Por Achille Mbembe
Professor de história e de ciência política na Universidade de Witwatersand em Joanesburgo (África do Sul). Investigador no Witwatersrand Institute for Social and Economics Research (WISER), ensina igualmente no Departamento de Francês na Duke University (EUA).
A universalidade de Frantz Fanon
1. Esquecemo-nos com demasiada frequência que Frantz Fanon pertence a uma geração que passou, por duas ou três vezes, pela provação do desastre e, através da experiência de fim do mundo que toda a catástrofe consigo acarreta, indivisamente, pela provação do mundo. Poderia ter facilmente podido contar-se entre as inúmeras vítimas da segunda guerra mundial em que participou com
dezanove anos de idade; e nunca teria sido questão de Pele negra, máscaras brancas, nem d’Os Condenados da terra. Conheceu a colonização, a sua atmosfera sangrenta, a sua estrutura de asilo, o seu quinhão de feridas, os seus modos de arruinar a relação com o corpo, a linguagem e a lei, os seus estados inauditos, a guerra da Argélia.
Estas duas provações – o nazismo e o colonialismo –, a que haveria que acrescentar o encontro amargo com a França metropolitana e os primeiros clarõesdas independências africanas, não constituem apenas experiências fundadoras, chaves de leitura de toda a sua vida, do seu trabalho e da sua linguagem. Fanon surge, inteiro, no molde desses acontecimentos e mantém-se erguido, firme, no intervalo que, a um tempo, os separa e os une (1).
É aí, nessas três clínicas do real, que nasce, cresce e se esgota o nome de Fanon. É a essas três cenas – e, face a elas, à obrigação de cuidar que todas atravessa – que se deve o essencial da sua palavra, semelhante, na sua beleza dramática, na sua fulgurância e no seu brilho luminoso, ao verbo em cruz do homem-deus ameaçado de loucura e de morte (2).
3. Verbo em cruz e, assim, levado ao sopro e à disseminação, uma vez que, do princípio ao fim, é tão só questão de gênese, de nascimento de novas formas, de encaminhamento, de criação interminável. É tão só questão do que é iminente, em germe; do que começa, do que nasce, se abre, se cria, surge sob os nossos passos, neste aqui e neste agora, mesmo para além das esperanças humanas, na urgência, o todo da vida e o grande largo do próprio mundo revelado como tal, carne aberta e prometida ao imprevisto do encontro.
Trata-se tão só, há que precisar, da luta e do futuro que há que sulcar custe o que custar. Essa luta tem como finalidade produzir a vida, derrubar as hierarquias instituídas por aqueles que se acostumaram a vencer sem ter razão, tendo a “violência absoluta”, nesse labor, uma função desintoxicadora e instituinte. Essa luta tem uma dimensão tripla. Visa antes de mais destruir o que destrói, amputa, desmembra, cega e provoca medo e cólera – o tornar-se-coisa. Depois, tem por função acolher o lamento e o grito do homem mutilado, daqueles e daquelas que, destituídos, foram condenados à abjecção; cuidar, e eventualmente, curar aqueles e aquelas que o poder feriu, violou ou torturou ou, simplesmente, enlouqueceu. Tem como finalidade fazer irromper um sujeito humano inédito, capaz de habitar o mundo e de o partilhar de modo a que as possibilidades de comunicação e de reciprocidade, sem as quais não poderiam existir nem a dialéctica do reconhecimento, nem a linguagem humana, sejam restauradas.
A este gigantesco labor chamava Fanon a “saída da grande noite”, a “libertação”, o “renascimento”, a “restituição”, a “substituição”, o “surgimento”, a “emergência”, a “desordem absoluta” ou ainda “caminhar todo tempo, dia e noite”, “erguer o homem novo”, “encontrar uma outra coisa”, forjar um sujeito humano novo emergindo inteiro da “argamassa do sangue e da cólera”, livre do fardo da raça e desembaraçado dos atributos de coisa. Um sujeito quase-indefinível, sempre em remanescente porque nunca acabado, tal desvio que resiste à lei, mesmo a qualquer limite.
Quanto ao resto, e bem melhor que outros escritos da época, os textos de Fanon desvendam a extensão dos sofrimentos psíquicos causados pelo racismo e pela presença viva da loucura no sistema colonial (3). Com efeito, em situação colonial, o trabalho do racismo visa, em primeira lugar, abolir toda a separação entre o eu interior e o olhar exterior. Trata-se de anestesiar os sentidos e de transformar o corpo do colonizado em coisa, cuja rigidez lembra a do cadáver. À anestesia dos sentidos junta-se a redução da vida em si mesma ao desprovimento extremo da carência. As relações do homem com a matéria, com o mundo, com a história transformam-se em simples “relações com o alimento”, afirmava Fanon. Para um colonizado, acrescentava, “viver não é incarnar valores, inserir-se no desenvolvimento coerente e fecundo de um mundo.” Viver é simplesmente “não morrer”, é “manter a vida”. E concluía: “A única perspectiva é este estômago cada vez mais encolhido, cada vez menos exigente, é certo, mas que há que, mesmo assim, satisfazer”.
