[Conteúdo] Carnaval/Canibal, de Jean Baudrillard

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Resumo: A hegemonia acaba com a dominação (caracterizada pelarelação senhor/escravo que é ainda uma relação dual, comum potencial de alienação, de relações de força e de conflitos). Nós interiorizamos a ordem mundial e seu dispositivo operacional, dos quais somos todos reféns bem mais que escravos. O consenso, voluntário ou involuntário, substituiu a boa e velha servidão. Se a dominação passava por um sistema autoritário de valores positivos, a hegemonia contemporânea passa, ao contrário, por uma liquidação simbólica de todos os valores. Nessa confusão vem afundar-se aprópria dominação. Todas as significações vêm se abolir no seu próprio signo e a profusão de signos parodia uma realidade que doravante não pode ser encontrada. É o que eu chamaria de carnavalização, e toda essa farsa ocidental repousa na canibalização da realidade pelos signos.

Para compreender a dinâmica da mundialização e do antagonismo mundial, é preciso distinguir entre a dominação e a hegemonia. Poderíamos dizer que a hegemonia é o estágio supremo da dominação, e ao mesmo tempo sua fase terminal.

A dominação se caracteriza pela relação mestre/escravo – que ainda é uma relação dual, com um potencial de alienação, entre relações de força e conflitos. É uma história violenta de opressão e liberação. Existem os dominadores e os dominados – também é uma relação simbólica. Tudo muda com a emancipação do escravo e a interiorização do mestre pelo escravo emancipado. Aí começa a hegemonia, com o desaparecimento da dominação dual, pessoal, conlfituante, em troca de uma realidade integral – a das redes, do virtual e de uma troca integral, em que não há mais dominadores nem dominados.

Nesse sentido, podemos até dizer que a hegemonia põe fim à dominação. Nós interiorizamos a Ordem mundial e seu dispositivo operacional, do qual somos reféns, mais do que escravos. O consenso, voluntário ou involuntário, foi substituído pela boa e velha servidão.

Se a dominação passava por um sistema autoritário de valores positivos, a hegemonia contemporânea passa, pelo contrário, por uma liquidação simbólica de todos os valores. Nessa confusão, a própria dominação é desgastada. O poder é tão somente a paródia dos signos de poder – a guerra é tão somente a paródia dos signos da guerra. Todos os significados são abolidos sob seu próprio signo e a profusão dos signos parodia uma realidade, até então inecontrável. É o que eu chamaria de “carnavalização”, e todo esse baile de máscaras ocidental reside na canibalização da realidade pelos signos. 

Mas o que é abolido, ao mesmo tempo, devorada pelos signos e simulacros, é toda a negatividade crítica, todo o trabalho do negativo. No contexto da hegemonia, todo o trabalho histórico do pensamento crítico, da relação de forças face à opressão, da subjetividade radical face à alienação, tudo isso é (virtualmente) revolvido. Simplesmente pois essa nova configuração hegemônica (que não é, de forma alguma, a do capital) absorveu, segundo os meandros da razão cínica, ou segundo a astúcia da história, o negativo, como fator de retomada.

Através de uma espécie de gigantesca síndrome de Estocolmo, os alienados, os oprimidos, os colonizados, absorvem a forma do sistema do qual eles são reféns. Eles são, então, anexados, no sentido literal: prisioneiros do “nexus”, da rede, de todas as redes, conectados pelo melhor e pelo pior.

Assim o poder pode ser visto com uma positividade, uma boa consciência e uma evidência totais. Ela se faz mundial e definitiva. Mas o jogo não está dado. Pois a negatividade, expurgada, ressurge como força antagonista do interior, como ironia, depreciação, auto-destruição interna ao poder. Pois se o escravo interioriza o mestre, o poder também interioriza o que o destrói. Ela interioriza o escravo que a nega, e ela nega a si mesma. É assim que o escravo devora e canibaliza o mestre do interior. Há uma justiça da reversabilidade. 

Portanto, a hegemonia é, ao mesmo tempo, uma forma metaestável, pois ela absorve o negativo – mas sem possibilidade de equilíbrio dialético, logo ela é  infinamente frágil. Sua vitória é apenas aparente, e essa positividade total anuncia sua própria dissolução. Ela é, então, o crepúsculo do pensamento crítico, mas também a agonia do poder.

