[Artigo] A força da revolução e os limites da democracia

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Comuna de Paris, maio de 1871.

por Vladimir Safatle

É claro que vivemos em um momento histórico de fortalecimento do ceticismo em relação à democracia. No entanto, há de se perguntar se todas as formas de tal ceticismo são meras expressões de regressão social diante da insegurança econômica generalizada e do aumento do medo como afeto fundamental de coesão social. Seriam todas essas formas de ceticismo impulsionadas pela procura por figuras autoritárias de poder capazes de ser a expressão do ressentimento gerado pela experiência da despossessão social e da insegurança? Ou haveria formas de ceticismo em relação à democracia que expressariam algo outro, a saber, o descontentamento com o modo de existência que a democracia liberal procura naturalizar enquanto forma mesma da liberdade e da emancipação? É como se, neste caso, houvesse um mal-estar vinculado a uma espécie de paradoxo imanente à democracia liberal: o paradoxo próprio a um discurso que promete realizar socialmente a liberdade no mesmo momento em que a impede.

Note-se que não se trata apenas de afirmar que a democracia liberal, da forma que a conhecemos, estaria tão articulada à preservação de setores hegemônicos da economia que suas promessas de igualdade nunca poderiam se realizar, como se uma maior regulação dos agentes econômicos e uma política efetiva de redistribuição pudessem enfim garantir as condições de liberdade social e de desenvolvimento das singularidades – ou seja, como se a critica a fazer fosse a respeito da extensão da intervenção econômica no campo politico.

Trata-se de afirmar algo ainda mais fundamental, a saber, a maneira como a democracia até agora pensou a emergência de seu kratos, a emergência da força, do domínio, da potência que a constitui, desta força que seria atributo do povo e que ela confunde com o próprio exercício da política, impede que algo de fundamental na noção de liberdade se realize. Ou seja, trata-se de afirmar que a própria metafisica inerente a concepção de “força” imanente a democracia, ao menos em sua versão liberal, necessita de revisão. Pois é verdade que talvez estejamos assistindo ao fim da força da democracia. Mas é provável que tal fim se confunda também com sua finalidade. A democracia termina não porque ela foi golpeada de fora, mas porque e vitima de regressões que ela mesma produz em seu funcionamento normal. Mas, com o conceito de força que ela naturaliza, a democracia não poderia ter outro destino a não ser sua própria perda.

Nesse sentido, talvez seja necessária destituir a força da democracia para que outra força emerja, de forma a realizar o conceito de liberdade, sem que tal realização passe a seu contrario. Mas ha de se esclarecer esse ponto, pois normalmente afirma-se a necessidade de destituir a força da democracia em situações nas quais se procura defender que tal força seria, na verdade, demasiado fraca. Como se fosse questão de apelar a alguma forma de governo forte marcado pelo decisionismo soberano. Como se o respeito as varias instancias deliberativas que compõem a democracia só pudesse levar ao enfraquecimento da força política e de sua capacidade de decisão.

No entanto, não é esse o caminho que gostaria de trilhar. Na verdade, o problema da força da democracia não é sua pretensa fraqueza, mas a maneira como ela constitui seus sujeitos. A força é um poder constituinte de subjetividades, de determinação de modos possíveis de ação e reconhecimento, e há de se entender quais formas de subjetividade a democracia, em sua versão liberal, produz e faz circular. Para além da multiplicidade de modos de vida que a democracia permite, há uma repetição que visa dar forma a tal multiplicidade, regulá-la quando ela passa ao campo politico, e devemos estar atentos a tais regimes de repetição.

Ou seja, muitas vezes afirmamos que nossa concepção atual de democracia funciona como uma democracia sem demos. Como se o problema fundamental fosse o modo de garantir a emergência do demos, o modo de garantir a afirmação da soberania popular. É isso que as estratégias de reinvenção populista da democracia procuram realizar: reatualizar os modos de emergência do demos a partir de processos identificatórios com figuras que conseguiriam representar a heterogeneidade do campo social ao se colocar como significantes vazios capazes de permitir o basteamento de um conjunto contraditório de demandas sociais. No entanto, eu insistiria na existência de um problema talvez mais fundamental, ligado à necessidade de uma democracia que opere com outra forma de kratos. O problema não são apenas as formas de emergência do demos, mas as modalidades de configuração de sua força. Trata-se de perguntar: o que pode significar exercitar o poder? Deveríamos lutar apenas por uma mudança topológica no lugar dos que detêm o poder ou por uma mudança estrutural na gramática do exercício do poder? Uma mudança que transforma as noções próprias ao poder em exercício, como deliberação, decisão e agência?

