[Conteúdo] I Congresso de escritores e artistas negros

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Racismo e cultura

Conferência de Frantz Fanon no I Congresso Internacional de escritores e artistas negros, relizado em Paris no dia 20 de setembro de 1956, no Anfiteatro Descartes da Sorbonne.

Senhoras e senhores,

Estou desconfortável de falar depois de Edouard Andriantsilaniarivo, pois o tema que me foi proposto é racismo e cultura. A magnífica apresentação de Edouard aborda um estudo longitudinal sobre a repercussão, sobre o encontro, sobre a dominação estrangeira na ilha de Madagascar em função da cultura. É o mesmo tema que me foi proposto. Em definitivo, se minha análise é nocional, a análise atual e prática do orador anterior me incomoda um pouco. Queria lhes dizer isso, pois, paralelamente, nós produzimos os mesmos trabalhos.

De toda forma, a reflexão sobre o valor normativo de algumas culturas, decretado unilateralmente, merece nossa atenção. Um paradoxo facilmente identificado é, por sua vez, o choque das definições egocentristas, sociocentristas.

A princípio, é reconhecida a existência de grupos humanos sem cultura, de culturas hierarquizadas e, enfim, da noção de relatividade cultural.

Da negação global passa-se ao reconhecimento singular e específico. É exatamente essa história, despedaçada e sangrenta, que deve ser esboçada junto à antropologia cultural.

Existem, digamos, algumas constelações de instituições vividas por homens determinados em contextos geográficos precisos que, em dado momento, sofreram o assalto direto e brutal de diferentes movimentos culturais. O desenvolvimento técnico geralmente avançado do grupo social que chega a uma nova terra o autoriza a instalar ali uma dominação organizada. O empreendimento de aculturação parece ser o negativo de um trabalho muito maior de submissão econômica, até mesmo biológica.

A doutrina da hierarquia cultural é, então, apenas uma modalidade da hierarquização sistematizada, executada de forma implacável.

A teoria moderna, sobre a falta de integração cortical dos povos coloniais, é a vertente anatomofisiológica dessa doutrina. O surgimento do racismo não é fundamentalmente determinante; o racismo não é um todo. Entretanto, ele é o elemento mais visível, o mais cotidiano. Para resumir, em alguns casos, ele é o elemento mais grosseiro de uma estrutura.

Estudar a relação do racismo com a cultura é perguntar-se sobre suas ações recíprocas. Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascidos do encontro do homem com a natureza e com seu semelhante, diríamos então que o racismo é de fato um elemento cultural. Existem, assim, culturas com racismo e culturas sem racismo.

Apesar de tudo, esse elemento cultural particular não se consolidou. O racismo não pôde esclerosar; ele teve de se renovar, se nuançar, mudar de fisionomia; ele teve de passar pelo desenvolvimento do conjunto cultural que o informava.

O racismo vulgar, primitivo, simplista, pretendia encontrar na biologia a base concreta da doutrina. Seria cansativo lembrar os esforços realizados até então: forma comparada do crânio, quantidade e configuração dos sulcos do encéfalo, características das camadas celulares dos corsos, dimensões das vértebras etc.

O primitivismo intelectual e emocional aparecia como uma consequência banal, um reconhecimento de existência.

Tais afirmações brutais e massivas dão lugar a uma argumentação mais elaborada. Aqui e ali, entretanto, aparecem algumas ressurgências. É assim que a “instabilidade emocional do negro”, a “integração subcortical do árabe” e a “culpabilidade quase genérica do judeu” são informações que encontramos na obra de alguns escritores contemporâneos. A monografia de J. Carothers, por exemplo, patrocinado pela Organização Mundial da Saúde, disserta com “argumentos científicos” sobre uma lobotomia fisiológica do negro.

