Como Malcolm X, Fanon acredita que a luta pode tomar diferentes formas, entre as quais, a mais aterrorizante de todas, a resistência armada, nunca deve ser descartada. Na verdade, ela deve ser usada para que o colono entenda a gravidade da situação.
Lewis R. Gordon, Fanon e a crise do homem europeu –
Um pensamento político da emancipação negra
Não é óbvio considerar que existiria um “pensamento político negro”; e, aos olhos de alguns, é ainda menos óbvio que o que poderia definir tal pensamento mereça nosso interesse. A hipótese que este texto pretende colocar à prova é a de que os percursos intelectuais de figuras tão diferentes, como o afro-americano Malcolm-X e o martiniquense, morto argelino, Frantz Fanon, apresentem algumas semelhanças essenciais. Analogias que não se prendem imediatamente à cor de suas peles, mas às consequências comuns que essa cor implica em qualquer região dominada pela hegemonia do privilégio branco.
Apesar das biografias desses dois ativistas serem completamente incomparáveis, o mesmo para as suas ações e seus modos de intervenção, seus respectivos percursos apresentam algumas semelhanças que nos fazem pensar. Tais semelhanças não se limitam à banalidade do fato que salta aos olhos, ambos nasceram em 1925 e faleceram de forma prematura na primeira metade dos anos 1960, justamente quando eles se estabeleciam em seus caminhos. Mais importante é o fato que os dois sofreram racismo em diferentes regiões do mundo, e que ambos fizeram dessa situação um tema de pensamento e ação. Primeiramente, eles tentaram escapar desse mal se engajando em processos, quase terapêuticos, de revalorização identitária. Fanon descreve em sua primeira obra, Pele negra, máscaras brancas, a sedução que exerceu sobre ele o discurso da negritude, o primeiro a oferecer aos antilhanos negros um espelho elogioso. É a mesma função de reparação narcísica que teve, para Malcolm X, seu pleno engajamento junto à Nação do Islam, grupo religioso e político que defendia a divindade negra e o caráter demoníaco dos brancos. Mas ambos abandonaram o entusiasmo de um “racismo antirracista” [1], certamente indispensável, subjetivamente, à reconquista de uma humanidade negada, mas sempre estéril em última instância.
Em grande parte, é a mesma identificação com as lutas de liberação do terceiro mundo – associada, no caso de Malcolm, à uma descoberta do Islam histórico – que os conduziu, desde a afirmação identitária negra, à identificação da universalidade das políticas emancipatórias das quais os negros devem ser beneficiários legítimos, mas não mais exclusivos. Ao analisar esta sequência, contudo, há que se ter cuidado com uma representação eurocêntrica que veria nela algum progresso do Iluminismo conduzindo naturalmente os negros das suas irrisórias particularidades para verdades gerais que mais ou menos constituem a Europa. A posição aqui defendida é, pelo contrário, que é no resultado de uma crítica radical ao pensamento político europeu e aos seus fetiches que reside a verdade comum dos compromissos de Malcolm e Fanon. A sua principal realização, que constitui um legado essencial para qualquer abordagem decolonial atual, é a identificação e desconstrução dos fundamentos do pensamento político hegemônico branco moderno. E é precisamente em momentos de transição, ou de alternância entre o particular e o universal, que podemos observar isso com mais clareza.
É preciso, portanto, nesses dois percursos, revelar um dos comandos fundamentais do pensamento de emancipação negra. É sempre necessário combater em dois frontes: um fronte exterior, e um fronte interior. É o que mostraram não somente figuras da diáspora como Malcolm e Fanon, mas também muitos filósofos do continente africano, entre os quais Fabien Éboussi-Boulaga, Marcien Towa ou Stanislas Adotevi. No fronte externo, temos o colonialismo racista, supremacista branco, que não para de ofender os negros e os colonizados. Mas, no interior das comunidades afro-descentes, a tentação de derrubar o homem branco do trono da raça superior, não para incendiá-lo, mas para ocupar o seu posto, deve ser objeto de uma grande vigilância. O problema é, além disso, que os racistas brancos não pensam duas vezes em usar essas posições racistas a seu proveito. Entretanto, a herança deixada pela tradição decolonial negra dita que tais perigos não devem restringir a autocrítica; mas, da mesma forma, a autocrítica não deve nunca se sustentar pela via de uma denúncia sem concessão da opressão racista e colonial.
