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Protesto – Movimento Passe Livre 07.06.2013, de Gianluca Ramalho Misiti

Por Humberto do Amaral, tradutor de Asfixia


Depois do futuro, o dilúvio. Passado um século das experimentações das vanguardas europeias, a tecnologia e a virilidade da máquina exaltadas pelos modernos não serviram à concretização de utopias ou à transcendência das condições materiais de escassez. Ao invés disso, a captura dos avanços técnicos pelas estruturas de poder — mais notadamente aquelas reforçadas pelas políticas adotadas a partir dos anos 1970 e que, nos últimos anos, foram cristalizadas nas instituições do capitalismo financeirizado — vem servindo apenas ao sufocamento das energias criativas e imaginativas que pareciam ter sido liberadas de forma definitiva após o Maio de 1968. 

É a partir desse pano de fundo, que também serviu às reflexões de Franco “Bifo” Berardi em Depois do futuro, que se traçam os contornos de Respiração e de Insurreição: com a diferença, no caso destes livros, de que o autor parte dos erros e acertos dos movimentos populares que — nem tragédia, nem farsa — varreram o mundo em 2011: a Primavera Árabe, os indignados, o Occupy Wall Street, dentre tantos outros.

Uma das bases do raciocínio de Bifo está na ideia de que a interação entre seres humanos pode acontecer em duas modalidades: conjunção ou conexão. A conjunção é desorganizada, caótica: a troca de frases entre duas pessoas não tem como pressuposto uma identidade perfeita e absoluta entre o que é dito por um interlocutor e o que é compreendido por outro. Dessa desordem, no entanto, criam-se sentidos, esferas de sensorialidade, novas interpretações das estruturas que informam o mundo. Novos laços são atados para reforçar o tecido social, para fortalecer a empatia e a solidariedade entre as pessoas. A conexão, por outro lado, tem como marca principal a binariedade, o sintético: sim ou não, 0 ou 1. Para que dois ou mais elementos possam ser conectados, é necessário despojá-los de tudo aquilo que não lhes é comum, reduzi-los a um núcleo básico e desindividualizado — ou, em uma extrapolação um pouco mais pessimista, privá-los daquilo que os torna humanos. A conjunção é sensível, poética; a conexão, maquínica, matemática. 

A vinculação dos pares “conjunção/conexão” e “poesia/matemática” não é um mero floreio linguístico. Bifo atribui o início da fase conectiva das relações humanas à consolidação e à internalização das políticas econômicas neoliberais (e, nos anos mais recentes, financeiristas) e à captura da evolução tecnológica pelas estruturas de poder. É a isso que o autor se refere quando pega de empréstimo a expressão de Rose Kohn Goldsen para falar da primeira geração nativa da internet: a “primeira geração que aprendeu mais palavras com uma máquina do que com suas mães”. Para o autor, até pouco tempo atrás sabíamos que “água” era “água” porque tinha sido assim que nossas mães nos haviam ensinado — e era a partir desse processo linguístico-poético-afetivo que se dava a inserção progressiva do indivíduo no corpo social; era assim que se estabeleciam relações interpessoais e que se criavam laços de empatia e de solidariedade.

A virada mais acentuada rumo à conexão pode ser identificada a partir da década de 1970: as políticas neoliberais de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e, mais tarde, de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, criaram as condições necessárias para o aprimoramento da “eficiência” dos mercados. A lógica, então, passou a ser a da matematização da vida. O uso de índices objetivos, econômicos e científicos para medir o desempenho de mercados — mas também de trabalhadores e de trabalhadoras que, cada vez mais integrados às estruturas de exploração, deixam de se relacionar com seus filhos — seleciona e potencializa o elemento mais feroz do sistema capitalista: a competição. Poetas não dão bons empregados, e a conexão passa a tomar conta das relações humanas. Ainda havia, no entanto, redutos de conjuntividade: trabalhadores compartilhavam diariamente espaços físicos comuns (um galpão, um escritório), e a conjunção que daí resultava permitia, até certo ponto, a manutenção de um senso de empatia, de solidariedade social.