Eu me desculpo por esse termo técnico. Estima-se facilmente que os lóbulos frontais do encéfalo são os lóbulos nos quais estão os dados metafísicos, da inquietude, da angústia, da produtividade e da integração. E, praticamente, estima-se do ponto de vista biológico que só em certos estados [emocionais] ou dos lóbulos frontais se corticaliza. Basicamente, isso quer dizer que o negro africano é, em geral, fisiologicamente desintegrado. Isso é muito importante, pois ele estabelece cientificamente que no caso dos grandes transtornos da esfera mental, como as psicoses ou neuroses obsessivas, pratica-se uma lobotomia. Todos sabem que o doente europeu que é lobotomizado é um doente extremamente diminuído. O negro, felizmente, pode escapar dessa lobotomia científica, pois, normalmente, ele o é [inaudível]…

(Aplausos)

Essas posições sequelares tendem a desaparecer. Esse racismo que se pretende racional, individual, determinado, genotípico e fenotípico, se transforma em racismo cultural. O objeto do racismo não é mais o homem particular, mas certa forma de existir. Ao extremo, falamos de mensagem, de estilo cultural. Os valores ocidentais juntam-se especialmente à célebre convocação da luta “da cruz contra o crescente”.

Certamente a equação morfológica não desapareceu totalmente, mas os acontecimentos dos últimos trinta anos abalaram as convicções mais estabelecidas, sacudiram o tabuleiro, reestruturaram um grande número de relações.

A lembrança do nazismo, a miséria comum de homens diferentes, a submissão de grupos sociais importantes, a aparição de “colônias europeias”, ou seja, a instituição de um regime colonial em plena terra europeia, a tomada de consciência dos trabalhadores dos países colonizadores e racistas, a evolução das técnicas – tudo isso modificou profundamente a aparência do problema.

Precisamos procurar, junto à cultura, as consequências desse racismo.

O racismo, como já vimos, é somente um elemento de um conjunto maior: o da opressão sistematizada de um povo. Como se comporta um povo que oprime? Aqui as constantes são reveladas.

Assistimos à destruição dos valores culturais, das modalidades de existência. A linguagem, o vestuário e as técnicas são desvalorizadas. Como perceber essa constante? Os psicólogos que tendem a explicar tudo pelos movimentos da alma pretendem encontrar esse comportamento nos contatos entre particulares: o comentário sobre um chapéu diferente, uma forma de falar, de andar…

Tentativas similares ignoram voluntariamente o caráter incomparável da situação colonial. Na verdade, as nações que empreendem uma guerra colonial não se preocupam com o confronto das culturas. A guerra colonial é um gigantesco negócio comercial e toda perspectiva deve ser reduzida a essa informação. No sentido mais rigoroso, a submissão da população autóctone é a primeira necessidade.

Para isso, é preciso quebrar os sistemas de referência. A expropriação, o saque, os ataques, o assassinato objetivo se multiplicam numa pilhagem dos esquemas culturais; ao menos condicionam essa pilhagem. O panorama social é desestruturado e os valores, violados, atropelados, esvaziados.

As linhas de força desfeitas não têm mais poder. À frente, um novo conjunto, imposto. Ele não propõe; ele afirma com todo o peso de canhões e espadas.

O estabelecimento do regime colonial não leva a cultura autóctone à morte. Ao contrário, a observação histórica revela que o objetivo é sobretudo uma agonia continuada, mais que o desaparecimento total da cultura preexistente. Essa cultura, até então viva e aberta ao futuro, se fecha, imobilizada na condição colonial, presa à carcaça da opressão.  Ao mesmo tempo presente e mumificada, ela depõe contra seus membros. Ela os define de forma irrevogável. A mumificação cultural resulta na mumificação do pensamento individual. A apatia dos povos coloniais, universalmente observada, é apenas a consequência lógica dessa operação. A crítica da inércia, constantemente endereçada ao “indígena”, é o cúmulo da má-fé. Como se fosse possível a um homem evoluir fora de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir.

É assim que assistimos ao estabelecimento de organismos arcaicos e inertes funcionando sob a vigilância do opressor e calcados caricaturalmente sobre instituições outrora fecundas…

Aparentemente esses organismos traduzem o respeito da tradição, das particularidades culturais, da personalidade do povo escravizado. Esse pseudorrespeito é de fato identificado com o mais consequente desprezo, com o mais elaborado sadismo. A característica de uma cultura é ser aberta, percorrida por linhas de força espontâneas, generosas, fecundas. A instalação de “homens corretos” encarregados de executar certos gestos é uma mistificação que não engana ninguém. É assim que as djemaas[1] cabilas, assim nomeadas pelas autoridades francesas, não são reconhecidas pelos autóctones. Elas são substituídas por uma outra djemaa eleita democraticamente. E, é claro, a segunda normalmente dita a conduta da primeira.