A tese a ser defendida aqui é que a força, na democracia- principalmente em sua versão liberal-, tem três atributos fundamentais. Primeiro, ela é expressão de uma ipseidade, ela é o exercício de um “estar junto de si e de pertencer a si mesmo”. Como lembrara Derrida, o kratos na democracia é acima de tudo uma ipse. Nesse sentido, ela só pode definir os modos de existência e organizar os regimes de fala a partir dos usos políticos da noção de identidade e de propriedade, já que, na democracia, a força é uma propriedade dos agentes, e não algo que os atravessa. As demandas sociais passam à existência como multiplicidade de demandas organizadas em sua enunciação identitária. Assim, mesmo a distinção entre cosmopolitismo liberal e nacionalismo populista é falsa. Entre um conjunto de identidades em regime de tolerância e uma identidade totalizante não há diferença, há declinações possíveis de uma mesma ipse, que pode ser pensada como identidade unitária ou como identidades em multiplicação. Há afirmações da mesma gramatica das propriedades.

Nesse contexto, liberdade aparece como estar sob jurisdição de si mesmo, pertencer a si mesmo, como autonomia conquistada. No entanto, esse conceito de liberdade como identidade socialmente realizada e autonomia conquistada impede uma real organização de processos políticos que não visam a afirmação do potencial de deliberação e escolha consciente dos sujeitos, mas a transformação da agenda em abertura ao que se organiza de forma inconsciente. Nesse horizonte, não há espaço, por exemplo, para uma agência que não seja exatamente dos sujeitos, mas dos objetos. Perpetua-se assim o dogma moderno de que a única forma de agência é aquela atribuída aos sujeitos e que a única forma possível de atribuição de agência aos objetos seria por meio das temáticas do fetichismo, da alienação e da reificação. Como se toda causalidade externa a determinar a ação dos sujeitos devesse ser vista como alienação a ser combatida. Essa é uma maneira de submeter a liberdade à noção de ser proprietário de si mesmo, impedindo a emergência não apenas de uma comunidade de sujeitos livres, mas de uma comunidade de sujeitos e de coisas livres, o que é a única realização social efetiva do conceito de liberdade, uma relação social na qual sujeitos e coisas estejam livres, não submetidos à posse, à função e à unidimensionalidade.

Em segundo ligar, o kratos da democracia e força que se realiza como plasticidade da representação. A representação é a gramática que define o modo de existência das identidades no interior da democracia; e o dispositivo geral de organização do campo do comum. Nesse sentido, mesmo o que acontece em esferas anti-institucionais e não estatais tende a se realizar como representação, pais, na democracia, só o que é representável pode existir.

Insistamos mais neste ponto. Uma das ideias fundamentais da política moderna e a noção de representação. Aprendemos a compreender o espaço politico como um espaço de conflitos organizado a partir de uma dinâmica especifica de constituição de atores. Essa dinâmica estaria necessariamente ligada aos processos de representação. Assim, só poderiam participar do campo de conflitos políticos aqueles que se submeteram a representação, ou seja, aqueles que representam algo, que falam em nome de um lugar que representam, seja este lugar um grupo, um setor de interesses, um partido, uma associação, um general. Em suma, o pressuposto central aqui e: uma multiplicidade não se apresenta de forma imediata, ela só pode existir como algo representado.

Varias consequências se seguem dai. Por exemplo, dentro dessa visão, uma sociedade plural seria aquela que permitiria a emergência de vários representantes e representações ao mesmo tempo. Quanta mais representações diversas, mais plural a sociedade. No entanto, por mais diversas que tais representações sejam, elas devem partilhar algumas coisas em comum, pois a representação tem suas regras, tem seus modos de contagem, tem sua gramática, tem seus acordos. Aceitar sua gramática significa aceitar como as lutas se darão, em qual espaço, como os conflitos serão resolvidos. Nesse sentido, ao menos para tal forma de pensar, existir politicamente e aceitar se submeter a regras, modos de contagem, gramáticas e acordos. A essa submissão, chamamos normalmente “democracia”.