Verdade amarga: a radicalidade não está mais junto ao conhecimento crítico. Ela não está mais próxima do colapso da realidade integral. A verdade, ou seja, a inumanidade dessa situação, pode apenas ser desmascarada do interior, pelos agentes, voluntários ou involuntários, desse peculato do real. Apenas o mal pode ainda versar sobre o mal – o mal é um ventríloquo. A inteligência crítica pode apenas saltar sobre a sua sombra.

Ela não é mais a mesma do Iluminismo e da modernidade, que tinha sua própria energia e objetivo. Ela não é mais atual, porque não estamos mais em uma situação “crítica”, de uma dominação histórica do capital. Entramos na forma hegemônica de uma realidade integral, de um poder mundial em circuito integrado, cujo pensamento negativo está ele mesmo cativo… O que resta hoje não é mais do que o epifenômeno de um mundo onde não sobra mais nada a analisar na esperança de subvertê-lo. Depois da servidão voluntária, que era o segredo do exercício da dominação, hoje se deveria falar de cumplicidade involuntária, de consenso e de conluio com a ordem global de tudo o que parece se opor a ela. 

O que toma o lugar do trabalho do negativo é um processo catastrófico. Em seu ponto de realização definitiva, o sistema se torna incapaz de se transcender para cima e começa um processo de dissolução (passando da Aufhebung como superação para a Aufhebung como liquidação). Ele gera sua própria negação por efeitos de reversibilidade muitas vezes irônicos.

Pode-se dizer que ele se canibaliza. Ele entra de alguma forma em uma estratégia fatal de desenvolvimento e declínio. Não pode impedir que seu destino se realize integralmente e, assim, ser precipitado, através dos mecanismos ostensivos de sua reprodução, em uma espécie de autodestruição.

Assim, se a negatividade se dissolve no coração do sistema, o próprio poder se auto-sabota no final de sua realização – e ao trabalho do negativo sucede um imenso trabalho de luto. Pode-se até lamentar o capital e o capitalismo. Eles não chegaram ao ponto de destruir suas próprias condições de existência? Ainda se pode falar em “mercado” e, portanto, em uma economia clássica? Em sua definição histórica, o capital presidia a multiplicação das trocas sob o sinal do valor. O mercado obedece à lei do valor e da equivalência. E as crises do capital são sempre suscetíveis de serem resolvidas por uma regulação do valor.

Já não é verdadeiro falar sobre fluxos financeiros e especulação internacional que ultrapassam em muito as leis do mercado. Ainda se pode falar de capital quando se trata de uma estratégia exponencial que leva o capital além de seus limites, em uma vertigem de trocas onde perde sua essência e se dispersa em uma circulação frenética que põe fim ao próprio conceito de troca? A troca, tendo perdido seu princípio racional, o da valor, se torna integral, assim como a realidade, tendo perdido seu princípio de realidade, se torna a realidade integral. Talvez essa seja a fatalidade do capital, ir até o fim da troca em direção a um consumo total da realidade. Estamos destinados a essa troca generalizada, a essa frenesi de comunicação e informação, que é o sinal mesmo da hegemonia. A dimensão da hegemonia é diferente daquela do capital, diferente daquela do poder em sua definição estritamente política. Não se trata mais de uma potência política ligada a uma história e à forma de representação. A representação em si mesma perdeu seu princípio e a ilusão democrática é total, não tanto pela violação dos direitos, mas pela simulação dos valores e a desrealização de toda a realidade.

Sempre a mascarada, todo mundo preso nas armadilhas dos sinais de poder e comungando na operação fraudulenta da cena política.

Assim, a transição da dominação para a hegemonia é marcada por um salto triplo perigoso – por um triplo sacrifício.

  • O capital se supera e se volta contra si mesmo no sacrifício do valor.
  • O poder se volta contra si mesmo no sacrifício da representação.
  • O sistema inteiro se volta contra si mesmo no sacrifício da realidade. Todos os três saltam sobre sua sombra.

A sombra do capital é o valor. A sombra do poder é a representação. A sombra do sistema é a realidade. Eles passam respectivamente além de tudo isso, do Valor, da Representação, da Realidade – em um hiperespaço que não é mais econômico, nem político, nem real, mas é o da esfera hegemônica.

