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[Conteúdo] Coletes amarelos em secessão: elites desamparadas diante do “extremo-povo”

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7 minutos de leitura

Por Michel Maffesoli

Publicado em 24/12/18 no blog Atlantico

Nesse período perturbado, consequência inelutável das profundas mudanças em nossas sociedades, talvez não seja inútil se lembrar da distinção proposta por Nicolau Maquiavel entre “o pensamento do Palácio” e “o pensamento da praça pública!”.

Distinção, desacordo, distância, quando olhamos numa escala temporal mais larga as histórias humanas, é comum ver o povo criar uma secessão. Secessio plebis de memórias antigas, durante a qual os plebeus “se retiram para o Aventino”. Atualmente, mais prosaicamente, eles ocupam as rotatórias da França periférica. Mas quem são os patrícios que podem trazer concórdia e acalmar os espíritos?

Eis o que não é óbvio, tão grande é a consternação das elites. Os especialistas não têm receitas mais, os políticos são desconsiderados, os jornalistas suscitam desconfiança. O que faz com que as belas almas, amontoadas de bons sentimentos, ocupem os tetos de clarabóias estranhas e confiem nas colunas dos principais jornais tenham medo. Seria preciso ser Cervantès para descrever esses “cavaleiros de rosto triste” lutando contra moinhos de vento. Nesse caso, a condenação, sem apelo, da extrema esquerda ou mais e de uma maneira obsessiva da extrema direita, é automaticamente sinônimo de perigo fascista. Nada menos!

Para além desses supostos extremismos, trata-se do “extremo povo”. É engraçado ouvir essa justiça própria, ver a sombra de Hitler ou Mussolini surgindo por trás da demanda anódina de um referendo de iniciativa cidadã (RIC). Divertido? E quando rimos disso, deveríamos chorar!

Fiquemos no nosso Aventin. O conflito foi resolvido, e lembramos que além do perdão das dívidas, foi a constituição de um magistratura da plebe que foi obtida.

Aqui está um símbolo instrutivo. Há em toda luta um lado que podemos chamar de espiritual, que o materialismo nativo de nossas elites marxistas dessintonizadas tem dificuldade em entender. É esse aspecto simbólico que é o coração pulsante dessas revoltas regulares dos povos, das quais o fenômeno dos coletes amarelos é a expressão contemporânea. Esse aspecto é o recurso indomável da força moral.

A secessão do povo é o ato de se separar, de se afastar de um Estado que se distanciou de um povo que deveria representar. Retirar-se de um estado de coisas em que “o serviço público” colocou o público a seu serviço.

Consequentemente, as revoltas expressam a necessidade irresistível de retornar à “praça pública”. Ou seja, ao lugar que compartilhamos com os outros. Muitas vezes esquecemos que o “lugar cria vínculo“. Obcecadas demais por projetos políticos orientados para o distante e pensadas para o futuro, as elites esqueceram a importância do localismo e a urgência da vida cotidiana vivida no presente.

É isso que se expressa nas revoltas em curso. Esses “Aventinos”, que são rotatórias contemporâneas, simplesmente repetem o prazer de estar juntos para ficar juntos. Qual é uma maneira eficaz de lutar contra uma tecnocracia cada vez mais abstrata, considerando com desprezo um povo fraco, incapaz de entender, como relatava a pouco um líder da maioria política “a inteligência e a sutileza da ação governamental’.

Ora, a sabedoria popular “sabe”, a partir do conhecimento incorporado a longo prazo, que é preciso desconfiar das práticas dilatadoras do poder avassalador. Que é aconselhável ser esperto em relação às tentativas de desvio de uma administração capaz, toda envergonhada, de cancelar sem dar um golpe nas medidas tomadas em resposta à febre popular. Cancelamento, cancelamento de cancelamentos, a violência peculiar ao totalitarismo “suave” de um estado jacobino tem mais de uma corda em seu arco. Mas, em certos momentos, esses truques tecnocráticos que se adornam com justificação ou racionalização mais ou menos sofisticada não são mais uma ilusão. Em outras palavras: o copo está cheio! E às sucessivas sinceridades, que a partir de então são sentidas como verdadeiras falsidades, as pessoas respondem: “Continue falando, você me interessa”.

Nesses discursos dissertando com “inteligência”, sobre uma ordem das coisas que eles ignoram o alfa e o ômega, as insurreições populares lembram que a socialidade autêntica é a de uma comunidade de destino que vive mais próximo. Essas insurreições pedem uma descentralização radical, aceitando, reconhecendo a existência concreta, ou seja, vivida diariamente, das afiliações “tribais” fundamentais.