Por fim, o kratos da democracia e uma força indissociável da internalização de sua própria suspensão. Isso porque o funcionamento normal da democracia liberal exige que a forçado demos seja restringida a espaços eleitorais, enquanto as múltiplas esferas das relações econômicas entre classes, das relações de trabalho, das relações de gênero e raciais, assim como os os os da forças em situações “excepcionais” de insegurança, são geridas a partir da violência e da anomia. As conquistas das lutas sociais em relação às modificações do ordenamento jurídico tendo em vista a defesa de classes vulneráveis demonstram-se, na democracia, frágeis, provisórias e de alcance extremamente limitado. A democracia não é o regime de garantia da integridade dos sujeitos a partir do exercício da lei. Ela e o regime que possibilita múltiplas formas de suspensão da lei e de plasticidade de seus modos de aplicação. Não há democracia liberal sem a violência disciplinar, essa violência muda e não ordenada juridicamente, nas fabricas, nas escolas, nos hospitais, nos campos. Violência das técnicas de recursos humanos, da ergometria das linhas de montagem, da dopagem contra o sofrimento psíquico. 

Assim, a democracia que conhecemos funda-se em uma noção de força compreendida como o que se exercita enquanto identidade, o que passa a existência como representação o que é impotente diante da violência de sua própria negação sem retomo. Nesse sentido, se estamos discutindo as modalidades de configuração da força que é própria a democracia, deveremos discutir as possibilidades de superar um exercício politico baseado na identidade, na representação na negação interna de seu próprio ordenamento.

Frase de Maio de 1968: Seja realista, peça o impossível.

POPULISMO E REVOLUÇÃO

Há várias maneiras de discutir este ponto, mas eu gostaria de explorar aquela que diz respeito a uma articulação possível entre democracia e revolução, pois sabemos como o conceito de revolução atualmente parece esgotado. Eixo fundamental da própria noção de política nos séculos XIX e XX, ele viu, a partir dos anos 1980, seu lugar central no processo de realização das expectativas de emancipação social ser cada vez mais questionado. Esse abandono se deu, muitas vezes, em nome de análises históricas que apontavam para, em larga medida, três fatores: a transformação dos processos revolucionários do século XX em sociedades burocráticas, a inexistência atual de sujeitos políticos capazes de se colocar coma agentes naturais da ação revolucionaria desde a integração da classe trabalhadora do proletariado ao estado do bem-estar social, e, por fim, a dependência do conceito de revolução em relação a uma filosofia da historia de cunho teleológico e necessitariasta. Como se a revolução, coma forma de insurgência, fosse indissociável da perda de seu élan transformador, a partir do momento em que passasse à condição de governo, ou indissociável de uma teleologia que destrói toda possibilidade de acontecimento em prol de uma filosofia do progresso histórico.

Contudo, argumentos dessa natureza, historicamente situados, são limitados. Que as primeiras realizações do conceito de revolução tenham se esgotado não implica que estejamos diante de uma limitação imanente à potência do próprio conceito. Da mesma forma que as primeiras atualizações do conceito de república se demonstraram falhas sem que o próprio conceito de república fosse, por isso, descartado. A revolução é um conceito a ser construído a partir de sua revisão interna. Para além do problema complexo da violência (até porque há situações nas quais a insurreição revolucionária tem violência direta meramente residual), deveríamos insistir no fato de haver outra força que a revolução permite emergir, e é isso que as teorias atuais da democracia tem dificuldade em aceitar, ou seja, que na esfera do político a primeira transformação necessária seja no conceito de “força”.

Não se trata apenas de pensar a revolução como a emergência da força de outros agentes que até então estavam em posição subaltema ou não contada. ‘Trata-se de compreender que a revolução é, inicialmente, processo de destituição da própria noção de agenda que até então imperou. Antes de ser uma açamou um conjunto coordenado de ações, uma revolução é a destituição de certa agência, ela é o abandono de certa ideia de ação, e, assim, o fim de certo conceito de sujeito. Por isso, toda revolução é o campo de emergência de uma força até então impossível de existir e de uma subjetividade até então impredicada. É por não saber mais o que tal reinstauração da noção de força pode significar que a contemporaneidade abandonou a noção de revolução e, em seu lugar, o populismo se tornou, entre nós, o único modo de pensar a emergência política de processos anti-institucionais capazes de constituir novas sujeitos.