Fetichismo da unidade/tabu da separação
Para avaliar bem a singularidade de uma teoria política ou de uma filosofia social, o único método possível é avaliar ao que ela se opõe e com o que ela rompe. Ora, não foi suficientemente enfatizado que abordagens como as de Fanon e, principalmente, de Malcolm X, propõem uma mudança de olhar em relação ao conjunto da tradição europeia dominante. Essa tradição fez da guerra civil uma assombração da ordem política, seu aspecto absoluto, a ameaça mais duvidosa que poderia levar a sua destruição. Se, no direito romano, bellum civile designa uma guerra simétrica que opõe dois exércitos comuns, a modernidade provoca uma mudança nesse sentido. Portanto, insistimos mais no caráter civil do que na dimensão guerreira, e o critério de definição seria o engajamento de civis no conflito. Enquanto observamos as guerras entre estados e os dissociamos dos sempre eventuais “crimes de guerra”, que seriam apenas excessos lamentáveis, a guerra civil é tradicionalmente considerada como criminosa em si. Ela é descrita como a abolição do caráter criminoso do assassinato, conduzindo à sistematização do fratricídio, à dilaceração interna da cidade ou da nação, que se tornam, elas mesmas, uma guerra imensa. Para Thomas Hobbes, o grande filósofo e pensador da guerra civil do século XVIII, a tarefa do soberano é de impedir qualquer estado de guerra entre homens e, pelo medo, assegurar a unidade da República. [2]
Aos olhos de Malcolm e Fanon, essa definição de guerra civil como mal absoluto, tal como um urubu sobrevoando o corpo político, tem por consequência uma fetichização de sua unidade. Essa expressão, fetichização, deveria ser entendida pelo sentido de Marx, como omissão da origem, construída, da unidade, que faz com que ela seja tratada como uma realidade indubitável, autônoma e deduzida da história. Ora, o escândalo da guerra civil, o tabu de toda divisão interna do corpo político, é o que garante que a situação das minorias raciais oprimidas não poderá ser pensada como deveria ser. De fato, a ameaça ideológica, isto é, imaginária, de guerra civil, por sua vez, tranquiliza a sociedade quanto à sua harmonia e à natureza pacífica da ordem vigente. Esse fetichismo da unidade é uma forma de conjurar os maus do mundo social que existe de fato, de recusar encará-lo diretamente, pois não está em uma situação declarada de guerra civil
“Não, eu não sou americano. Eu sou um dos 22 milhões de negros que são vítimas do americanismo. Um dos 22 milhões de negros que são vítimas de uma democracia que não passa de uma hipocrisia fantasiada.” [3]
A guerra civil (subterrânea e não dita) não é o que ameaça a unidade da nação: é o que mantém sua ilusão. A separação, eis o tabu, no sentido psicanalítico do termo, o mais fundamental da política europeia, seu interdito último, visto que a guerra civil é compreendida como a separação da cidade consigo mesma. Mas é essa concepção que a permite não ver que essa separação, sob a forma de um racismo sistêmico, existe de fato na realidade. É assim desde as pretensas “grandes navegações”: a guerra contra populações definidas como desprovidas de Estado, e, portanto, de consciência, que não podem constituir uma guerra real, as tropas coloniais estavam livres para passarem dos limites. O filósofo e historiador do direito Carl Schimitt, conhecido por seus pensamentos nazistas, se felicita, aliás, pela soma impressionante que ele consagra à história do direito das pessoas (ou seja, ancestral do direito internacional) [4]. Se, é claro, as situações às quais são confrontados Malcolm X e Fanon não são mais como essa, os colonizados dos quais eles acompanham as lutas ainda são seres de segunda categoria, são o foco de uma guerra silenciosa, inominável, e, portanto, interminável. Quebrar o tabu e extinguir a questão da separação, é exigir que o real seja encarado como ele é, e não fantasiado de ideologias consoladoras. Malcolm X entendia isso como ninguém:
Segregação, ou seja, [que o homem branco] te distancia, mas não ao ponto em que você escaparia de sua jurisdição; separação, ou seja, que você não está mais lá. O homem branco aceitará mais facilmente te integrar que admitir seu direito à separação.” [5]
Essa fórmula, sozinha, resume a relação do pensamento político branco colonialista com suas minorias, mostrando a semelhança que existe entre integração e segregação. São duas modalidades de pertencimento à jurisdição branca. Malcolm, como Fanon na conclusão de seu livro testamento, Os condenados da terra, nos convida a pensar a questão do racismo para além da metafórica acordada da inclusão e da exclusão, do desprezo e do reconhecimento.