Esta anexação do homem pela força quase fisiológica da carência e pela matéria do estômago constitui o “tempo antes da vida”, a “grande noite” de onde há que sair. Reconhece-se o tempo antes da vida no facto de, sob a sua influência, não se tratar, para o colonizado, de dar um sentido à sua existência e ao seu mundo, “mas antes de dar um à sua morte”. E foi ao esclarecimento das expectativas deste diferendo e ao seu derrube em favor das “reservas de vida” que Fanon se dedicou.
2. Mas mais do que uma obra acabada, Fanon legar-nos-ia uma tela que ele mesmo se esforçou por tecer no decurso de uma existência, breve, arriscada e, finalmente, inaudita. Porque, tela em cru, o texto fanoniano apresentaria à crítica uma série de dificuldades que seriam ao mesmo tempo uma oportunidade – a de o poder reescrever e reinterpretar incessantemente, sem nunca dele se poder na verdade apropriar e menos ainda esgotar (4). No decurso do meio século que decorreu sobre a sua morte, foram, contudo, numerosas as tentativas de o associar a projectos de natureza política ou teórica (5). Não existe hoje nenhuma região do mundo que não tenha acolhido, de um modo ou outro, o nome de Fanon. Uma verdadeira “biblioteca Fanon” nasceu e permitiu, por sua vez, a constituição de um campo de estudos florescente, rizomático e, hoje em dia, de alcance planetário.
Este campo desenvolveu-se em três tempos, o período do esquecimento ou da presença espectral alternando com os períodos de “retorno”, a disseminação efectuando-se sempre a partir de um centro irradiante (6). O primeiro desses centros é a África na era da praxis revolucionária, das grandes lutas de emancipação que abalaram os três primeiro quartéis dos século XX – as lutas anticoloniais propriamente ditas, as lutas anti-imperialistas e a luta contra o apartheid.
Insistiu-se muito na dívida de Fanon para com o existencialismo, a psicanálise e o marxismo e no modo como negociou as difíceis relações com estas correntes de ideias tão poderosas na sua época. Mas ainda não se considerou suficientemente o alcance do que representou então, para o pensamento em geral, a emergência de uma praxis anticolonial, cujo significado foi verdadeiramente universal e de que a África foi um dos centros irradiantes no decurso do século XX. A obra de Frantz Fanon faz parte integrante de uma rica tradição africana de reflexão crítica sobre os temas adjacentes do advento do sujeito humano, do renascimento da África e do “descerco” do mundo (7). Esta tradição, que data pelo menos do século XIX, é diaspórica e os seus centros situam-se nos circuitos do Atlântico (8). O movimento das ideias segue aí, em geral, um arco que vai das Caraíbas aos Estados Unidos, antes de regressar a África (9). A Europa mais não é, aqui, que lugar de passagem ou de trânsito.
Com Fanon, contudo, o deslocamento opera-se das Caraíbas para a África. As ideias produzidas no cadinho africano são posteriormente veiculadas na América onde são objecto de reapropriação pelos movimentos cívicos negros e pelos militantes radicais. Este é, nomeadamente, o caso, quando, no decurso da segunda metade do século XX, no apoio às lutas dos povos colonizados contra as potências coloniais europeias, a África se torna um dos laboratórios privilegiados da reflexão sobre a libertação nacional e os problemas da guerra revolucionária (10), sobre as relações entre racismo e consciência de classe, colonialismo e capitalismo ou ainda entre o nacionalismo, o pan-africanismo e o socialismo. Durante esse período, ganha corpo um pensamento revolucionário africano em torno da ideia de uma África totalmente libertada, gozando sem entraves de todas as suas capacidades de auto-determinação e livre de todo o laço de vassalagem. É uma África, cujo projecto é o de se constituir, enquanto força própria, enquanto o seu próprio centro.
Mas foi aqui, sobretudo, que se defrontaram dois modelos de revolução anticolonial, o modelo gandhiano e o modelo insurreccional argelino (11). Na origem das teses de Fanon sobre a violência encontra-se a questão histórica de se saber como levar a termo o processo de descolonização da África. O discurso fanoniano sobre a violência desenrola-se num cenário racial cujos lugares privilegiados de incarnação são a África do Sul e a Argélia. As suas considerações sobre a burguesia nacional são forjadas no exame das experiências então novas da Guiné e do Gana. A tragédia do Congo serve-lhe directamente de lucerna a partir da qual dá conta dessa política de potências tão característica das relações internacionais na época da guerra fria (12).