Nesse sentido, a tese fundamental que defendemos aqui é: o conceito de populismo cresce atualmente por uma dupla razão. Primeiro, devido à consciência tácita, principalmente depois da crise econômica de 2008, do caráter meramente formal da democracia liberal diante da necessidade de reinstalação de outra ordem econômica. Ou seja, o populismo, tanto à direita quanta à esquerda, foram capazes de incorporar o descontentamento com a ausência de alterativa econômica em circulação no interior dos embates eleitorais da democracia parlamentar e tirou disso a sua força. Ele politizou tal descontentamento ao afirmar que a representação esvaziou a democracia de sua força e a afastou de seu demos, e que ela instaurou um modo de existência que leva a força política ao limite da inexistência. Assim, tais estratégias populistas apelam a uma dimensão anti-institucional da política e a incorporação de tal potencia anti-institucional a partir da construção do povo coma categoria fundamental de ação. A força do populismo vem do fato de ele ter sido capaz de ouvir uma inexistência.

Em segundo lugar, o populismo voltou a aparecer coma alterativa a uma política radical por ocupar o lugar da necessidade de recuperação do conceito de revolução. Populismo e revolução pressupõem formas de reinstalação institucional. No entanto, há algo que os diferencia, e isso gira em tomo do conceito de força em política. O populismo não modifica a noção de força, ele a incorpora em outros sujeitos, em sujeitos até então invisíveis no interior do exercício do poder. Por isso, ele nunca escapará de um horizonte institucional definido pela própria democracia liberal. Populismo e democracia liberal são, na verdade, dois momentos do mesmo conceito de política, que oscila naturalmente entre institucionalismo e anti-institucionalismo. Não há democracia liberal sem recurso periódico ao populismo e posterior enquadramento das dinâmicas políticas em um “curso normal” (não há de se pensar apenas nos EUA e em Trump, mas na Itália e em Berlusconi, na França e em De Gaulle, uma estratégia populista conservadora par excellence).

Por isso, podemos fazer dois tipos de critica ao populismo. A primeira delas diz respeito à degradação de sua capacidade de transformação. O modelo de construção do corpo politico a partir de uma série de equivalências composta por demandas contraditórias pode ter força momentânea por conseguir dar agência a setores da população até então políticamente emudecidos. No entanto, sua prática de governo se transforma rapidamente em uma gestão de paralisia, pois as demandas contraditórias começam a anular umas às outras, criando uma dinâmica de inércia e dependência cada vez maior de uma política de liderança. A história das práticas populistas é uma história de avanço inicial, de paralisia e de degradação final.

Mas há outra crítica a ser feita: as estratégias populistas não são capazes de modificar o conceito de força política. Seu modo de existência político pressupõe a submissão da política à identidade, à representação e à constituição soberana da liderança. A transformação do povo em categoria política fundamental, tanto para processos de emergência quanto para processos de governo, é indissociável da elevação de práticas de imunização de fortalecimento indenitário a estratégias políticas centrais. Isso não poderia ser diferente, já que o conceito de povo é um conceito nacional e, portanto, expressão do modo de consolidação do estado-nação. Ao se transformar em conceito central nas dinâmicas de governo, e não apenas nas dinâmicas de emergência, o povo traz consigo a imagem de uma origem, de um risco contra o qual será necessária se imunizar, de uma territorialidade a defender. Mesmo os múltiplos sujeitos de demandas sociais que são organizados no interior do sistema populista de equivalências não modificam suas identidades no processo de emergência populista. Não há transformação dos sujeitos de enunciação . Eles consolidam seus lugares e negociam políticamente a partir de suas identidades supostas e seus interesses representados.

Por isso, longe de simplesmente desqualificar a estratégia populista de reconstituição da democracia a partir da emergência do demos, faz-se mais necessária insistir em seus limites e, diante desses limites, apontar para a necessidade contemporânea de rever o conceito de revolução. No entanto, compreender esse ponto exige responder a uma pergunta que apenas aparentemente é simples: o que devemos entender atualmente par “revolução “?

Frase de Maio de 1968: Só a verdade é revolucionária.

