O cuidado de si parece caracterizar muito bem a vida filosófica tal como a Antiguidade a concebia. Na Apologia, Sócrates diz estar orgulhoso da vida que ele teve, vida totalmente consagrada a despertar em seus concidadãos o cuidado de si, missão que lhe foi conferida pelos deuses e que ele cumpriu em benefício dos outros e pelo seu próprio desinteresse. Foucault identifica esse princípio do cuidado de si oito séculos mais tarde em Grégoire de Nysse, no contexto do ascetismo cristão. Entretanto, a exigência do cuidado de si reinou em todas as escolas, epicurianas, estoicos, até a espiritualidade alexandrina (grupo dos “Terapeutas” citado por Fílon). O cuidado de si não caracteriza tão somente um modo de vida filosófico mas parece recobrir uma prática social mais ampla. Plutarco cita o seguinte aforismo lacedemónio: perguntaram à Alexandre porquê os espartanos confiavam suas plantações a escravos. Ele respondeu: “Porque preferimos ocuparmo-nos de nós mesmos”. Observamos que o cuidado de si pode ser entendido aqui como uma prática que indica uma distinção social, um privilégio de grupo. Essa presença formidável do cuidado de si na cultura antiga compõe um princípio estruturante do sujeito ético. Entretanto, Foucault observa que essa dimensão, no interior da experiência moral, diminuiu gradualmente na nossa cultura moderna. A temática cristã da renúncia de si, a denúncia clássica do amor próprio e a condenação kantiana do egoísmo progressivamente tornaram incompatíveis os princípios da moral com a afirmação de um cuidado de si. Para além disso, no nível da experiência filosófica, Foucault constata o privilégio do tema do conhecimento de si em detrimento do cuidado de si. No campo da vida filosófica, os problemas de método da verdade terminaram por recobrir aqueles de uma ética da vida verdadeira. A filosofia questiona a possibilidade geral da verdade, e não mais o preço que deve pagar um sujeito para abrir-se à uma verdade.
Esse cuidado de si, tão presente na cultura antiga, não é, entretanto, homogêneo em todas as suas manifestações. É essa história de um cuidado de si, na qual a idade do ouro se situaria nos dois primeiros séculos da nossa era, que Foucault tenta investigar. A primeira análise é constituída pelo Alcebíades, de Platão. Nesse diálogo, Sócrates aborda Alcebíades para anunciar que está na hora, agora que ele é adulto e pretende exercer funções públicas, de cuidar, enfim, de si mesmo. O princípio do cuidado de si é, portanto, colocado em condições precisas. É numa idade crítica (passagem do status de rapaz ao de adulto) que ele seria pertinente. Sócrates lembra também a Alcebíades que ele recebeu uma educação pobre: a urgência do cuidado de si é, portanto, precisamente finalizada: cuidamos de nós mesmos para podermos exercer funções importantes na cidade, o cuidado de si concerne exclusivamente a elite política. É ainda nesse diálogo que aprendemos o que é o si do cuidado (o sujeito da ação) e a principal forma de cuidado (conhecimento de si pelo reflexo de sua alma no elemento divino). O cuidado de si distingue-se ainda, por Sócrates, da atividade médica (o médico que se cuida ocupa-se de seu corpo), econômico (o bom gerente ocupa-se do que é dele, e não dele) e amorosa (o cuidado amoroso concerne o corpo). É preciso notar, entretanto, que nesse diálogo, ao menos, o contexto da emergência da problemática do cuidado de si é a erótica (relação de Sócrates e Alcibíades).
A análise do diálogo de Platão serve a Foucault como ponto de partida para fixar os pontos importantes de uma problemática do cuidado de si na Grécia clássica. É a partir dali que aparece a profunda mutação do príodo helenístico. O cuidado será pensado, cada vez mais, como uma exigência incondicional. Deveríamos cuidarmos-nos por toda a nossa vida. O cuidado se torna uma obrigação permanente que concerne a todos: jovens, velhos, homens maduros. A forma principal do cuidado de si não é mais dada pela figura do jovem rapaz ambicioso, mas pela do velho, que encontra no ostracismo da aposentadoria e no enfraquecimento dos desejos uma forma de aperfeiçoar o cuidado de si. Ele não aparece mais na lacuna deixada pela educação deficiente de uma elite: ele é a correção perpétua da existência. Ele é mais concebido pelo modelo médico que pelo modelo pedagógico. O cuidado de si encontrará nos primeiros séculos de nossa era uma intensificação: obrigação que continuará por toda a existência. Foucault também nota uma generalização: ele não é mais dirigido a uma elite social, mas torna-se um princípio universal (em direito: pois de fato ele continua a se articular como um fenômeno sectário). A segunda grande série de transformações do cuidado de si concerne a relação com o outro. No Alcebíades, o cuidado de si exigia a intervenção de um outro (sob os comandos de um mestre de memória que reconduz a alma para verdades esquecidas). Na cultura helenística, a intervenção de um outro é, com certeza, sempre colocada como necessária. É que não podemos sair sozinhos do que Sêneca nomeará stultitia (negligência de si): a constituição de um si como objeto de trabalho supõe a intervenção de um mestre que abre em nós a dimensão do si. Esses mestres do si, operadores de subjetividade, podem trabalhar em escolas. É a forma helênica adotada por Epicteto. Mas pode tratar-se também (forma romana) de um conselheiro privado. Nesse último caso, perdemos a figura do filósofo de carreira (o Cínico, sujo, de língua rude e grossa). O mestre do si é como um grande senhor do saber socializado, e seus serviços da alma inscrevem-se no contexto mais amplo dos deveres sociais. Mas a relação com o outro, prevista no cuidado de si, se transforma também no sentido de uma inversão de subordinação. No Alcebíades, o cuidado de si era exigido apenas como preliminar do governo dos outros. Mais tarde, identificamos a ideia ao contrário de uma autofinalização do cuidado de si: devo cuidar de mim mesmo, mas a fim de poder gozar comigo mesmo, a fim de encontrar a salvação nessa possessão integral. A ideia de uma salvação de si por si mesmo não é referida a uma problemática qualquer de um além ou de uma imortalidade da alma: mas na estrita imanência do presente que é operada pela autorrealização de si. A salvação do outro aparece, então, como a continuidade natural do cuidado de si exacerbado. Foucault cita a concepção epicuriana da amizade como desejável em si, mas que tem seu princípio na utilidade recíproca, e na concepção estoica do ser comunitário confiada a ele mesmo pelos deuses.
