
Por Gabriel Onofre
HAYEK NO BRASIL
(* Trecho do artigo Friedrich Hayek e os liberais brasileiras na transição democrática)
Interessante observar que, à exceção dos EUA, o Brasil foi a nação, fora do continente europeu, que Hayek mais visitou em sua última década de vida. Suas vindas foram a convite de Henry Maksoud, editor da revista Visão e membro da Sociedade MontPelerin. Passando por São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Santa Maria no Rio Grande do Sul, suas conferências e entrevistas se voltaram a divulgar as ideias liberais no país.
A passagem de Hayek foi marcada pela atuação intensa do engenheiro Henry Maksoud, dedicado a promover o contato do filósofo com o meio acadêmico, empresarial e jornalístico brasileiro. Suas conferências foram publicadas em diferentes jornais e revistas, tendo ele sido entrevistado também por alguns diários nos estados onde esteve presente. Destaca-se a cobertura da revista Visão que convidou Hayek, promoveu conferências e dedicou um bom espaço em suas matérias para o filósofo austríaco.
A revista Visão teve um papel destacado na promoção das ideias de Hayek, traduzindo para o português algumas de suas principais obras, como Os fundamentos da liberdade e Direito, legislação e liberdade, em seus três volumes. A influência do pensamento político e econômico de Hayek e a atuação de Henry Maksoud para a promoção das ideias do liberalismo econômico vão além das visitas que se encerraram em 1981. Em 1987, Maksoud lançou um livro chamado Proposta de constituição para o Brasil. Discutido intensamente com Hayek e inspirado em muitos de seus escritos, o editor da Visão buscava com o livro intervir no debate público sobre que nova constituição o país deveria ter. Além disso, foram frequentes na TV Bandeirantes, programas apresentados por Maksoud debatendo ideias do pensador austríaco entre o final dos anos 1980 e 1990.
No final dos anos 1970, a vinda aos trópicos do filósofo austríaco trouxe para o debate público temas sensíveis como o da questão democrática, a crise econômica, a necessidade de controlar a inflação, o conceito de justiça social e outros. Trabalharemos aqui a partir das entrevistas concedidas por Hayek a revistas e jornais, assim como com notícias, artigos e ensaios publicados cobrindo suas visitas ao Brasil. Dividimos as ideias de Hayek em alguns temas-chaves: o sistema democrático, a crise econômica, a defesa do livre mercado e o ideal de justiça social. Muitas das propostas defendidas pelo Prêmio Nobel de Economia serão encampadas por grupos liberais brasileiros que fundaram instituições, durante o período da transição democrática, com o objetivo de influenciar a ordem política e econômica através da divulgação da doutrina do liberalismo econômico.

A QUESTÃO DEMOCRÁTICA
No dia 28 de novembro de 1977, Hayek, em sua primeira visita ao Brasil, realizou uma conferência em Brasília cujo assunto principal girou em torno do poder do Estado. O filósofo abriu a conferência declarando-se um “democrata apaixonado” e um “anti-socialista radical”, afirmando ser, todavia, totalmente contrário à democracia que é praticada atualmente nos países do mundo ocidental. Diante de uma plateia intrigada, explicou:
“O poder de coerção do Estado deve ser limitado ao estabelecimento de regras que sejam iguais para todos, pois o indivíduo deve ser livre para usar seu saber em prol do que quer, e só seguir as regras que valem para todos”. (Jornal da Tarde, São Paulo, 29 de novembro de 1977.)
Criticando as democracias representativas ocidentais por seus modelos de interferência na economia, Hayek admite apenas a intervenção do Estado para beneficiar a todos os cidadãos, igualmente. Manifestou-se, assim, contrário à formação de todo tipo de monopólio, estatal ou privado, afirmando ainda que “praticamente nenhum monopólio conseguiu se sustentar por muito tempo, até hoje, sem o apoio do Estado”.
Em um país marcado pela hegemonia de uma cultura política nacional-estatista, as palavras de Hayek não devem ser subestimadas. Muitos setores empresariais, por exemplo, que já vinham se organizando em defesa de propostas de liberalização da economia, viam no economista austríaco uma referência importante para dar credibilidade às críticas à forte presença do Estado na economia e à defesa de políticas de livre-mercado.
A literatura especializada na atuação empresarial durante o regime civil-militar na década de 1970 aponta que as principais entidades do empresariado começaram a criticar abertamente a intervenção realizada pelo Estado na economia e a demandar maior espaço para a iniciativa privada. Exemplo dessa mudança da relação do empresariado com o regime é a Campanha contra Estatização de 1976, quando importantes setores empresariais buscaram se distanciar de algumas decisões adotadas pelo governo, criticando a política industrialista do governo Geisel, proposta no II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). Em artigo no jornal Folha de São Paulo a respeito da primeira visita de Hayek ao país, sob o título “O debate que Hayek propôs”, a matéria afirma que “Hayek veio reforçar as teses de muitos empresários nacionais que lutam contra a estatização da economia brasileira”. Importante não considerarmos a cobertura jornalística das visitas do professor austríaco como homogêneas – positivas ou negativas – se em alguns jornais as ideias de Hayek dão credibilidade a um discurso a favor de reformas liberais, em outros suas propostas são vistas com reservas. Nesta reportagem da Folha, afirma-se que a fala do Nobel de 1974:
“embora proveitosa por desencadear importantes debates públicos, alegrou não só os empresários que lutam contra a “estatização” como também os adversários de sua visão de mundo. A alegria destes, contudo, (se dá) porque suas conferências revelaram o quanto frágeis e idealistas seus argumentos e pobre sua ortodoxia.” (Jornal Folha de São Paulo, 6 de dezembro de 1977)
A atuação de Hayek no país não pode ser analisada assim sem se levar em conta a reorganização de setores do empresariado que buscavam se posicionar no contexto da transição política que então se iniciava. Neste novo arranjo político do final dos anos 1970 e início da década de 1980 as propostas sobre que democracia o país precisava mobilizava corações e mentes. É aqui que as propostas de Hayek devem ser percebidas como um parâmetro para os grupos liberais nacionais e para a cultura política (neo) liberal que se difundia com mais força a partir de então.