NÃO VOLTAR AO MESMO LUGAR

Jacques Lacan insistia que “revolução ” normalmente significa, como sabemos a respeito dos movimentos astronômicos, “voltar ao mesmo lugar”. Ao comentar a revolução copernicana, tão usada coma metáfora de mudança epistêmica na filosofia (Kant e a crítica como revolução copernicana) e mesmo na psicanalise (Freud e a revolução copernicana do inconsciente), Lacan perguntava-se: “o que há de revolucionário no recentramento do mundo solar em tomo do Sol?”[i]. Era uma maneira de afirmar que não havia mudança alguma por meio da conservação da hierarquia, da unidade e da centralidade que a noção de movimento esférico na condição de forma celeste perfeita representava. A verdadeira revolução encontrava-se no advento do movimento elíptico, proposto por Kepler, ou seja, da noção de dais centros como forma dos movimentos celestes. Nisso se nota que a revolução, se não quiser ser um retorno ao mesmo lugar, seria indissociável de uma mudança na estrutura do saber, não apenas nos lugares que cada elemento ocupa no interior de uma estrutura dada, não apenas nos detentores do saber e do poder, mas no que saber e poder significam até agora e produzem. Se retirar a Terra do centro do sistema e colocar em seu lugar o Sol não era exatamente uma revolução, e porque a revolução não podia ser pensada como uma mudança topológica, mas como uma reinstauração global de modos de existência.

Essa reinstauração global de modos de existência aponta para o eixo efetivo da revolução. Lacan era sensível ao fato de que viver em um universo que não se ordena mais a partir da simetria e do equilíbrio das formas esféricas implicava instaurar uma outra gramática da vida social e dos modos de existência. Mas falar em outra gramática da vida social só é possível se aceitarmos que uma revolução não se dá apenas pela procura em realizar conceitos de justiça e redistribuição impossibilitados pelo sistema de circulação de riquezas imanente aos modos hegemônicos de reprodução social. Por outro lado, uma revolução não é o desfecho necessária de uma crise estrutural, nos moldes das crises de sobreprodução ou de queda tendencial da taxa de lucros, devido à modificação da composição orgânica do capital apontadas pelo marxismo. Já Schumpeter insistia que processos de crise eram absorvidos como dinâmicas de destruição criativa pelo próprio capitalismo. Esse é seu modo de funcionamento normal. Na verdade, para que uma revolução ocorra, não basta que crises ocorram e não há relação necessária alguma entre crise e revolução. Faz-se necessário, na verdade, um processo de transformação de sujeitos, que se inicia com aquilo que poderíamos chamar de des-identificação social generalizada. Algo estruturalmente distinto do populismo, que e acima de tudo uma política das identificações e do fortalecimento da força de mobilização e de insurgência das identificações.

Esta talvez seja uma questão fundamental: em que condição fenômenos de desidentificação generalizada no campo sociopolítico podem ocorrer? Notemos que não se trata apenas de falar sobre a consciência da condição de não contado, consciência de não existir políticamente como sujeito reconhecido, pois a consciência de minha inexistência política não leva necessariamente a afirmação de uma desidentificação generalizada. Ela pode simplesmente levar a uma dependência ainda maior em relação a figuras de identificação socialmente estabelecidas. Como se minha inexistência social pudesse ser superada pela condição de me conformar melhor a sistemas de expectativas representados socialmente, ou pela condição de internalizar melhor valores sociais que aparecem como hegemônicos. A inexistência social pode ser aprisionada por discurso de fortalecimento da ordem e de restauração social.

Nesse sentido, lembremos que só há desidentificação lá onde ha a potência transformadora do desamparo. Sabemos como as dinâmicas políticas respondem a circuitos específicos de afetos. É evidente como formas atuais de populismo protofascista mobilizam o medo e o ressentimento como afetos políticos centrais, reeditando uma lógica de constituição de corpos políticos na qual a consolidação do poder soberano aparece como gestor de um espaço social marcado pelo uso político da insegurança. Medo, assim como esperança (outro afeto fundamental no populismo), são afetos fortes de investimento em processos de identificação.