Porque são essas afiliações que são expressas em plena luz do dia nesse fenômeno dos “coletes amarelos”. Além ou aquém das classes sociais da teoria marxista ou das categorias sócio-profissionais (CSP) das pesquisas funcionalistas usuais e chatas, é uma sociabilidade básica, reunindo o que é disperso que encontramos ao redor semáforos pontuando rotatórias. Esses incêndios são como muitos lares onde nos aquecemos e onde o reavivamento da solidariedade orgânica é inventado, a causa e o efeito de toda a sociedade.

Não se trata aqui, como analisam os sociólogos atrasados de um século, de uma “luta de classes” ou desses “movimentos sociais” inconsistentes, o xodó dos observadores ou experts defasados. Não, trata-se de uma coisa completamente diferente.

Volens, nolens, e mesmo que não desejemos vê-lo, o que chamamos de solidariedade orgânica em formação é o que é desenvolvido em torno das casas dessas rotatórias. Nesse assunto, através dos problemas levantados pelos aposentados, é o respeito dos Anciãos, o reconhecimento de sua autoridade proveniente da experiência da vida que está em jogo.

É também a solidariedade que está em questão quando esses Anciãos trocam com esses jovens, desempregados ou empresários, tendo dificuldade em sobreviver ou desenvolver seus novos negócios. Trata-se de generosidade, de ajuda mútua, de troca e de outros valores essenciais. O que resta incompreensível, porque um tanto arcaico, para as elites puramente racionalistas, tendo alguma dificuldade em entender a importância do intangível.

De repente, pra eles é fácil estigmatizar esse ressurgimento de uma solidariedade proxêmica por meio dessas grandes palavras um tanto encantadoras, portanto vazias, cuja boa vontade tem o monopólio. Assim, somos inundados de sede por termos como: populismo, comunitarismo, conspiração, racismo, anti-semitismo, poujadismo, “boffitude” e outros nomes de aves da mesma espécie.

Pudemos até mesmo ouvir um famoso sessenta e oitista, transformado em notário no lugar dos notários que ele conspurcou em 68, assinalar com compaixão que, por suas origens e em referência à “estrela amarela” de triste memória, ele era alérgico a esta cor! Vasto programa! De fato, tudo isso revela uma profunda incompreensão. Comentadores patenteados assombrando os antigos programas de entrevistas na televisão ou no rádio, cuja característica é uma “auto-estima” fundamental. De modo algum ajuda a entender uma revolta radical, questionando a rigidez de um poder cuja verticalidade não é mais aceita.

Este é o paradoxo da tempestade que sopra com a violência que conhecemos. Essas trocas entre as gerações mais velhas e as mais jovens, essa preocupação com o compartilhamento e a solidariedade, enfim, esse prazer de estar juntos encontram a ajuda do desenvolvimento tecnológico. O sentimento de pertencimento “tribal” é reforçado pela cibercultura. Redes sociais, fóruns e outros blogs são o que tornam obsoletas as formas usuais de representação sindical ou partidária. A rejeição de uma organização vertical e hierárquica tem como correlato o desejo irrefutável de uma horizontalização das relações sociais.

Basicamente, esse “internetativismo” contínuo é uma boa ilustração da mudança completamente pós-moderna da vertical para a horizontal. Acontece que é nas redes sociais que essas revoltas incoercíveis, que certamente estão longe de terminar, são melhor expressadas. Várias caricaturas, fotomontagens e colagens parodiam os vários protagonistas dos poderes políticos, jornalistas ou várias pessoas conhecedoras. Tendo tomado consciência do que Platão chamou de “teatrocracia” de uma democracia deserdada, o povo, por sua vez, ridicularizou os fatos e delitos das elites decadentes.

Em resposta às piadas de mau gosto que ocorreram, durante o festival de música em junho passado nos degraus do Palácio do Eliseu ou mesmo tendo em mente as exposições indecentes durante uma viagem presidencial a St Martin, a ironia, a humor e risadas francas se espalharam como fogo. O que não deixa de ter consequências nesse visual charivari nex é o fenômeno dos coletes amarelos. Porque, na esteira das redes sociais, a paródia contra a teatrocracia do poder tem seu lugar na teatralização das manifestações em andamento. Isso se relaciona com as “festas dos loucos” medievais e outros momentos de reversão quando o povo se vingou dos poderes estabelecidos.

Como dissemos, não é a extrema esquerda nem a extrema direita, mas as “pessoas extremas” que, como o “bravo soldado” Chveik popularizado por J. Hasek, maneja a sátira, pratica o humor e a derrisão e, assim, incomoda o burlesco estado dominante das coisas. É bem algo desta ordem que está em jogo na revolta do povo expressa pelos coletes amarelos: candura e coragem. Coragem é, não esqueçamos, coração e raiva. Misto fecundo, respondendo ao discurso tecnocrático que recicla de modo insípido uma série de banalidades. Esses discursos não colam mais, a arrogância perdeu espaço.

 

Tradução de MARIA CHIARETTI.

Conteúdo relacionado a Os engenheiros do caos.

FONTE: www.atlantico.fr

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