
Por Ana Maria Machado
Na última sessão, quando o Acadêmico José Murilo de Carvalho nos trouxe sua rica colaboração sobre Jovita Feitosa – que se vestiu de homem e se apresentou como Voluntária da Pátria para ir lutar na guerra do Paraguai –, o presidente Marco Lucchesi em seguida fez uma referência brincalhona a mim, evocando eventual contribuição minha ao tema, ocorrida em uma conversa paralela a uma reunião da diretoria.
Hoje venho esclarecer melhor, ao menos para que não se pense que também estou pensando em pegar em armas quando nos reunimos.
Acontece que há muito tempo me interesso, ainda que de forma periférica e sem o rigor histórico de nossos confrades, pelo tradicional tema literário da mulher que se veste de homem para ser soldada. E quando, há algum tempo, José Murilo mencionou que estudava a figura de Jovita Feitosa, eu lhe trouxe menção a outros casos, fora de nossas fronteiras, notadamente na Guerra da Secessão dos Estados Unidos.
Na verdade, o tema da Donzela Guerreira é um tópos onipresente no romanceiro medieval ibérico. Talvez reverberação dos feitos históricos de Joana d’Arc e da força mitológica das guerreiras amazonas. E com origens em motivos asiáticos muito antigos. Mas o fato é que o assunto se manteve muito forte em nossa tradição popular – em prosa e verso. São exemplo disso as inúmeras variantes de histórias como a de Dom Varão, com seu obsessivo estribilho,
“Os olhos de Dom Varão / são de mulher. De homem, não!”
Sua influência em nossa literatura contemporânea culmina, evidentemente, em Diadorim, de Grande Sertão: Veredas, mas se trança também com as raízes africanas fortíssimas da Rainha Ginga, ecoa em Luzia Homem e no Memorial de Maria Moura. Foi admiravelmente estudada por Leonardo Arroyo e por Walnice Nogueira Galvão. Por vezes se mescla com reverberações de figuras históricas, de Maria Quitéria a Anita Garibaldi, mesmo se sabendo que esta não precisou se vestir de homem nem se marcar como donzela.
Em nossa história, entre as que não puderam se mostrar sem os trajes masculinos, talvez a primeira conhecida seja Maria Ursula de Abreu e Lencastre, nascida em 1682 no Rio de Janeiro. Fugiu de casa aos 18 anos e foi para Portugal, onde se alistou no exército. Lutou na India como soldado, sem nunca revelar que era mulher, até que em 1714 deu baixa e se casou com um tenente. Seus feitos militares foram reconhecidos pelo rei Dom João V que lhe deu honrarias e uma pensão vitalícia.
Interessa-me, especialmente, o aspecto de uma mulher ter de se disfarçar para sair de casa, quebrar as amarras do papel imposto ao gênero, ganhar o mundo, viver experiências mais amplas que conduzissem além dos limites domésticos. Nesse sentido, um ramo decorrente desse tronco é o que se afasta das mulheres guerreiras e desemboca nas mulheres viajantes. Mais sob a égide de Palas Atena e do chamado para o estudo, a ciência e a cultura, do que sob o impulso de Ares e das artes marciais.
Pelo Brasil, tivemos vários casos de mulheres viajantes que não se vestiram de homens mas se puseram sob a capa de preceptoras de filhos de famílias abastadas, ou seguidoras de companheiros que viajavam e nos deixaram registros vívidos de sua experiência e suas observações de viajantes – como Ina von Binzer, Adele Toussaint-Samson, Maria Graham, Mme. Langley Dufresnoy, Virginie Leontine, Marie Robinson Wright, a Baronesa de Langsdorf. Um bom levantamento desses nomes foi feito por Miriam Moreira Leite. Uma dessas autoras, Rose de Freycinet (viajante entre nós, de 1817 a 1820) embarcou clandestinamente para o Brasil, vestida de homem, no navio comandado por seu marido Louis de Freycinet. Nascida Rose Pinon (aparentada de nossa Nélida?), deixou um diário com o relato de suas experiências ao dar a volta ao mundo, incluindo sua passagem pelo Rio de Janeiro. (Publicado apenas em 1927). Nesse subconjunto de uma coleção pessoal eclética, alguns nomes me atraem especialmente, ainda que nem todos ligados ao Brasil. Cito inicialmente, como amostra, duas ou três dessas mais distantes.