O problema dos negros, segundo a abordagem da emancipação negra, é justamente que eles são integrados, enquanto subalternos, em um sistema colonial determinado pelo privilégio branco. Exigir a sua maior integração, portanto, é exigir que sejam capturados ainda mais fortemente pelo racismo. A familiaridade da segregação e da integração é devida ao fato que se tratam de duas modalidades de tomada de vidas, visto sua inserção em um organograma racista e colonial. O que Malcolm descreve sobre o plano do colonialismo interior vai de encontro às observações fanonianas sobre o colonialismo de povoamento que galopava na Argélia:
“As estruturas criadas, as instalações portuárias, os aeródromos, a proibição da língua árabe passavam a impressão que o inimigo se engajava, se comprometia, perdendo-se nas suas presas para tornar impossível qualquer ruptura eventual, qualquer separação”. [6]
Como vê quem sabe ler nas entrelinhas, os métodos da segregação e da integração não são excludentes, eles se misturam e se imiscuíam na política colonial. A primeira espacializa a hierarquia racial, como em todas as cidades coloniais nas quais alguns bairros ou prédios são estritamente proibidos aos colonizados. A segunda, por assim dizer, temporaliza a hierarquia: ela transforma os indígenas em retardatários na grande cadeia da evolução dos costumes e do intelecto. Por isso, eles têm de ser pacientes ao entrarem na escola dos brancos; por exemplo, trocando o árabe pela língua francesa. Malcolm, falando do contexto norte-americano, o confirma:
“Eles dizem que nós não estamos prontos para viver em uma casa decente, que nós não estamos prontos para frequentar uma escola decente ou que nós não estamos prontos para ter um trabalho decente.” [7]
A armadilha identitária
A separação pode ser compreendida de várias formas, e é evidente que durante o essencial de seu percurso junto à Nação do Islã, Malcolm X reivindica a fundação de um império de cor no centro, ou ao lado, do império branco. Um projeto assim, com razão, parece tão irrealista em suas ambições quanto perigoso em relação ao que essas ambições implicam. Mas, mesmo depois de sua ruptura com a NoI e com sua ideologia, ele continua a usar o termo “separação” em um sentido mais amplo. Se ele o abandonará, seria talvez no meio, em que recusa tanto a segregação como a assimilação, e onde a palavra perde seu valor literal para funcionar como uma metáfora, que essa noção de separação se revela a mais fecunda, em virtude de seu borrão. O que quer dizer separação, então, não é mais a rejeição dos brancos, mas a rejeição da jurisdição branca sob todas as suas formas. [8] Numa linguagem mais contemporânea, poderíamos falar da recusa conjunta da ideia de uma “cultura de referência” hegemônica, de uma parte, e de um multiculturalismo indigente e subserviente do outro.