Com a internet — e, mais tarde, com a chamada “economia de compartilhamento” —, cai esse bastião da conjuntividade. Já não se compra a força de trabalho de alguém por uma quantidade fixa de horas, porque a eficiência na extração da produtividade está mais alinhada com mecanismos de contratação esparsa, fundada em uma intensidade pontual, rotativa e despersonalizada; já não há mais espaços físicos compartilhados, porque as empresas em si se tornaram abstratas, online, e os custos físicos e operacionais foram repassados para o trabalhador; e, como consequência, já não há empatia ou solidariedade social, porque já não se enxerga o Outro, mas apenas índices, dados, notas atribuídas em aplicativos. É a precarização das relações de trabalho, mas, também, segundo Bifo, sua fractalização: a grande disponibilidade de “empreendedores de si” online permite que o empregador escolha fragmentos (fractais) de tempo oferecidos por um ou vários trabalhadores de acordo com os parâmetros mais eficientes (ou seja, mais lucrativos). 

Essa fractalização do mercado de trabalho não acontece em um vácuo: ela se dá como um dos desdobramentos da já mencionada matematização da vida, que encontra seu ponto culminante na abstração do atual capitalismo financeirizado, em que nem mesmo o dinheiro, sua pedra fundamental, possui mais existência física. Um desdobramento que se deve, em grande parte, à evolução da internet — tecnologia que em sua origem prometia milhares de revoluções, mas que, rendida pelas estruturas da conexão (e não da conjunção), perdeu em grande medida seu potencial transformador. Ao invés da concretização de utopias, o assalto algorítmico e a tomada das estruturas da criação de sentido levaram à consolidação do chamado semiocapital (a dominação capitalista sobre os processos de construção de significado por meio de automatismos de linguagem, respostas automatizadas a dadas situações concretas).

Diante desse quadro (neoliberalismo, matematização da vida, perda da função conjuntiva da linguagem, financeiriação, rompimento da solidariedade social e da empatia, semiocapitalismo), Bifo propõe a reativação do tecido social — o “corpo social” anestesiado, embrutecido — através da reapropriação das estruturas de criação de sentido: em outras palavras, da transição da conectividade em direção à conjuntividade, da matemática à poesia: e isso a partir da noção wittgensteiniana de que “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”.

Em um primeiro momento, em Insurreição, Bifo reconhece na poesia a única forma de resistência à opressão financeirizada — e isso porque a poesia é uma forma de “concatenação semiótica que excede a esfera das trocas e a correspondência codificada do significante e do significado; a concatenação semiótica que cria novas rotas de significação e abre caminho para a reativação do elo entre sensibilidade e tempo, já que a sensibilidade é a faculdade que possibilita a singularidade da enunciação e a singularidade da compreensão de um enunciado não codificado”. Será a poesia que fornecerá as ferramentas necessárias ao transbordamento das estruturas semióticas capturadas, à expansão dos “limites do meu mundo”, à transição rumo a um novo paradigma. Ainda que a poesia seja a vibração de uma única voz, dela podem surgir ressonâncias e, a partir daí, a possibilidade de criação de espaços comuns, nos quais a conjuntividade será mais uma vez possível. É dentro desse contexto que Bifo enxerga nos movimentos de 2011 o surgimento de um movimento de longo prazo de criação de novas subjetividades por meio do exercício da prática poética do comum.

Em Respiração, porém, adiciona-se à equação a ideia de respiração: ātman e prana. A respiração singularizada de cada organismo sensível e consciente, de um lado, e, de outro, a vibração cósmica como um todo (o ritmo universal). Esses conceitos ganham relevância a partir da constatação, pelo autor, da cisão causada pelo desenvolvimento da internet: ainda que o ciberespaço possa ser expandido de maneira indeterminada (com a criação ilimitada de novos sites, com o aumento da capacidade de armazenamento do hardware, com o desenvolvimento de novas ferramentas navegacionais etc.), o cibertempo só pode ser explorado até um determinado limite — no caso, o limite orgânico do ser humano, cuja atenção, ainda que expansível até certo grau, é fisicamente incapaz de acompanhar o surgimento, a cada segundo, de novas estruturas informacionais. 