Por exemplo, a belgo-francesa Alexandra David-Neel (née Louise Eugenie Alexandrine Marie David), anarquista e budista, viveu de 1868 a 1969. Em sua vida centenária interessantíssima, influenciou filósofos, como Alan Watts, e autores beatnicks como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, e se notabilizou especialmente por ter largado uma carreira de sucesso como cantora de ópera para sair viajando. Furou o bloqueio que vedava o acesso de estrangeiros ao Tibete, por onde viajou disfarçada de peregrino, lá viveu vários anos, ficou amiga do Dalai Lama e escreveu sobre isso. Outra pioneira em furar o bloqueio e entrar no Tibete, essa vestida de freira tibetana, foi Annie Taylor, que lá viveu um bom tempo.
Muito interessante também foi a inglesa Isabella Bird (1831-1904), grande viajante pelos mais variados países do mundo. Naturalista, estudou medicina, era elogiadíssima como excelente amazona, foi a primeira mulher da Royal Geographic Society, membro da Royal Photography Society. Entre várias outras damas dessa estirpe (que não é o caso de esmiuçar aqui, mas são inúmeras e interessantíssimas), há etnólogas, cartógrafas, arqueólogas. Várias foram recentemente homenageadas com uma exposição e um belo catálogo na National Portrait Gallery de Londres. Delas destaco a botânica Marianne North, que percorreu o Brasil de norte a sul, pintando e registrando diversas plantas brasileiras, muitas até então desconhecidas. Tem algumas nomeadas em sua homenagem, como pode ser visto num magnífico pavilhão permanente, todo dedicado a sua obra, erigido no Kew Gardens, o Jardim Botânico de Londres.
Mas volto o foco para uma viajante que aqui esteve disfarçada de homem, e encerro esta evocação com a francesa Jeanne Baret, a primeira mulher a completar uma viagem de circum-navegação. Era alfabetizada, de família hugenote, e tinha uma boa formação como botânica, trabalhando por muitos anos como assistente do médico, naturalista e ictiologista Philibert Commerson, muito ligado a Lineu, e responsável por um programa de estudos da Marinha francesa. Sob o nome de Jean Baret, ela se alistou em 1765 na tripulação do Étoile, para dar a volta ao mundo junto com seu patrão, que deixava em terra a esposa. É provável que o capitão soubesse ou desconfiasse de algo, pois Commerson alegou problemas de saúde e, para aceitar o convite recebido e participar da expedição científica, obteve o direito de ter uma cabine exclusiva para ele e seu “assistente e enfermeiro”, a pretexto de necessitar de tratamento constante. O casal se notabilizou por uma mirada protoantropológica sobre os povos que observavam, notavelmente aberto para aceitar o futuro conceito do Bom Selvagem, que Rousseau desenvolveria em seguida. Mas acabaram sendo deixados para trás no Taiti (ou em uma das ilhas Mauricio, segundo outros relatos), após a tripulação descobrir que ela era mulher. Tiveram de seguir viagem anos mais tarde, em outro navio, após outras descobertas botânicas. Os dois têm uma vida meio rocambolesca, segundo vários registros, que incluem um filho e o testamento de Commerson que a deixa como sua herdeira universal.
Mas o que nos importa aqui é consignar que essa Jeanne, naturalista vestida de marinheiro, foi quem trouxe para bordo, na escala que fizeram no Rio de Janeiro, vários ramos e mudas de uma planta trepadeira lenhosa com “flores” miúdas e brancas envoltas em brácteas exuberantes, vivamente coloridas, hoje conhecida entre nós como primavera, pataquinha, rosa-do-campo ou três-marias, e mais uma dezena de nomes registrados pelo dicionário Houaiss, e que ganhou o mundo com o nome de buganvília ou Bougainville, em homenagem ao capitão da expedição e comendante do navio Étoile. E não como tributo a ela, Jeanne Baret, que a descobriu e fez as mudas transportadas para a Europa pelo capitão, segundo registra Commerson, e cujo nome apenas é reconhecido em outra planta, Solanum baretiae. Daí meu registro agora em nossos anais.
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FONTE: Revista Brasileira, Fase IX, abril – maio 2018, ano 1, nº 95