A África não é apenas o lugar a partir do qual Fanon pensa. É o próprio tema desse pensamento, bem como a sua matéria. E é à África que ele se dirige em primeiro lugar. Foi essa “africanidade” do pensamento de Fanon que, infelizmente, se perdeu de vista, precisamente porque a África terá sido o ponto de partida da sua teoria revolucionária e da sua praxis anticolonial. Sem as suas reflexões sobre a natureza do campesinato, o poder das “massas” ou o potencial revolucionário das classes lumpen, a obra de Amílcar Cabral não teria, sem dúvida, a forma que acabaria por assumir (13) Nem as trajectórias da luta armada contra o colonialismo português na Guiné-Bissau, em Angola, no Zimbabué e em Moçambique (14 ) Em larga medida, as teses do tanzaniano Julius Nyerere sobre um “socialismo africano” cujos atributos fundamentais seriam aldeãos e comunalistas são uma resposta indirecta a Os condenados da terra (15).
Esta temática campesina encontrará ecos mesmo na África do Sul (16). Alimentará secretamente os sonhos de reforma agrária numa parte da África austral, onde, em prol da colonização de povoamento, os negros haviam sido desapossados do essencial das suas terras e enclausurados em reservas (17). Imediatamente a seguir às independências, servirá igualmente de ponto de ancoragem para uma tradição intelectual radical preocupada em encontrar, nas lógicas sociais endógenas, as alavancas de uma transformação revolucionária (18). De resto, de Dar Es Salaam a Joanesburgo, passando por Maputo, essa tradição intelectual contribuirá para uma crítica e revisão do marxismo – empreendimento intelectual cuja história está infelizmente longe de estar escrita, mas que prefigura, em muitos aspectos, os desenvolvimentos teóricos registados mais tarde noutros continentes (caso dos subaltern studies na Índia ou dos movimentos indigenistas radicais na América Latina) (19). A universalidade da obra de Fanon é assim inseparável da sua “africanidade.”
Fora de África, este livro motor será recebido como um manual da organização e da prática revolucionária. Este é nomeadamente o caso dos meios negros dos Estados Unidos, mais tarde, na África do Sul onde, confrontados com a segregação racial, os movimentos pelos direitos cívicos dele se apropriarão como de uma bíblia (20). As suas ideias influenciarão não só aqueles que, na época, tentam compreender a dinâmica da libertação anticolonial, mas também aqueles que se opõem, ao mesmo tempo, ao imperialismo americano e ao totalitarismo soviético (21)
3. A segunda época de Fanon corresponde ao surto dos “estudos pós-coloniais” no mundo anglo-americano dos anos 1980. Se Os condenados da terra era o livro da época da praxis revolucionária, de Pele negra, máscaras brancas pode dizer-se que é um dos livros de cabeceira da viragem pós-colonial no pensamento contemporâneo. O último quartel do século XX caracteriza-se, com efeito, pelo
17. M. Percy More, “Fanon and the land question in (post) Apartheid South-Africa”, in Nigel Gibson(dir.), Living Fanon, op. cit.
18. Osendé Afa na, L’Économie de l’Ouest africain, Maspero, Paris, 1966; e, mais tarde, Jean-Marc Éla, L’Afrique des villages, Karthala, Paris, 1982; Immanuel Wallerstein, The Capitalist World Economy, Cambridge University Press, New York, 1979; Goran Hyden, Beyond Ujamaa in Tanzania. Underdevelopment and an Uncaptured Peasantry, California University Press, Berkeley, 1980.
19. Dipesh Chakrabarty, “Subaltern history as political thought”, in VrajendraRaj Mehta et Thomas Pantham (dir.), History of Science, Philosophy and Culture in Indian Civilization. Vol. X, Part 7. Political Ideas in Modern India, Sage, Londres, 2006; Fausto Reinaga, La Revolución india, Partido Indio de Bolivia, La Paz, 1969. Ver igualmente Neelan Srivastava et Baidik Bhattacharya, The Postcolonial Gramsci, Routledge, New York, 2011.
20. V. Lou Turner e John Alan, Frantz Fanon, Soweto, and American Black Thought, Columbia University Press, New York, 1986.
21. Eric J. Hobsbawm, “Passionate witness”, New York Review of Books, 22 Fevereiro 1973, p. 6-10; Immanuel Wallerstein, “Reading Fanon in the 21st Century”, New Left Review, n° 57, Maio-Junho 2009.
22. Simon Gikandi, “Poststructuralism and postcolonial discourse”, in Neil Lazarus (org.), The Cambridge
Companion to Postcolonial Literary Studies, Cambridge University Press, Cambridge, 2004.