A preocupação constantemente reiterada de “respeitar a cultura das populações autóctones” não significa levar em consideração valores trazidos por essa cultura, encarnados pelos homens. Pelo contrário, adivinha-se nesse processo uma vontade de objetivar, encapsular, aprisionar, enraizar. Frases como: “eu os conheço”, “eles são assim”, traduzem muito bem essa objetificação. Então eu conheço os gestos, os pensamentos que definem esses homens.

O exotismo é uma das formas de simplificação. Assim, nenhuma confrontação cultural pode existir. De um lado, há uma cultura à qual associamos qualidades como dinamismo, desenvolvimento e profundidade. Uma cultura em movimento, em perpétua renovação. Do outro lado da rua, há características, curiosidades, coisas, nunca uma estrutura.

Portanto, em uma primeira fase, o ocupante instala sua dominação, afirma massivamente sua superioridade. O grupo social, militar e economicamente escravizado é desumanizado de forma multidimensional.

Exploração, torturas, pilhagens, racismo, massacres coletivos, opressão racial se revezam em diferentes níveis para literalmente fazer do nativo um objeto nas mãos da nação ocupante.

Esse homem objeto, sem meios de existir, sem razões de ser, está quebrado no mais profundo de sua substância. O desejo de viver, de continuar, se torna cada vez mais indeciso, cada vez mais fantasmagórico. É nesse momento que aparece o famoso complexo de culpa. Wright, em seus primeiros romances, nos dá uma descrição bem detalhada.

Gradualmente, entretanto, a evolução das técnicas de produção, a industrialização limitada dos países escravizados, a existência cada vez mais necessária de colaboradores impõem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos meios de produção e a evolução das relações econômicas resultam, bem ou mal, na complexidade das ideologias, desequilibrando o sistema. O racismo vulgar, em sua forma biológica, corresponde ao período de exploração brutal das pernas e dos braços do homem. A perfeição dos meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem e, portanto, das formas do racismo.

No coração das “nações civilizadoras”, os trabalhadores descobrem enfim que a exploração do homem, que é base de um sistema, tem diferentes faces. Nesse ponto, o racismo não ousa mais sair tão facilmente. Ele se contesta. O racista, em um número cada vez maior de circunstâncias, se esconde. Aquele que pretendia “senti-los”, “adivinhá-los”, se descobre visado, observado, julgado. O projeto do racista é, então, um projeto assombrado pela má consciência. A salvação só pode chegar até ele através de um engajamento passional, como observamos em algumas psicoses. E não é um dos menores méritos do professor Baruk que ele tenha especificado a semiologia desses delírios passionais.

O racismo nunca é um elemento acrescentado, descoberto por acaso em uma pesquisa no seio dos dados culturais de um grupo. A constelação social, o conjunto cultural, são profundamente remanejados pela existência do racismo.

É comumente dito que o racismo é uma praga da humanidade. Mas não devemos nos satisfazer com uma frase como essa. É preciso, incansavelmente, procurar pelas repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade. A importância do problema racista na literatura americana contemporânea é significativa. O negro no cinema, o negro e o folclore, o judeu e as histórias infantis, o judeu no bistrô, são temas inesgotáveis.

O racismo, para retornar à América, assombra e vicia a cultura americana. E essa gangrena dialética é exacerbada pela tomada de consciência e pela vontade de luta de milhões de negros e judeus visados pelo racismo.

Essa fase passional, irracional e sem justificativas faz ver um rosto assustador. A circulação de grupos, e a liberação, em algumas partes do mundo, de homens anteriormente inferiorizados, tornam o equilíbrio cada vez mais precário. Inesperadamente, o grupo racista denuncia a aparição de um racismo dos homens oprimidos. O “primitivismo intelectual” do período de exploração dá lugar ao “fanatismo medieval”, ou “pré-histórico”, do período de libertação.

Em certo momento pudemos acreditar no desaparecimento do racismo. Essa impressão eufórica e irreal era simplesmente a consequência da evolução das formas de exploração. Os psicólogos falam, então, de um preconceito inconsciente. A verdade é que o rigor do sistema torna supérflua a afirmação cotidiana de uma superioridade. A necessidade de recorrer, em graus diversos, à adesão, à colaboração do nativo, modifica as relações em um sentido menos brutal, mais nuançado, mais “culto”. Além do mais, não é raro ver aparecer, nesse estágio, uma ideologia “democrática e humana”. A empresa comercial de submissão, de destruição cultural, progressivamente dá lugar a uma mistificação verbal.