Nesse sentido, Fanon mostrou, segundo uma lógica à qual Malcolm poderia subescrever sem reservas, que uma das armadilhas da política colonialista consistiu em colocar o problema do racismo em termos de um defeito de reconhecimento de uma comunidade dita minoritária pela comunidade dita majoritária. São posições de gênero que encontramos hoje em um teórico político socialdemocrata como o alemão Axel Honneth, que afirma que “a integração social de uma comunidade política apenas pode se realizar plenamente na medida em que ela encontra um terreno favorável nas relações recíprocas mantidas tradicionalmente pelos membros da sociedade” [9]. De um ponto de vista fanonista, isso significa que, de um lado, reconhecemos que existem indivíduos localizados em posição de subalternidade em razão da organização social presente; mas, por outro lado, que a saída de tal situação deve acontecer segundo as exigências daqueles que são responsáveis por ela. Em outras palavras, a sociedade colonial, ao mesmo tempo que defende o reconhecimento da alteridade, reconhece apenas a si mesma, sob a aparência factível do outro: ela se observa num espelho, ergue seu narcisismo. Para Fanon, tal dispositivo não poderia causar outra coisa senão a alienação dos negros. O indígena é alienado pelo seu próprio desejo de pertencer a isso que o inferioriza, ou seja, a “sociedade burguesa”:
“A alienação intelectual é uma criação da sociedade burguesa. E eu considero sociedade burguesa toda sociedade que se esclerosa em formas determinadas, proibindo toda evolução, todo caminho, todo progresso, toda descoberta. Eu chamo sociedade burguesa uma sociedade fechada na qual não faz bem viver, na qual o ar é podre, as ideias e as pessoas em putrefação. E eu acredito que um homem que toma posição contra essa morte é, de certo modo, revolucionário.” [10]
A oposição radical à essa podridão burguesa da vida e do pensamento que nasce de um fetichismo da unidade, de um sonho de auto-referencialidade de um corpo social no qual trocamos o que já temos, recebe o nome de separação em Malcolm X e Fanon. Como demonstra Sadri Khiari, para Malcolm, o islã foi uma peça constitutiva dessa reflexão.
“Sua liberação pelo islã se opera em dois tempos. O primeiro momento é o do auto reconhecimento que o destino da decadência moral e social […] O segundo é o do conhecimento que o reinsere no mundo e lhe explica as razões do seu declínio.” [11]
Ao reconhecimento como integração condicional, como captura pela jurisdição branca, se opõe, antes de tudo, uma revalorização de si próprio e dos seus, um reconhecimento recíproco baseado na partilha das mesmas experiências negativas, e numa participação ética igual numa economia de doação (na medida em que o colonialismo priva os nativos da sua capacidade de doação: o mestre é sempre aquele que dá, aquele que concede doações) [12]. Mas também, através do conhecimento, da abertura à exterioridade.
A possibilidade da crítica e o uso autônomo do pensamento deve assim tomar o lugar da aceitação passiva da ordem atual e da falsa evidência que cada nação colonial segrega, a própria negação do conhecimento. Em suma, a partilha e o conhecimento são melhores do que o reconhecimento por parte dos mestres.
Como podemos ver, é essencial, e Malcolm X insiste explicitamente nisto, não compreender o slogan da separação como uma repetição negra da segregação. É do domínio do poder branco que nos devemos separar, não dos indivíduos. A fórmula separatista, pelo seu próprio escândalo, é uma revelação incomparável do carácter predatório da ordem política branca e da sua obsessão auto-conservadora.
O apelo à separação é um convite à autonomia e a uma compreensão da posição fundamentalmente alienada dos negros na sociedade burguesa, na qual a unidade sempre foi uma mentira. Afirmar e reafirmar essa unidade é afirmar e reafirmar que os colonizados, os negros e os indígenas, são coisas, que eles não existem como seres políticos e que a violência que os atinge não atinge ninguém.
Organização ou profetismo?