É com base nesse descompasso entre espaço e tempo que Bifo constata o fenômeno da infoaceleração, ou de aceleração da esfera informacional: somos cada vez menos capazes de receber e processar os estímulos que chegam até nós. Com o excesso de signos (vindos de todas essas fontes de informação), passa a ocorrer o que o autor chama uma “inflação semiótica”: cada vez mais signos são necessários para “comprar” cada vez menos sentido. Rarefeito o sentido — o que, convém lembrar, se dá em meio a um processo maior de abstração da vida como um todo —, instaura-se o caos (“Quando as coisas começam a fluir tão rápido que o cérebro humano se torna incapaz de criar sentido a partir da informação, entramos na condição do caos”, Respiração), que vem se somar à perda da solidariedade social e da empatia e ao entorpecimento do corpo social. Globalizado, conectado, o imaginário coletivo passa a ser cada vez mais compartimentado, já que, esgarçado o tecido social, deixou de haver uma narrativa histórica comum — e, paradoxalmente, começam a surgir movimentos reativos: louva-se uma noção quase mística de identidade, de pertencimento, e surgem Trumps, Salvinis, Putins, Erdogans (e Bolsonaros): uma identidade que já é outra, que não é aquela que existiu concretamente e que serviu de base aos fascismos do século passado (a identidade nacional, por exemplo), mas uma nostalgia identitária, uma saudade de um constructo político.

Como alternativa a esse horizonte sombrio, Bifo introduzir a noção de respiração, ou, mais precisamente, o respirar juntos, correspirar, conspirar, adequar nosso ritmo interno ao ritmo universal — desacelerar a esfera informacional, dar um passo atrás no interior de uma infoesfera de pós-verdade em constante aceleração. 

Mas uma conspiração pressupõe, de certo modo, ao menos certa dose de empatia, de solidariedade. Solidariedade, no caso, que deve ser reconstruída, seja por um exercício de humildade (em seu sentido cristão, como uma espécie de comunhão com o universo, dissolução da individualidade frente ao cósmico, de obtenção de um estado de graça) em contraposição à humilhação neoliberal (motor dos mais recentes totalitarismos); seja pela rejeição do cinismo inerte, estagnado, conivente à dominação, e pela adoção da ironia, forma poética de deslocamento de sentidos; seja pela consciência ativa de que o exílio, o vazio e a decomposição são inerentes à experiência humana, mas que, graças à criação coletiva de sentidos, ao compartilhamento de ilusões, criam-se realidades — realidades que não pertencem à natureza, realidades poéticas, excessos de linguagem, composições flutuantes que têm como condição prévia a amizade e as trocas sociais.

O texto de Bifo está alicerçado nos elementos necessárias à construção de uma tal realidade. Assim como, segundo o autor, a expansão ultramarina no século XVI causou uma inflação semiótica na Espanha e levou ao surgimento das noções poéticas de locura e desengano, de um lado, e ao surgimento de uma reação barroca, de outro, Respiração e Insurreição mergulham, em meio ao turbilhão de nossa própria crise semiótica, em uma série de mananciais que refletem sobre a contemporaneidade não apenas sob a perspectiva da racionalidade filosófica, mas também a partir da sensibilidade artística: Gilles Deleuze e Félix Guattari dividem espaço e importância com Don DeLillo, Cormac McCarthy e Jonathan Franzen, assim como Baudrillard com Bowie, Foucault com Flaubert, Sloterdijk com Shakespeare, Melville com Maravall. Ao leitor, resta a esperança de que os fractais desprendidos a partir desses encontros, dessas fricções e desses deslizamentos possam ser reorganizados para a construção de pontes capazes de vencer o abismo da falta de sentido — para que, finalmente juntos, possamos, mais uma vez, conspirar.

 

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