O interesse dessa evolução é que o racismo seja tomado como o tema de meditação, às vezes até como uma técnica publicitária.

Foi assim que o blues, o “lamento dos escravos negros”, foi apresentado aos opressores. É um pouco de opressão estilizada que retorna ao explorador e ao racista. Sem opressão e sem racismo, sem blues. O fim do racismo anunciaria o fim da música negra…

Como o diria o célebre Toynbee, o blues é uma resposta do escravo ao desafio da opressão.

Ainda hoje, para muitos homens, mesmo para os negros, a música de Armstrong só faz sentido a partir dessa perspectiva.

O racismo incha e desfigura a face da cultura que o pratica. A literatura, as artes plásticas, as músicas para garotas, provérbios, hábitos, padrões – quer façam parte do processo quer sejam retirados da corrente dominante – restauram o racismo. Isso equivale a dizer que um grupo social, um país, uma civilização, não pode ser racista inconscientemente.

Repetimos mais uma vez: o racismo não é uma descoberta acidental. Não é um elemento escondido, dissimulado. Não são necessários esforços sobre-humanos para colocá-lo em evidência.

O racismo arranca os olhos, pois ele entra justamente em um conjunto caracterizado: o da exploração descarada de um grupo de homens por outro que chegou a um estágio de desenvolvimento técnico superior. É por isso que a opressão militar e econômica em geral precede, torna possível, legitima o racismo.

O hábito de considerar o racismo como uma disposição do espírito, como um defeito psicológico, deve ser abandonado.

Mas o homem visado por esse racismo, o grupo social escravizado, explorado, dessubstancializado, como ele se comporta? Quais são seus mecanismos de defesa?

Que mecanismos descobriremos aqui?

Numa primeira fase, vimos o ocupante legitimar sua dominação com argumentos científicos, a “raça inferior” se nega enquanto raça. Como não sobrou nenhuma outra solução, o grupo social racializado tenta imitar o opressor e, assim, se desracializar. A raça “inferior” se nega enquanto raça diferente. Ela compartilha com a “raça superior” as convicções, doutrinas e outras expectativas a seu respeito.

Tendo assistido à dizimação desses sistemas de referência, ao colapso desses esquemas culturais, resta apenas ao autóctone reconhecer junto ao ocupante que “Deus não está do seu lado”. O opressor, pelo caráter global e assustador de sua autoridade, consegue impor ao nativo novas formas de ver, em particular um julgamento pejorativo de suas formas originais de existir.

Esse evento, normalmente chamado de alienação, é, naturalmente, muito importante. Podemos encontrá-lo em textos oficiais sob o nome de “assimilação”.

Ora, essa alienação nunca é totalmente bem-sucedida. Seja porque o opressor quantitativamente e qualitativamente limita a evolução; surgem fenômenos imprevistos, heteróclitos.

O grupo inferiorizado havia admitido que a força do raciocínio era implacável, que seus infortúnios se originaram diretamente de suas características raciais e culturais.

Culpabilidade e inferioridade são as consequências habituais dessa dialética. Assim, o oprimido tenta escapar, por um lado, proclamando sua adesão total e incondicional aos novos modelos culturais e, por outro, expressando uma condenação ireversível de seu estilo cultural próprio.

Entretanto, em dado momento, a necessidade do opressor de dissimular as formas de exploração não leva ao desaparecimento da exploração. As relações econômicas mais elaboradas, menos grosseiras, exigem um revestimento cotidiano, mas a alienação nesse nível se mantém terrível.

O oprimido, tendo julgado, condenado, abandonado suas formas culturais, sua linguagem, sua alimentação, suas abordagens sexuais, sua forma de se sentar, de descansar, de rir, de se divertir, corre para a cultura imposta com a energia e a perseverança do náufrago.

Desenvolvendo seus conhecimentos técnicos no contato com máquinas cada vez mais aperfeiçoadas; entrando no circuito dinâmico da produção industrial; encontrando homens de regiões distantes no contexto da concentração de capital que acontece no local de trabalho; descobrindo a linha de produção, a equipe, o “tempo” de produção, ou seja, o rendimento por hora, o oprimido constata, como um escândalo, sua parte na conservação do racismo e do desprezo.