Essa perspectiva de uma autofinalização do cuidado de si encontra sua expressão no tema da conversão a si. Distinguimos ordinariamente dois grandes tipos de conversão: de um lado, a conversão platônica, que é o despertar da alma para as suas condições originárias, retorno à fonte primeva, e que, a partir da oposição de um mundo sensível a um mundo inteligível, é operada pelo conhecimento; por outro lado, a conversão cristã, que designa, na renúncia de si, uma ruptura total, uma mutação repentina, um segundo nascimento da alma. Entre esses dois grandes modelos culturais, seria necessário, segundo Foucault, situar uma conversão particular ao período helenístico. Essa conversão implica em um retorno a si como liberação, operando na imanência do mundo; ela não é ruptura, mas finalização, realização de um retorno a si: processo contínuo de autosubjetivação. Essa conversão do olhar que aceita dirigir-se a si mesmo não toma a forma de uma contemplação narcísica, ou de um exame doloroso de suas imperfeições. Trata-se de uma concentração sobre si de tipo atlético: esforço e tensão mantidos na trajetória de si a si. Essa concentração atlética não significa um desvio absoluto de todas as coisas do mundo, um refúgio em si. Toda essa cultura do si implica, pelo contrário, na aprendizagem de uma série de conhecimentos (a fisiologia para os epicurianos, o conhecimento pelas causas das Questões naturais de Sêneca, etc). Esses conhecimentos necessários ao cuidado de si são conhecimentos ethospoiéticos: trata-se de um saber que encontra sua extensão imediata em uma atitude ética. É assim que, na escola estoica, o estudo da Natureza só é justificado enquanto ela serve de operadora ao aperfeiçoamento do cuidado de si. O percurso teórico do mundo sensível para contemplar as esferas do inteligível, o estoicismo de Sêneca supõe, a partir da aplicação de um saber do mundo, um sutil movimento de recuo pelo qual eu situo minha existência no curso ordenado do mundo.
Até aqui nós examinamos os eixos de evolução, bem como a estruturação interna do cuidado de si. Mas esse último pode ainda ser detalhado via uma série de exercícios concretos. Esses exercícios podem tomar a forma de um regime de abstinência e treinamento do corpo à resistência. Mas existem também as provas de treinamento do pensamento. Podemos citar o controle das representações em Epicteto, a meditação dos maus futuros e da morte em outros.
Mas a ascese toma a forma também de um equipamento de discursos graça aos quais nós poderemos afrontar qualquer evento. Não se trata de reminicência: o modo de presença desses discursos verdadeiros não é o mesmo das lembranças, que convocam, por sua vocação, o exercício paciente da memória. Mas esses discursos verdadeiros também não são, como na exegêse cristã, ligados a técnicas de análise de si e da confissão. Entre a reminicência e a hermenêutica, as escolas helenísticas inventaram um uso dos discursos como instrumento de defesa e armadura.
Esses discursos verdadeiros deverão ser integrados, assimilados, a fim de funcionarem como proteções imediatas quando o imprevisto ameaça. Então surge o problema das técnicas de apropriação desses discursos. Foucault demonstra, sobre esse ponto, práticas regulamentadas de escuta (regra do silêncio ativo), e de escrita (constituição dos compêndios de citações que devem ser repetidas e sobre as quais deve-se meditar). É aí que aparece, pela primeira vez desenvolvido, o tema da parresía. A parresía designa o que responde, no que concerne o mestre, à obrigação de silêncio do discípulo: dizer-a-verdade no caminho da ascese estendida, por sua estrutura da confissão cristã. Essa parresía, esse falar-verdadeiro do mestre, se opõe a duas outras figuras: a lisonja (que visa a servidão do outro quando a parresía visa a independência), e a retórica (para a qual a verdade não importa, mas sim a persuasão).
Fonte: Frédéric Gros. Michel Foucault. Paris: Que sais-je?, 2022.
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