derrotados e os obrigaram a voltar ao front, após o episódio do Capão da Traição na Guerra dos Emboabas, reencenando sem o saber o gesto de Lisístrata às avessas. A índia Clara Camarão cavalga de lança em punho ao lado do esposo índio nas guerras de expulsão dos holandeses de Pernambuco, na descrição coeva de O valeroso lucideno. Foi lá também que se tornou legendário o feito das defensoras de Tejucupapo, rechaçando o inimigo apesar das parcas forças e recursos. Todavia, desapareceu a memória de outra índia guerreira, tão índia quanto Clara Camarão, só que lutava contra os brasileiros ao lado do invasor holandês.

Ainda em nosso século, as guerreiras estiveram de novo sob as atenções, devido a sua participação no cangaço. Hobsbawn, no apêndice à segunda edição de Bandits, fala de algumas, tentando uma classificação em que identifica três casos. O primeiro é o da guerreira-consorte, como Maria Bonita, que é esposa e mãe, cozinhando e costurando enquanto segue o marido na vida fora-da-lei. O segundo distingue as mulheres de apoio logístico, que ficam fora do bando. E o terceiro é o das guerreiras propriamente ditas, de que menciona alguns nomes, especialmente nos Balcãs, no Peru (onde atuou a famigerada Marimacho) e na Espanha, todas elas renomadas pela perícia nas armas e pela bravura.

Os estudiosos que voltaram sua atenção para o cangaço não puderam fugir ao interesse que lhes despertaram tais mulheres. Numa vida tão dura, sua fortaleza de ânimo costuma ser exemplar, conforme ficou registrado a respeito de Dadá. Quando seu marido Corismo esmorecia e pensava em abandonar o cangaço, após a morte de Lampião, ela o repreendia asperadamente: “Passe pra cá as calças que eu te dou minha saia!”.

Alguns dentre eles estenderam suas investigações particularmente às mulheres, por meio de entrevistas com antigos membros dos bandos, dentre os quais se destaca, pela agudeza e inteligente, esta mesma Dadá. Assim foi que Estácio de Lima recompôs um excelente quadro da vida das mulheres que lutaram no cangaço.

Há que considerar, todavia, que a donzela-guerreira completa, armada e vestida de homem, aparece com tal profusão que quase se pode enxergar um pouco e afirmar ser difícil ter notícia de uma guerra sem a participação de uma mulher disfarçada. Deborah Sampson, natural de Boston, lutou nas campanhas pela independência norte-americana, só foi descoberta quando ferida, ganhou e patente de tenente e foi condecorada. Também soldado foi Rosa La Bayamesa, reverenciada hoje em Cuba, heroína da guerra de libertação nacional de 1868 contra os espanhóis, ex-escrava que se tornou capitão, fundadora de um hospital de sangue onde utilizava seus conhecimentos de ervas medicinais para tratar feridos. Mais tarde, inspirou e deu o nome aos pelotões femininos de combate e, Sierra Maestra. Semelhante à Mu-lan chinesa, hoje cultuada como heroína nacional, é a Visilissa defendendo seu país contra a invasão dos cavaleiros teutônicos no século XIII, a quem, o filme Alexandre Nevski, Eisenstein não  costa as longas tranças, embora ela envergue a armadura e vá à guerra para vingar o pai executado pelo inimigo. Esta se casa, mas só depois de cumprida a tarefa. Uma outra Vasilissa atuará na expulsão da Grande Armée em 1812: Tolstoi a ela alude de passagem em Guerra e Paz.

[…]

No caso do Brasil, acontecem coisas curiosas. Assim, por exemplo, Anita Garibaldi, segundo a classificação de Hobsbawn, é mais propriamente uma guerreira-consorte, acompanhando o marido, tendo filhos, etc. Em suas Mémórias, Garibaldi mostra-a, é claro, vestida de homem, acompanhando-o em campanhas aqui, na Guerra dos Farrapos, e no além-mar, nos fastos da tardia unificação italiana. Nas batalhas navais, lá está ela de espada na mão ou acendendo e disparando um canhão.Nas batalhas terrestres, participava a cavalo, mas não exatamente como guerreira. Uma vez, no Sul, um disparo arrancou-lhe o chapéu e um chumaço de cabelo, caiu prisioneira e fugiu a cavalo. Hoje tem uma estátua em Ravena.

Entretanto, se tomarmos uma biografia romanceada, notamos que os traços da donzela-guerreira se acentuam, a personagem imaginária impondo-se à histórica, sem sequer faltar o lane do corte dos cabelos – só que aqui é ela quem, enciumada, costa os cabelos do marido.

Também a brasileira do Rio de Janeiro, Maria Úrsula de Abreu e Lencastre, estudada por C.R. Boxer no livro citado, fugiu de casa aos 18 anos e assentou praça em Lisboa em 1700, servindo da Índia durante doze ou catorze anos e como sempre, sobressaindo pela valentia. Mais tarde, D. João V fez-lhe mercê do Paço de Pangim e ela veio a casar com o governador do Forte de São João Batista, em Goa. Consta que nunca mais voltou a envergar os trajes de seu sexo. É ela a personagem central do romance de Gustavo Barroso, A senhora das Pangim.

Como Maria Úrsula, são donzelas-guerreiras perfeitas, completas, das que vão à guerra vestidas de soldado e de cabelos cortados, tanto Maria Quitéria nas lutas da Independência quanto Maria Curupaiti e Jovita Alves Feitosa na Guerra do Paraguai.

 

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FONTE: Galvão, Walnice Nogueira. A donzela-guerreira: um estudo de gênero. São Paulo: Senac, 1998, p. 81-4.

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