O capital é ao mesmo tempo a realização integral do Valor e sua liquidação.

O Poder agora é a forma concluída da representação: ele não representa mais do que a si mesmo.

O Sistema é a versão integral do Real, e ao mesmo tempo sua liquidação, pelo Virtual.

Essa é a forma hegemônica.

A partir daí, o sistema funciona exponencialmente:

  • não mais a partir do valor, mas a partir da liquidação do valor.
  • não mais pela representação, mas a partir da liquidação da representação.
  • não mais a partir da realidade, mas a partir da liquidação da realidade.

Tudo em nome do que a dominação exerceu é rescindido, sacrificado, o que deveria logicamente levar ao fim da dominação. É de fato o caso, mas em benefício da hegemonia.

O sistema não se preocupa com a lei, ele joga a desregulamentação em todos os domínios. Desregulamentação do valor na especulação. Desregulamentação da representação nas várias formas de manipulação e de redes paralelas.

Desregulamentação da realidade pela informação, pelas mídias e a realidade virtual. 

A partir daí: imunidade total – não podemos mais contrariar o sistema em nome de seus próprios princípios, visto que ele os aboliu. Fim de toda negatividade crítica. Saldo de toa conta e toda história. Reino da hegemonia.

Por outro lado, não mais regulado pela representação, nem pelo seu próprio conceito, nem pela imagem de si mesmo, o sistema sucumbe à tentação final, torna-se hiper sensível às suas próprias condições finais e precipita-se além do seu fim, de acordo com a inexorável tendência de queda da taxa de realidade. De todas as formas de auto-negação, a mais grave – não mais apenas econômica ou política, mas metafísica – é a negação da realidade. Essa imensa empresa de dissuasão de qualquer referencial histórico, essa estratégia de desacreditar, de desinvestir no real que, sob a forma de paródia, de ridicularização, de mascarada, torna-se um princípio mesmo de governo. A nova estratégia – e é verdadeiramente uma mutação – é a do auto de fé dos valores, de todo o sistema de valores, da renúncia de si mesmo, da indiferenciação, da renegação e da nulidade como palavra de ordem triunfante.

A Mascarada Ocidental

Com a eleição de Arnold Schwarzenegger para o cargo de governador da Califórnia, estamos em plena mascarada, onde a política não passa de um jogo de ídolos e marketing. Este é um enorme passo em direção ao fim do sistema representativo. E esta é a fatalidade da política atual – que todo aquele que aposta no espetáculo perecerá pelo espetáculo. E isso vale tanto para os “cidadãos” quanto para os políticos. É a justiça imanente dos meios de comunicação. Você quer o poder através da imagem? Então você perecerá pelo retorno da imagem. O carnaval da imagem é também a (auto)cannibalização pela imagem. Mas não devemos concluir muito rapidamente que a degradação dos costumes políticos americanos leva ao declínio do poder. Há por trás desta mascarada uma estratégia política de grande envergadura (certamente não deliberada, isso pressuporia uma inteligência demasiado grande), que desmente nossas eternas ilusões democráticas. Ao eleger Schwarzenegger (ou ainda na eleição fraudulenta de Bush em 2000), nesta paródia alucinante de todos os sistemas de representação, a América se vinga à sua maneira do desprezo de que é objeto. É assim que ela prova sua potência imaginária, pois nesta fuga para frente na mascarada democrática, neste empreendimento niilista de liquidação dos valores e de simulação total, mais ainda do que no terreno da finança e das armas, ninguém pode igualá-la, e ela terá por muito tempo várias comprimentos de vantagem. Esta forma extrema, empírica e técnica, de ridicularização e profanação dos valores, esta obscenidade radical e esta impiedade total de um povo, aliás “religioso”, é isso que fascina todo mundo, é isso de que gozamos através mesmo do rejeito e do sarcasmo: desta vulgaridade fenomenal, de um universo (político, televisivo) enfim reduzido ao grau zero da cultura. E é também o segredo da hegemonia mundial. Eu digo isso sem ironia, e com admiração: é assim, pela simulação radical, que a América domina o resto do mundo, a quem ela serve de modelo, e ao mesmo tempo se vinga do resto do mundo que, em termos simbólicos, lhe é infinitamente superior. O desafio da América é o de uma simulação desesperada, de uma mascarada que ela impõe ao resto do mundo, até mesmo no simulacro desesperado da potência militar. Carnavalização da potência. E este desafio não pode ser enfrentado: não temos finalidade, nem contra-finalidade para lhe opor. Tanto mais que, nesta função hegemônica, o poder é uma configuração.