No entanto, sob o regime de desidentificação, os sujeitos desamparam-se das figuras de autoridade que poderiam constituí-los no interior de uma rede social de desejos. Por isso, tal movimento não poderia se produzir sem uma dessuposição de saber, ou seja, sem uma afirmação do desamparo em relação aos modos de existência que se organizam como um saber, com suas relações de autoridade, com seus modos de ordenamento sob a forma da definição da necessidade, sob a forma das relações de causalidade. Há, desta maneira, um desabamento da linguagem como modo de determinação da experiência que não é a consequência, mas a causa primeira de qualquer processo revolucionário. De certa forma, para que uma revolução ocorra, é inicialmente necessária que a linguagem desabe. E tal desabamento da linguagem é a desidentificação mais estrutural a produzir. Uma verdadeira práxis revolucionária começa por fazer a linguagem desabar, confrontar-se com seu ponto de colapso até confessar sua própria impotência e levar os sujeitos a desertarem de seu território. Sem isso, uma revolução sempre retornará, ao final, ao mesmo lugar.

Tendo esse problema em mente, não seria desprovido de interesse lembrar de uma discussão a respeito da relação entre linguagem e revolução envolvendo um personagem absolutamente inesperado, Josef Stalin. No final dos anos 1940, Stalin resolve intervir em um debate linguístico a respeito de a linguagem ser ou não uma superestrutura. Sua posição era negativa, já que ela pretensamente não poderia ser mudada ao modificarmos as relações de produção:

o que poderia ser a necessidade para tal revolução linguística se demonstrarmos que a linguagem existente e sua estrutura são fundamentalmente adequadas as necessidades do novo sistema? A antiga superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no curso de alguns anos, a fim de dar livre curso ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma linguagem existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de alguns anos sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de desintegração da sociedade? Quem a não ser um Dom Quixote poderia dar a si mesmo tal tarefa?[ii]

Stalin, que sabia bem o que significa assassinar uma revolução, recusa que a linguagem seja uma superestrutura porque ela não deve ser nem o veículo nem o resultado de um processo revolucionário. Ela deve permanecer tal e qual, sob o risco de desencadear anarquia e desintegração. No entanto, há de se perguntar que tipo de revolução é esta que vê as instaurações no campo da linguagem como algo fora de seu escopo, pois afirmar que a linguagem não se modifica é a maneira mais segura de afirmar que uma revolução não altera aquilo que aparece como a condição prévia (ao menos para os sujeitos falantes) de qualquer experiência possível. Para as forças da restauração é fundamental afirmar que a linguagem desconhece dinâmicas políticas por expressar, como dirá Stalin, a “totalidade” da sociedade. No entanto, digamos que, se Stalin houvesse lido Nietzsche, ele saberia que “nunca nos desvencilharemos de Deus enquanto acreditarmos na gramática”. Essa era uma forma astuta de afirmar haver uma metafisica implícita na gramática. O que uma revolução faz é procurar dissolver essa metafisica implícita que orienta os processos mais elementares de nossas formas de vida. É isso que levava o poeta da revolução, Vladimir Maiakovski, a pedir: “Dai-nos, camaradas, uma arte nova que arranque a República da escória”.

A REVOLUÇÃO E SUA FORÇA

Perguntemo-nos: em que tais discussões nos auxiliam a compreender as transformações na noção de “força” pressuposta pela democracia? Pensemos nos três pontos sugeridos para compreender o que “força” significa em democracia. Se a primeira característica estava vinculada ao exercício da ipseidade, ao exercício da capacidade de ser si mesmo, então a ação política nesse contexto será sempre pensada como a afirmação do que me é próprio, do que é minha atribuição ou a atribuição do coletivo ao qual pertenço e que me pertence. Mas e se uma revolução nos colocasse diante de algo como uma força imprópria, uma força que nos lança à deriva? Digamos que esta é uma proposição antileninista por excelência: uma revolução não se projeta, uma revolução deriva. Saber sustentar a revolução como deriva sempre foi o mais assustador de todos os desafios. Pois, assim que uma revolução ocorre, há sempre os que dirão que é necessário salvá-la, impedir que ela seja traída, que é necessário dirigi-la. Normalmente, o que se faz é projetar os modos de organização de mobilização e insurgência para dentro do governo. Como, em larga medida, os modos de organização de mobilização derivam do paradigma da guerra, já que a revolução depende de um conceito de guerra civil implícita, é inevitável que o governo se transforme na continuação da guerra por outros meios, como vimos nas experiências revolucionarias do século XX e em suas degradações. Essa guerra se alimentará da perpetuação dos inimigos antigos e da produção de novos inimigos. Não foi por acaso que Freud (que nunca escondeu certa simpatia pela Revolução Russa) perguntou: “o que os bolcheviques farão quando eliminarem o último burguês?”