Ora, os negros não são nada. A ambição de Malcolm e Fanon é destruir a ilusão unitária, trazer à tona as contradições e escândalos que operam na ordem social. Como salienta o filósofo afro-americano e pastor Cornel West, retomando os conceitos de Antonio Gramsci, Malcolm era um intelectual orgânico no sentido preciso de se propor a si próprio a tarefa de trazer para o espaço público uma palavra contra-hegemônica destinada a levar o grupo com o qual decidiu estar em sintonia (neste caso: o dos negros) a uma tomada de consciência da sua situação social. [13]
Mas, acrescenta ele, Malcolm não era um organizador, nem um homem de aparelhos. Ele carregava uma palavra profética. Estava convencido de que tal palavra, identificando os males essenciais da sociedade, era capaz de fortalecer politicamente os seus ouvintes, de os inspirar a novas formas de vida, e mesmo a uma nova ética:
“Para mim, se as pessoas tiverem uma compreensão completa da sua situação e de suas causas essenciais, criarão a sua própria agenda; quando as pessoas criam uma agenda, há ação.” [14]
Este otimismo relativo não foi partilhado por Fanon, que dedicou parte do seu trabalho como escritor a uma reflexão sobre as formas de organização da política revolucionária no Terceiro Mundo, e mais particularmente na África. Mais uma vez, os contextos são diferentes, mas como Malcolm pretendia inspirar-se na política antitética africana, a comparação não é incongruente. Fanon identifica duas formas possíveis de organização política anticolonial:
“Enquanto em muitos países coloniais é a independência adquirida por um partido que gradualmente informa a consciência nacional difusa do povo, na Argélia é a consciência nacional, as misérias e os terrores coletivos que tornam inevitável que o povo tome o seu destino nas suas próprias mãos”. [15]
Para Fanon, existem portanto dois paradigmas de funcionamento de um partido de libertação nacional. O primeiro, centrado num papel de prescrição e constituição da consciência nacional, parece evocar as abordagens de grandes líderes africanos como o primeiro presidente do Gana, Kwame Nkrumah, ou o da Tanzânia, Julius Nyerere, que ambos pensaram na necessidade bem como nos limites de um despertar da consciência nacional dos povos colonizados. [16]
O segundo paradigma, que se refere à Frente Argelina de Libertação Nacional, é mais tradicional, e a descrição dada por Fanon faz lembrar formulações do tipo leninista: o partido é a concentração da força da classe explorada. Em Os condenados da terra, ele assinala que é necessária uma composição destes dois paradigmas para politizar as massas desumanizadas pelo sistema racial, cuja espontaneidade, se não for devidamente canalizada, pode ter consequências desastrosas.
No entanto, seria errado omitir o fato de que a conclusão deste último livro, as últimas palavras de Fanon, reacende a chama da palavra profética negra. Assim, começamos estas poucas páginas:
“Venham, camaradas, é melhor decidir agora mudar de rumo agora. A grande noite em que fomos mergulhados, temos de nos livrar dela e emergir. O novo dia que já está a amanhecer deve encontrar-nos firmes, sábios e resilientes. Temos de deixar para trás os nossos sonhos, as nossas velhas crenças e as nossas amizades de antes. Não percamos tempo em litanias estéreis ou em mímicas nauseabundas. Deixemos esta Europa que nunca deixa de falar do homem enquanto o massacra onde quer que o encontre, em cada esquina das suas próprias ruas, em cada canto do mundo.” [17]
Neste discurso final, Fanon dá sentido à ligação entre os colonizados de dentro e os colonizados no sentido literal, aqueles cuja raça foi utilizada como pretexto para a pilhagem de terras, propriedades e corpos. Como dirá Malcolm:
“Temos um inimigo comum. Temos isto em comum: o mesmo opressor, o mesmo explorador e o mesmo discriminador.” [18]
O lirismo da palavra testamentária de Fanon é um lembrete de que o fetichismo da unidade nacional não pode ser combatido através da consagração de um fetichismo de organização. Para usar uma metáfora cara a Malcolm, o coletivo organizado é um rastilho, e a população discriminada é o barril de pólvora. Essa vanguarda, mesmo que reduzida, tem os meios para desencadear grandes desordens.
Mas é preciso acrescentar que a ligação entre o pavio e o barril não é evidente por si mesma. Fanon e Malcolm sugerem que uma palavra profética é indispensável para denunciar a inadmissibilidade das fundações da presente organização social, mesmo que sejam geralmente apresentadas como evidentes por si mesmas. O objetivo é mostrar uma realidade alternativa – mas nunca, como numa ilusão messiânica, a certeza da salvação. Eles propõem o tema de um possível compromisso.
