Manifesto do Coletivo Combahee River | The Combahee River Collective Statement (1974)
Traduzido por Stefania Pereira e Letícia Simões Gomes
Somos um coletivo de feministas negras que se reúne desde 1974[1]. Durante esse período, estivemos envolvidas no processo de definição e esclarecimento de nossa política, enquanto realizávamos trabalhos políticos dentro de nosso próprio grupo e em parceria com outras organizações e movimentos progressistas. A declaração mais genérica de nossa política atual é a de que estamos ativamente comprometidas com a luta contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe; encaramos como nossa tarefa particular o desenvolvimento de análise e práticas integradas baseadas no fato de que os principais sistemas de opressão estão interligados. A síntese dessas opressões cria as condições de nossas vidas. Como mulheres negras, vemos o feminismo negro como o movimento político lógico para combater as múltiplas e simultâneas opressões que todas as mulheres de cor enfrentam.
No texto que se segue, discutiremos quatro tópicos principais: (1) A gênese do feminismo negro contemporâneo; (2) Aquilo em que acreditamos, ou seja, a seara específica de nossa política; (3) Os problemas para a organização de feministas negras, incluindo uma breve história de nosso coletivo; (4) Pautas e práticas do feminismo negro.
A GÊNESE DO FEMINISMO NEGRO CONTEMPORÂNEO
Antes de olharmos para o recente desenvolvimento do feminismo negro, gosta- ríamos de afirmar que encontramos nossas origens na realidade histórica da luta contínua de vida e morte das mulheres afro-americanas, luta pela sobrevivência e pela liberação. A relação danosa entre mulheres negras e o sistema político ameri- cano (um sistema de governo de homens brancos) sempre foi determinada pela nossa participação em duas castas oprimidas, a racial e a sexual. Como Angela Davis aponta em Reflections on the Black Woman’s Role in the Community of Slaves[2], as mulheres negras sempre incorporaram, mesmo que em sua manifes- tação física, a posição de adversário ao domínio masculino branco e resistiram ativamente, de modos dramáticos e sutis, às suas incursões sobre elas e sobre suas comunidades. Sempre existiram mulheres negras ativistas – algumas conhecidas, como Sojourner Truth, Harriet Tubman, Frances E. W. Harper, Ida B. Wells Barnett e Mary Church Terrell, e inúmeras desconhecidas – que tiveram uma consciência comum de como sua identidade sexual se combina com sua identidade racial de modo a tornar toda a sua situação de vida e o foco de suas lutas políticas algo único. O feminismo negro contemporâneo é o resultado de incontáveis gerações de sacrifício pessoal, militância e trabalho de nossas mães e irmãs.
A presença feminista negra se mostrou mais evidentemente junto da segunda onda do movimento de mulheres americanas, iniciado no final dos anos 1960. Desde o princípio, mulheres negras, do Terceiro Mundo e trabalhadoras estiveram envolvidas no movimento feminista. Contudo, tanto forças reacionárias externas quanto o racismo e o elitismo dentro do próprio movimento serviram para ofuscar nossa participação. Em 1973, feministas negras localizadas principalmente em Nova York sentiram a necessidade de formar um grupo feminista negro separado. Disso, originou-se a Organização Nacional Feminista Negra[3] (NBFO).
A política feminista negra também tem uma conexão óbvia com os movimentos de libertação dos negros, particularmente aqueles das décadas de 1960 e 1970. Muitas de nós fomos militantes nesses movimentos (no movimento dos direitos civis, do nacionalismo negro, dos Panteras Negras), e tivemos nossas vidas muito afetadas e alteradas por suas ideologias, objetivos e táticas mobilizadas para alcançar seus objetivos. Foi nossa experiência e desilusão dentro desses movimentos de libertação, bem como a experiência na periferia da esquerda branca masculina, que nos compeliu a desenvolver uma política antirracista, diferente daquela de mulheres brancas, e antissexista, ao contrário daquela de homens negros e brancos.
É inegável, também, a existência de uma gênese pessoal para o feminismo negro, isto é, a percepção política que vem das experiências aparentemente pessoais da vida individual de mulheres negras. Feministas negras, além de muitas outras mulheres negras que não se definem como feministas, experimentam e experimentaram a opressão sexual como um fator perene em suas existências cotidianas. Quando crianças, percebemos que éramos diferentes dos meninos e que éramos tratadas de forma diferente. Por exemplo, diziam-nos em um só fôlego que ficássemos quietas tanto para sermos “mulheres sofisticadas” como para nos tornarmos menos censuráveis aos olhos dos brancos. Quando crescemos, tomamos consciência da ameaça de abuso físico e sexual por parte dos homens. No entanto, não tínhamos meios de caracterizar o que era tão evidente para nós, coisas que sabíamos que realmente aconteciam.