É aí que se faz do racismo uma história de pessoas. “Há alguns racistas incorrigíveis, mas, encaremos os fatos, o público em geral adora…”

Tudo isso desaparecerá com o tempo.

Este país é o menos racista…

Existe na onu uma comissão encarregada de lutar contra o racismo.

Filmes sobre o racismo, poemas sobre o racismo, mensagens sobre o racismo…

As condenações espetaculares e inúteis do racismo. A realidade é que um país colonial é um país racista. Se na Inglaterra, na Bélgica ou na França, apesar dos princípios democráticos afirmados por essas nações, ainda encontramos racistas, são esses racistas que, contra todo o país, têm razão.

Obviamente, não é possível escravizar homens sem inferiorizá-los dos pés à cabeça. E o racismo é apenas a explicitação emocional, afetiva, por vezes intelectual, dessa inferiorização.

O racista em uma cultura racista é, portanto, normal. A adequação das relações econômicas e da ideologia é perfeita. Naturalmente, a ideia que se tem do homem nunca é totalmente dependente das relações econômicas, ou seja, não esqueçamos das relações existentes histórica e geograficamente entre homens e grupos.

Cada vez mais membros de sociedades racistas estão se posicionando. Eles colocam suas vidas a serviço de um mundo no qual o racismo seria impossível. Mas esse recuo, essa abstração, esse engajamento solene não estão ao alcance de todos. Não se pode exigir sem dano que um homem seja contra os “preconceitos de seu grupo”.

Ora, repetimos: todo grupo colonialista é racista.

Simultaneamente “aculturado” e desculturado, o oprimido continua a tropeçar no racismo. Ele considera ilógica essa sequela. Seu conhecimento, a apropriação de técnicas precisas e complicadas, às vezes sua superioridade intelectual em relação a um grande número de racistas levam-no a descrever o mundo racista como passional.

Observa-se que a atmosfera racista impregna todos os elementos da vida social. O sentimento de injustiça é, portanto, muito vivo. Esquecendo o racismo-consequência, nos atemos ao racismo-causa. Campanhas de desintoxicação são realizadas. Recorremos ao significado do que é humano, do amor, do respeito aos valores supremos…

Na verdade, o racismo obedece a uma lógica sem falhas. Um país que vive, que tira sua substância da exploração de diferentes povos, inferioriza esses povos. O racismo aplicado a esses povos é normal.

O racismo não é, assim, uma constante do espírito humano.

Ele é, como já vimos, uma disposição inscrita num sistema determinado. E o racismo judeu não é diferente do racismo negro. Uma sociedade é racista ou não é. Não existem graus de racismo. Não se deve dizer que um país é racista, e sim que ali não existem linchamentos ou campos de concentração. A verdade é que tudo isso e mais um pouco existe no horizonte. Essas virtualidades, essas latências circulam dinamicamente, presas na vida das relações psicoafetivas, econômicas…

Descobrindo a inutilidade de sua alienação, a profundidade de sua pilhagem, o inferiorizado, após essa fase de desculturação, de estranheza, volta a suas posições originais.

A essa cultura abandonada, deixada de lado, rejeitada, desprezada, o inferiorizado se dedica com paixão. Existe uma promessa muito clara que se aparenta psicologicamente ao desejo de ser perdoado.

Mas por trás dessa análise simplista há de fato a intuição do inferiorizado quanto a uma verdade que surgiu espontaneamente. Essa história psicológica conduz à história e à verdade.

Como o inferiorizado está recuperando um estilo antes desvalorizado, estamos testemunhando uma cultura da cultura. Tal caricatura da existência cultural significaria, se fosse necessária, que a cultura é vivida, mas não desfeita. Ela não se coloca entre a vida e a morte.

Entretanto, o oprimido se extasia a cada descoberta. O deslumbramento é permanente. Outrora emigrado de sua cultura originária, o nativo agora a explora com ardor. Trata-se, portanto, de casamentos ininterruptos. O antigo inferiorizado está em estado de graça.

Ora, não se passa impunemente por uma dominação. A cultura do povo escravizado é esclerosada, agonizante. Nenhuma vida circula. Mais precisamente, a única vida existente é dissimulada. A população que assume normalmente, cá e lá, alguns fragmentos de vida, que mantém dinâmicas significativas com as instituições, é uma população anônima. Em termos de regime colonial, são tradicionalistas.