De fato, e isto Marx e Engels sabiam muito bem, não há como processos de insurgência revolucionária não se apoiarem no paradigma da guerra como horizonte de organização. Toda organização de sujeitos livres em uma sociedade não livre será frágil, incapaz de lidar com a força de restauração do Estado e de sua violência estatal. As lutas locais e localizadas devem se organizar em uma contradição global em relação ao Estado atual e, ao menos do ponto de vista da mobilização, tal contradição global pede um paradigma da guerra, mesmo se processos locais puderem apelar ao paradigma da associação. O erro maior do leninismo é perpetuar esse paradigma da guerra no interior do governo, por meio de um programa de transição infinita, que nunca passará.

No entanto, quem diz emergência não diz governo. Uma força política de deriva abandonará o paradigma da guerra para que possa emergir o paradigma do descontrole, ou seja, a figura de uma sociedade descontrolada. A revolução, se quiser voltar a ser um conceito politicamente relevante, só pode almejar uma sociedade descontrolada. Nossas sociedades nunca conheceram o descontrole, elas conheceram a submissão e o domínio. O descontrole pressupõe a abertura de campos nos quais a força comum aparece como potencial genérico de implicação com decisões tomadas em qualquer ponto. Implicação esta que mostra como toda e qualquer voz, vinda de todo e qualquer lugar, pode falar em nome de uma universalidade suposta. Isso exige uma transformação econômica das estruturas, como o fim da submissão da atividade a forma do trabalho produtor de valor, assim como uma transformação subjetiva dos atores, como a circulação de uma linguagem outra, uma linguagem da desapropriação.

Por outro lado, a força da revolução abre-nos a possibilidade de confiar em ações que nos destituem da condição de agentes portadores de interesses. Ela faz da política o espaço de desconstituição de identidades e de emergência de um comum que não é apenas a extensão ilimitada do potencial de relação humano, mas a integração do que até agora foi compreendido como não humano ou como coisa. Lembremos, por exemplo, do jovem Marx falando de uma ligação multilateral à natureza que poderia liberá-la da condição de mero objeto, abrindo a experiência social para uma outra forma de pensar a dialética entre natureza e história. Lembremos de como a Revolução Francesa trouxe a recomposição das relações entre razão e loucura (o caso Pinel), trouxe mesmo a possibilidade de um a indiferença racial que poderia fazer dessas “coisas” que eram os escravos haitianos os verdadeiros enunciadores dos ideais revolucionários contra as tropas napoleônicas. Ou de como a Revolução Russa chegou mesmo a discutir a abolição do casamento como forma de abertura da vida social à plasticidade das relações entre sujeitos livres. Todos esses exemplos mostram como há uma biopolítica que a revolução, por ser transformação global de estrutura, libera de suas amarras disciplinares.

Para finalizar, eu lembraria também que tais colocações podem soar, ao menos para alguns, demasiado genéricas. Mas gostaria de defender que isso não é um defeito. Adorno, que nunca abandonou a centralidade do conceito de revolução, afirmava que a antecipação da forma da sociedade reconciliada é um atentado a própria reconciliação, pois, sujeitos mutilados que somos, não podemos imaginar o que é a liberdade social sem projetar modos de organização que são próprios a uma situação de guerra civil, como esta que vivemos em nossas lutas de classe cotidianas, em nossas lutas contra a violência estatal embutida em nossas democracias liberais. Calar-se diante do que será o governo em uma sociedade pós-revolucionária não é impotência, mas confiança na força plástica da política e de suas localidades múltiplas. A teoria pode nos levar a acreditar que temos o desejo e a capacidade de fazer muito mais do que fizemos até agora, pode dizer que ainda não fomos muito longe com nossa negação, mas não pode antecipar o que recusa qualquer projeção. Pois a teoria confia no que só a prática emancipada em seus contextos locais pode produzir.

[i] Jacques Lacan, Autres écrits, p. 426.

[ii] Joseph Stalin, Marxism and Problems of Linguistics, disponível em https://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1950/jun/20.htm Acesso em 9 de nov. 2018.

Conteúdo relacionado ao livro Petrogrado, Xagai.

Publicação autorizada pelo autor.

FONTE: Vladimir Safatle. “A força da revolução e os limites da democracia.” In Adauto Novaes (org.), Mutações: dissonâncias do progresso. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019, pp. 157-170.

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