Depois da capital federal, onde visitou a Universidade de Brasília e o Congresso, ainda a convite do Grupo Visão, Hayek foi para São Paulo, cidade que permaneceu três dias fazendo conferências e que teve ampla cobertura dos principais jornais paulistas. Na sede do Grupo Visão, em um auditório para mais de mil pessoas, proferiu três dias de palestras, com os seguintes temas: “A geração da riqueza – economia de mercado”, “O método da democracia”, e, no último dia, “O dinheiro e o Estado”.
Em O Estado de São Paulo, destacou-se as críticas de Hayek aos modelos democráticos então vigentes, apontando as falhas das democracias ocidentais. Assim, o jornal, em matéria intitulada “Hayek: ação estatal deve ser limitada”, expõe:
“o professor von Hayek disse não aceitar a intervenção estatal, mesmo que a pretexto de que o mercado de determinado produto esteja sendo dominado por conglomerados econômicos, pois entende que tal situação só ocorre por culpa do Estado, que deve proporcionar a livre concorrência entre as empresas.” (O Estado de São Paulo, 29 de novembro de 1977).
Para Hayek, a democracia não devia ser entendida como um fim em si mesma, mas um meio para a proteção da liberdade individual. Assim, ao abordar os problemas das democracias ocidentais, aponta que o problema está no tipo de democracia que se consolidou nos países desenvolvidos da Europa e dos Estados Unidos. Para ele, democracia é um conceito político e não econômico, um procedimento de governo que permite que se adotem decisões políticas, não havendo oportunidade ou justificativa para a democracia fora do campo político.
Defendendo uma concepção liberal de democracia, quando perguntado quais seriam para ele as funções do governo em um regime democrático, responde que: “os governos deveriam se limitar a fazer cumprir as regras gerais de conduta individual, aplicando-as igualmente para todos”. Com isso, seu entendimento é o de que a liberdade política não é uma condição quer necessária, quer suficiente para a liberdade individual. Critica o que vê como uma noção de liberdade espúria, feita para legitimar projetos coletivistas, para referendar intervenções do Estado na economia e na vida dos indivíduos.
O pensador austríaco distingue o liberalismo, como “uma doutrina sobre o que a lei deveria ser”, da democracia como “uma doutrina a respeito da maneira de determinar qual será a lei”. O liberalismo e a democracia concordam ao entender que a maioria deve determinar qual a lei, mas divergem quando o democrata pensa que a maioria determina qual é a “boa” lei. A democracia é vista assim como um método que deve ser julgado pelo que realiza, ao passo que o liberalismo é uma doutrina acerca das metas e finalidades do governo. Hayek, todavia, declara que existem três argumentos decisivos em favor do método democrático: primeiro, é o único meio para a transformação pacífica; segundo, se mostrou mais apto a produzir liberdade que outras formas de governo; e, por fim, é o melhor caminho para elevar o nível geral de educação política.
Vemos aqui uma concepção da ordem política democrática que influenciará muitos grupos liberais no contexto da transição política. Segundo esta tradição liberal, a democracia é concebida não como um fim, mas um meio. Dessa forma, em conferência para empresários brasileiros, reproduzida na íntegra por alguns veículos de imprensa, com título curioso “Democracia, higiene e ingenuidade”, Hayek expõe o que entendia como a “verdadeira” democracia. Para ele, em sua formação, datada dos séculos XVIII e XIX, o modelo de democracia significava uma concepção de poderes limitados e de regras gerais aplicáveis a todos. Com a extensão do sufrágio – que não é vista como negativa é bom frisar – as democracias passaram por grandes mudanças, nas quais como “um cavalo de Tróia pelo qual as decisões coletivas são introduzidas clandestinamente”, os modelos democráticos se tornaram “um disfarce para objetivos coletivistas”. Analisando a experiência europeia e norte-americana como negativa, defende que a democracia deve ser pensada pelos brasileiros como um modelo liberal, sem “crenças ingênuas de que seja melhor perseguir objetivos comuns (ou sociais) do que perseguir seu próprio objetivo individual”. A lição de Hayek para os brasileiros é a de que
a crença de que seja moralmente desejável dirigir democraticamente, tanto quanto possível atividades humanas para objetivos comuns, ou que a orientação da ação individual para fins específicos, por decisão democrática, é em si um bem moral, é simplesmente uma extensão errônea de práticas úteis aos pequenos grupos de homens primitivos, mas, por sua natureza, inaplicáveis à grande sociedade. (Gazeta Mercantil, 29 de abril de 1980)
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