23. Ranjana Khanna, Dark Continents. Psychoanalysis and Colonialism, Duke University Press, Durham,
2003; Françoise Vergès, xxx.
24. Esta redescoberta de Fanon, assumiu, contudo, uma forma singular em França, onde, ao invés do mundo anglo-americano, a sua obra foi marginalizada durante muito tempo nas instituições académicas, o mesmo sucedendo com os “estudos pós-coloniais”. Em contrapartida, os seus textos, tais como os de numerosos pensadores negros radicais da época, foram objecto, desde meados dos anos 1980, de uma reapropriação autodidacta no seio das jovens gerações oriundas da imigração.
25. Robert J. C. Young, Postcolonialism. An Historical Introduction, Blackwell, Oxford, 2001.
26. Arjun Appadurai, Modernity at Large. Cultural Dimensions of Modernity, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1997 (trad. fr. : Après le colonialisme. Les conséquences culturelles de la globalisation, Payot, Paris, 2005).
27. Lewis Gordon, Fanon and the Crisis of European Man. An Essay on Philosophy and the Human Sciences, Routledge, New York, 1995; Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe. Postcolonial Thought and Historical Difference, Princeton University Press, Princeton, 2000.
28. Paul Gilroy, Against Race. Imagining Political Culture Beyond the Color Line, The Belknap Press of Harvard University Press, Harvard, 2000; depois After Empire. Multiculture or Postcolonial Melancholia, Routledge, New York, 2004.
29. Gwen Bergner, “Who is that masked woman ? Or, the role of gender in Fanon’s Black Skin, White Masks”, PMLA, vol. 110, n° 1, Janeiro 1995, pp. 75-88; Diana Fuss, “Interior colonies : Frantz Fanon and the politics of identification”, Diacritics, Verão-Outono 1994, pp. 20-42; Madhu Dubay, “The “true lie” of the nation : Fanon and feminism”, Differences, vol. 10, 1998, p. 1-29; T. Denean Sharpley- Whiting, Frantz Fanon, Conflicts and Feminisms, Rowman & Littlefield Publishers Inc., Lanham, 1998.
30. Cristiana Giordano, “Translating Fanon in the Italian context : rethinking the ethics of treatment in psychiatry”, Transcultural Psychiatry, vol. 48, n° 3, 2011, p. 228-256; Olivier Douville, “Y a-t-il une actualité clinique de Fanon ?”, L’Évolution psychiatrique, vol. 71, n° 4, Out.-Dez. 2006.
31. Judith Butler, Bodies That Matter. On the Discursive Limits of “Sex”, Routledge, New York, 1993; Trouble dans le genre. Le féminisme et la subversion de l’identité, La Découverte, Paris, 2005; Feminism and the Subversion of Identity, Routledge, New York, 1993; Leo Bersani, Homos. Repenser l’identité, Odile Jacob, Paris, 1998; et Lee Edelman Homographesis. Essays in Gay Literary and Cultural Theory, Routledge, New York, 1994.
32. Ver o prefácio de Homi K. Bhabha, “Is Frantz Fanon still relevant ?”, à nova tradução inglesa de Pele negra, máscaras brancas (Pluto Press, 1986). Ler também Nigel Gibson, “Relative opacity: a new translation of Fanon’s Wretched of the Earth, mission betrayed or fulfilled ?”, Social Identities, vol. 13,n° 1, Janeiro 2007, p. 69-95 ; e “Is Fanon relevant ? Toward an alternative foreword to The Damned of the Earth”, Human Architecture Journal of the Sociology of Self-Knowledge, Verão 2007, p. 33-44.
33. Derek Gregory, The Colonial Present. Afghanistan, Palestine, Iraq, Blackwell, Oxford, 2004.
34. Simone Browne, “Digital epidermalization: race, identity and biometrics”, Critical Sociology, vol. 36, n°1, 2010, p. 131-150 ; Anna M. Agathangelou, “Bodies to the slaughter : global racial reconstructions, Fanon’s combat breath, and wrestling for life”, Somatechnics, vol. 1, n° 2, 2011.
35. Achille Mbembe, “Necropolitics”, Public Culture, vol. 15, n° 1, 2003, p. 11-40 ; et Sortir de la grande nuit, La Découverte, Paris, 2010. Ler igualmente : Paul Gilroy, “Fanon and Améry. Theory, torture and the prospect of humanism”, Theory, Culture & Society, vol. 27, n° 7-8, 2010, p. 16-32 ; Nelson Maldonado-Torres, Against War. Views From the Underside of Modernity, Duke University Press, Durham, 2009.
MBEMBE, Achille. A universalidade de Frantz Fanon. ArtAfrica, Lisboa, 2012.
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