Ainda mais, nessa função hegemônica, o poder é uma configuração em constante mudança que metaboliza qualquer elemento em seu favor. Sua estrutura opaca pode ser composta de inúmeras partículas inteligentes. É como um corpo cujas células se renovam sem deixar de ser o mesmo. Assim, em breve, cada elemento da nação americana, como por transfusão sanguínea, terá vindo de outro lugar. A América se tornará negra, indígena, hispânica, porto-riquenha, sem deixar de ser a América. Ela será ainda mais míticamente americana, pois não será mais “autenticamente”. E ainda mais fundamentalista, já que não terá mais fundamento (mesmo que nunca o tenha tido, já que até os Pais Fundadores vieram de outro lugar). E ainda mais integracionista, já que se tornou, de fato, multicultural e multirracial. E ainda mais imperialista, já que será dirigida pelos descendentes de escravos. Assim vai o poder. Essa farsa mundial de poder passa por fases sucessivas. Primeiro é o Ocidente que, em nome do universal, impõe em todo o mundo seus modelos políticos e econômicos, seu princípio de racionalidade técnica. Isso foi a essência de sua dominação, mas não ainda sua quintessência. Sua quintessência é, além do econômico e do político, a influência da simulação, de uma simulação operacional de todos os valores, de todas as culturas – e é aí que hoje se afirma a hegemonia. Não mais pela exportação de técnicas, valores, ideologias, mas pela universalização extrapolada de uma paródia desses valores.

Os países subdesenvolvidos se alinham em um simulacro de desenvolvimento e crescimento, eles mantêm sua independência através de um simulacro de democracia, e todas essas culturas em vias de extinção sonham com uma reabilitação fantoche. Todos são fascinados pelo mesmo modelo universal, do qual a América, aliás, é a primeira vítima, mesmo tendo contado com os benefícios. Assim, depois de impor sua dominação através da História, o Ocidente agora impõe sua hegemonia através da FARSA da História.

Carnaval / Canibalismo

De acordo com a famosa fórmula de Marx sobre a história que se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa, a modernidade pode ser concebida como a aventura inicial do Ocidente europeu, e depois como uma enorme farsa que se repete em escala global, em todas as latitudes onde os valores ocidentais (técnicos, econômicos, políticos ou religiosos) são exportados. Essa “carnavalização” passa pelos estágios históricos da evangelização, colonização, descolonização e globalização. O que se vê menos é que essa hegemonia, esse domínio de uma ordem mundial cujos modelos – não apenas técnicos e militares, mas culturais e ideológicos – parecem irresistíveis, é acompanhado por uma reversão em que esse poder é lentamente minado, devorado, “canibalizado” pelos mesmos que são carnavalescos.

O protótipo dessa canibalização silenciosa, sua cena primitiva, por assim dizer, seria aquela solene missa em Recife, no Brasil, no século XVI, onde os bispos que vieram especialmente de Portugal para celebrar sua conversão em massa foram devorados pelos índios por excesso de amor evangélico (do canibalismo como forma extrema de hospitalidade). Vítimas dessa farsa evangélica, os índios a retomam espontaneamente, absorvendo fisicamente aqueles que os absorveram espiritualmente.

A quintessência, além do econômico e do político, é o domínio da simulação, de uma simulação operacional de todos os valores, de todas as culturas – e é aí que a hegemonia é afirmada hoje em dia. Não mais pela exportação de técnicas, valores, ideologias, mas pela universalização extrapolada de uma paródia desses valores. São em um simulacro de desenvolvimento e crescimento que os países subdesenvolvidos se alinham, é de um simulacro de democracia que eles mantêm sua independência e é com uma reabilitação fantoche que todas essas culturas em vias de extinção sonham – todos fascinados pelo mesmo modelo universal (do qual a América, aliás, apesar de esperar os benefícios, é a primeira vítima). Assim, depois de impor sua dominação pela História, o Ocidente agora impõe sua hegemonia pela FARSA da História.

Continue a leitura aqui, em francês.

Fonte: Revista FAMECOS

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