Essa raiva não foi ditada apenas pelo ressentimento – mesmo que, como afirmou o grande pensador do holocausto (e ávido leitor de Fanon) Jean Améry, contra Nietzsche Jean Améry, o grande pensador do Holocausto (e leitor atento de Fanon), afirmou que existem formas de violência tão violentas que o ressentimento para com os seus autores é quase um dever moral. Procede de uma correta compreensão da estruturação racista das sociedades colonialistas, baseada no privilégio branco, e num fetichismo de unidade que torna inaudível qualquer denúncia deste fato.
Nunca é fácil, mas é sempre possível organizar-se coletivamente, mesmo em tempos difíceis ou conturbados. Malcolm X e Frantz Fanon estão aí para nos lembrar que uma palavra profética, por outro lado, pode estar ausente de tais tempos.
Tal palavra, que rasga a falsa unidade da nação, mas une as suas vítimas negadas, nunca deve ser esquecida. Liga o rastilho dos ativistas políticos ao barril das vítimas, pois ela existe apenas para se espalhar amplamente. A ordem racista, que a odeia mais do que tudo, não ignora que representa o maior perigo para a sua hegemonia.
Notas
[1] Fanon Frantz, Les Damnés de la terre (1961), Paris, La Décou- verte, 2002, p. 133
[2] Voir : Dubos Nicolas, Le Mal extrême. La guerre civile vue par les philosophes, Paris, CNRS Éditions, 2010.
[3] Malcolm X, Le Pouvoir noir (1965), trad. Guillaume Carle, Paris, La Découverte, 2008, p. 60.
[4] Schmitt Carl, Le Nomos de la terre (1950), trad. Lilyane Deroche- Gurcel, Paris, Presses Universitaires de France, 2012.
[5] Malcolm X, Le Pouvoir noir, op cit., p. 77
[6] Fanon Frantz, L’An V de la révolution algérienne (1959), Paris, La Découverte, 2011, pp. 167-168.
[7] Malcolm X, Sur L’Histoire Afro-américaine (1965), Bruxelles, Édi- tions Aden, 2008, p. 19.
[8] West Cornel, Race Matters (1993), New York, Vintage Books, 1994, p. 143.
[9] Honneth Axel, La Lutte pour la reconnaissance (1992), trad. Pierre Rusch, Paris, Gallimard, 2013.
[10] Fanon Frantz, Peau noire, masques blancs, Paris, Seuil, 1952, p. 182.
[11] Khiari Sadri, Malcolm X. Stratège de la dignité noire, Paris, Édi- tions Amsterdam, 2013, p. 57.
[12] Maldonado-Torres Nelson, Against War. Views from the under- side of modernity, Durham – Londres, Duke University Prés, 2008, p. 151.
[13] West Cornel, Black Prophetic Fire, Boston, Beacon Press, 2014.
[14] Malcolm X, Le Pouvoir noir, op cit., p. 159. Tal posição faz lembrar as de Georg Lukacs de História e Consciência de Classe ou do jovem Max Horkheimer que considerava que a consciência do proletariado da sua posição seria equivalente ao seu compromisso revolucionário e ao sucesso desta revolução.
[15] Fanon Frantz, L’An V de la révolution algérienne, op. cit., p. 10.
[16] A principal limitação é que o projeto de libertação nacional não deve deslizar para um nacionalismo chauvinista, o que constituiria necessariamente um obstáculo aos projetos percebidos na altura como o horizonte verdadeiramente insuperável para a emancipação das massas colonizadas: o Terceiro Mundo da Conferência de Bandung (1954) e o Pan-Africanismo da Conferência de Acra (1960), da qual Fanon participou.
[17] Fanon Frantz, Les Damnés de la terre, op. cit., p. 301.
[18] Malcolm X, Le Pouvoir noir, op cit., p. 37.
Fonte: AJARI, N. L’unité déchirée : Malcolm X, Fanon et la guerre civile silencieuse. Nous : racisme et stratégies décoloniales, Paris, 2015
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