O antigo emigrado introduz o escândalo pela súbita ambiguidade de seu comportamento. Ao anonimato do tradicionalista ele opõe um exibicionismo veemente e agressivo.

Estado de graça e agressividade são duas constantes identificadas nesse estágio. A agressividade como mecanismo passional que permite escapar da dentada do paradoxo.

Como o ex-emigrante possui técnicas precisas, como seu nível de ação está dentro da estrutura de relações já complexas, esses encontros assumem um aspecto irracional. Há um abismo, um distanciamento entre o desenvolvimento intelectual, a apropriação técnica, as modalidades de pensamento e de lógica altamente diferenciadas e uma base emocional “simples, pura, ingênua”.

Encontrando a tradição, vivendo-a como mecanismo de defesa, como símbolo de pureza, como salvação, o desculturado deixa a impressão de que a mediação se vinga ao se substancializar. Esse refluxo sobre posições arcaicas, sem ligação com o desenvolvimento técnico, é paradoxal. As instituições valorizadas dessa forma não correspondem mais aos elaborados métodos acionários já adquiridos.

A cultura encapsulada, vegetativa, desde a dominação estrangeira, é revalorizada. Ela não é repensada, retomada, dinamizada em seu interior; ela é proclamada. E essa revalorização imediata, não estruturada, verbal, encontra atitudes paradoxais diferentes.

É nesse momento que conhecemos o caráter incorrigível do inferiorizado. Os médicos árabes dormem no chão, cospem em qualquer lugar; os intelectuais negros consultam o feiticeiro antes de tomar uma decisão etc. Os colaboradores intelectuais, procurando justificar suas novas atitudes, costumes, tradições, crenças, uma vez negadas e silenciadas, são violentamente valorizados e afirmados. A tradição não é mais ironizada pelo grupo, o grupo não depende mais dela, encontramos novamente o sentido do passado, o culto dos ancestrais.

O passado, agora uma constelação de valores, é identificado como verdade. Essa redescoberta, essa valorização absoluta que desafia a realidade, objetivamente indefensável, é, no entanto, de importância subjetiva incomparável. Ao final desses casamentos apaixonados, o nativo, com conhecimento de causa, terá tomado a decisão de lutar contra todas as formas de exploração e alienação da humanidade. Por outro lado, o ocupante, nesse momento, multiplica os pedidos de assimilação, depois integração e, finalmente, comunidade. A luta corpo a corpo do povo indígena com sua cultura é uma operação solene demais, abrupta demais, para tolerar qualquer brecha. Nenhum neologismo pode esconder as novas evidências; o mergulho nos abismos do passado é condição e fonte de liberdade. O fim lógico dessa luta é a libertação total do território nacional.

(Aplausos)

Para alcançar essa libertação, o inferiorizado aposta todos os seus recursos, todas as suas aquisições, antigas e novas – as suas próprias e as do ocupante. A luta é, desde o início, total, absoluta.

Mas então quase não vemos aparecer nenhum racismo. No momento de impor sua dominação, para justificar a escravidão, o opressor havia usado argumentos científicos. Aqui, nada do gênero. Um povo que empreende uma luta de libertação raramente legitima o racismo. Mesmo durante períodos graves de lutas armadas insurrecionais, nunca há uma suposição em massa de justificação biológica. A luta do inferiorizado está em um nível muito mais humano; agora as perspectivas são novas, é a oposição clássica das lutas de conquista e das lutas de libertação.

No decorrer da luta, a nação dominante tenta reeditar os argumentos racistas, mas a elaboração do racismo se mostra cada vez mais ineficaz. Fala-se de fanatismo, de atitude primitiva diante da morte, mas, novamente, o mecanismo desfeito não responde mais. Os velhos imóveis, os covardes constitucionais, os tímidos, os temerosos, sempre internalizados, se projetam e emergem eriçados. O ocupante não entende mais – o fim do racismo começa com essa súbita incompreensão.

A cultura espasmódica e rígida do ocupante liberado finalmente se abre para a cultura do povo que se tornou, de fato, irmão. As duas culturas podem então se confrontar, enriquecer uma à outra. Em conclusão, a universalidade reside nessa decisão de assumir o relativismo recíproco das diferentes culturas, uma vez que o status colonial está irreversivelmente eliminado.

[1] Assembleia de notáveis locais, no norte do Maghreb e, mais precisamente, na África ocidental.

 

FONTE: ina.fr

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