O ‘Manifesto Cyborg’ foi publicado pela primeira vez na revista Socialist Review em 1985, o que faz com que o texto complete 21 anos de publicão em 2006. Quais eram seus objetivos e motivações para escrever este ensaio?
DH: Havia dois tipos de posicionamentos públicos que no contexto do feminismo socialista americano e, mais amplamente, dos novos movimentos de esquerda no início dos anos 80. Do ponto de vista dos Estados Unidos, pouco depois da eleição do coletivo Reagan, a Socialist Review pediu a mim e a muitas outras pessoas – Barbara Ehrenreich e outras – para escrever cinco páginas para questionar que tipos de mudanças políticas urgentes deveriam ser feitas. Perguntamos-nos que tipo de futuro poderia haver em nossos movimentos no contexto das eleições de Reagan, e claro que essa eleição representou muito mais em termos de assuntos culturais e políticos, não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Thatcher na Inglaterra simbolizava um pouco disso, mas era muito mais do que qualquer formação nacional.
Isto também tem origem na minha própria história como bióloga. Meu doutorado é em biologia. Eu amava a biologia e me envolvi apaixonadamente com seus projetos de conhecimento: suas materialidades, organismos e mundos. Mas eu também sempre habitei a biologia a partir de uma formação acadêmica igualmente poderosa na literatura e filosofia. Politicamente e historicamente, eu nunca poderia compreender o organismo como algo tão simples. Eu estava muito interessada na forma como o organismo é um objeto de conhecimento, como um sistema de produção e divisão de energia, ou como um sistema de divisão de trabalho com funções executivas. Esta é a história do ecossistema como um objeto que só poderia surgir no contexto da gestão de recursos, o rastreamento de energias através de camadas tróficas, os aparelhos de marcação feitos possíveis pelas instalações nucleares do Rio Savannah, e o surgimento de interdisciplinaridades em tempo de guerra na cibernética, química nuclear e sistemas de teorias.
Nunca foi realmente possível para mim habitar a biologia sem uma espécie
de consciência impossível da historicidade radical destes objetos de
conhecimento. Você lê pessoas como Foucault e nunca mais é o mesmo.
Mas eu nunca fui uma pós-moderna fora de uma tradição fundamentalmente literária ou arquitetônica. Para mim, sempre foi sobre as materialidades de instrumentação de organismos e laboratórios, [eu estava] realmente interessada nos vários não-humanos em cena. O ‘Manifesto Cyborg’ veio de tudo isso.
NG: E, é claro, o “Manifesto” também é um marco para a teoria feminista.
DH: Ele é um documento teórico feminista – um acerto de contas com o mundo no qual vivemos e a pergunta “O que deve ser feito?”. Os manifestos provocam por questionarem duas coisas: que situação infernal é essa em que estamos, e o que fazer? A pergunta “O que deve ser feito?”, ques está no documento de Lenin, de 1902, mas com uma resposta bem diferente de seu chamado por um partido controlado de revolucionários dedicados.
NG: Você disse que existiria leitores que “tomariam o ‘Manifesto Cyborg’ devido a sua análise tecnológica” mas ao mesmo tempo tendiam a “deixar o feminismo de lado” (Haraway, 2004: 325). Talvez esse seja um bom começo para nós. Em que sentido o “Manifesto Ciborgue” é um manifesto feminista? Desde então você tem falado de um “feminismo que não inclui a Mulher, mas é para mulheres” (2004:329). Qual é a base desse feminismo?
DH: Bom, isso é complicado e temos poucos estudos sobre isso. Nas palavras de bell hooks, como verbo, o feminismo é sobre mulheres agindo, e não sobre um tipo particular de dogma. Eu estava entre muitas da minha geração. Estava envolvida nos movimentos políticos de liberação das mulheres que surgiram no fim dos anos 60, e há ali uma herança muito pessoal que tem a ver com segmentações de classe e raça: minha compreensão do poder e dos limites de meu próprio feminismo histórico em meus pequenos coletivos mundos.
Mas também há uma herança muito maior de tentar lidar com a esperança impossível de que a desordem estabelecida não seja necessária. Essa herança é da teoria crítica e vê o feminismo como um ato de recusa do sofrimento profundo na vida das mulheres em todo o mundo e no fundo da história, ao mesmo tempo em que se chega a um acordo [com o fato de] que nem todas tem sofrido. Há algo na vida das mulheres que merece ser celebrado, nomeado e vivido, e há algumas necessidades culturais e organizacionais urgentes entre nós – quem quer que esse “nós” seja.
O feminismo era uma herança complicada, um lugar de política urgente e um lugar de prazeres intensos de fazer parte do movimento feminino. Tudo isso
vinha a mim como cientista, e não como uma cientista antiga, mas como bióloga, e como uma católica recusando a igreja, mas nunca sendo capaz de ser uma humanista secular. A semiose é sanguinolenta e carnal e vive de algum tipo de incapacidade de ser muito feliz com uma semiótica que supostamente é apenas sobre o texto em algum tipo de forma rarefeita. O texto é sempre carnal e
regularmente não humano, não feito, não homem. Isso era feminismo à época e ainda é para mim.
NG: Alguns leitores do “Manifesto” observaram que “você insiste na feminilidade do cyborg” (Haraway, 2004: 321). Isso está certo? Em uma passagem chave você diz que “o cyborg é uma criatura de um mundo pós-gênero” (1991a: 150), mas desde então você declarou que “nunca gostou” do termo “pós-gênero” (Haraway, 2004: 328). Por que isto acontece? Em um mundo de travestis em
que as fronteiras entre natureza e cultura não são mais claras, o conceito de “pós-gênero” parece ser útil. Na conclusão do “Manifesto”, você faz alusão ao “sonho utópico” de “um mundo monstruoso sem gênero” (1991a: 181). É a idéia de ir além do gênero, então, nada mais (ou menos) do que um “sonho utópico”?
DH: Não! Claramente o gênero está tão ativo quanto nunca entre nós. Há poucos ruídos nele, mas ele é refeito de várias maneiras. E há um mundo ‘trans’ em curso que faz do gênero o substantivo errado. As pessoas ‘trans-‘ estão fazendo alguns trabalhos teóricos realmente interessantes, incluindo uma ex-aluna minha – Eva Shawn Hayward – que se recusa a fazer isso em relação às pessoas (2004). Todos os tipos de coisas interessantes estão acontecendo sob os prefixos pós e trans- . Não é um sonho utópico, mas um projeto de trabalho cotidiano. Eu tenho problemas com o caminho que as pessoas seguem para um mundo utópico pós-gênero – “Ah, que significa que não importa mais se você é um homem ou uma mulher”. Isso é não é verdade. Mas em alguns lugares da fantasia e do mundo, na verdade é verdade, ambos por boas e más razões.
NG: Então como você pensa o genêro num mundo em que a transversalidade está em ascenção?
DH: Pela forma como Susan Leigh Star e Geoff Bowker me ensinaram a pensar: categorias funcionam (veja Bowker and Star, 1999). Não endeuse a categoria. Não
faça uma crítica e pense que ela simplesmente desaparece porque você fez uma crítica. Só porque você ou o seu grupo chegou a entender como ela funciona, isso não a faz desaparecer, e porque você descobre como é feito não significa dizer que é inventado.
Fonte: Sage Journals
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