Feministas negras freqüentemente falam que se sentiam loucas antes de terem contato com conceitos como política sexual, dominação patriarcal e, mais importante, feminismo – a análise política e prática que nós mulheres usamos para lutar contra nossa opressão. O fato de que a política racial e o racismo são fatores difundidos em nossas vidas não permitiu, e ainda não permite, que a maioria das mulheres negras olhe mais profundamente para as próprias experiências e, dessa consciência, compartilhada e crescente, construa uma política capaz de mudar nossas vidas e acabar inexoravelmente com nossa opressão. Nosso desenvolvimento também deve estar ligado à posição econômica e política contemporânea dos negros. A geração pós-Segunda Guerra Mundial de jovens negros foi a primeira que pôde de participar minimamente de certas possibilidades educacionais e de emprego, antes completamente interditadas a negros. Embora nossa posição econômica ainda esteja no nível mais baixo da economia capitalista americana, um punhado de nós conseguiu obter certas ferramentas, resultantes de tokenismos[4] nos âmbitos de educação e emprego, o que potencialmente nos permite combater nossa opressão de forma mais eficaz.
De início, o que nos uniu foi uma posição combinando antirracismo e antissexismo. À medida que nos desenvolvemos politicamente, nos voltamos também ao heterossexismo e à opressão econômica sob o capitalismo.
EM QUE ACREDITAMOS
Acima de tudo, nossa política surgiu inicialmente da convicção compartilhada de que as mulheres negras são inerentemente valiosas; nossa libertação é uma necessidade, não como um complemento às vontades de outrem, mas pela nossa própria necessidade de autonomia como seres humanos. Isso pode parecer tão óbvio a ponto de parecer simplista, mas é evidente que nenhum outro movimento ostensivamente progressista jamais considerou nossa opressão específica como uma prioridade ou trabalhou seriamente pelo fim dessa opressão. Apenas para nomear os estereótipos pejorativos atribuídos às mulheres negras (por exemplo, mãe, matriarca, Sapphire[5], prostituta, bulldagger[6]) e sem contar o tratamento cruel e muitas vezes assassino que recebemos, vê-se quão pouco valor foi colocado em nossas vidas durante quatro séculos de cativeiro no hemisfério ocidental. Percebemos que as únicas pessoas que se importam o suficiente conosco para trabalhar consistentemente por nossa libertação somos nós. Nossa política deriva de um amor saudável por nós mesmas, nossas irmãs e nossa comunidade, que nos permite continuar nossa luta e trabalho.
Essa ênfase em nossa própria opressão está incorporada no conceito de polí- tica identitária. Ao invés de trabalharmos para acabar com a opressão de outras pessoas, acreditamos que a política mais profunda e potencialmente radical vem diretamente de nossa própria identidade. Esse é um conceito particularmente repugnante, perigoso, ameaçador e, portanto, revolucionário no caso das mulheres negras, porque é escancarado, ao olharmos para todos os movimentos políticos que nos precederam, que qualquer um é mais merecedor de liberação do que nós. Nós rejeitamos pedestais, reinados e caminhar dez passos atrás. Sermos reconhecidas como humanas, horizontalmente, é suficiente.
Acreditamos que a política sexual sob o patriarcado é tão pervasiva nas vidas das mulheres negras quanto são as políticas de raça e classe. Inclusive, achamos difícil a separação de raça, classe e opressão sexual, porque em nossas vidas elas são em geral sentidas simultaneamente. Sabemos que existe uma opressão racial-sexual que não é nem exclusivamente racial nem exclusivamente sexual: por exemplo, as histórias de estupros de mulheres negras por homens brancos como uma arma de repressão política.
Apesar de sermos feministas e lésbicas, nós nos solidarizamos com os homens negros progressistas; não defendemos a fragmentação que mulheres brancas separatistas exigem. Nossa situação, como pessoas negras, exige solidariedade a respeito da questão racial, o que não é uma necessidade no caso da relação entre mulheres brancas e homens brancos, a menos que seja em termos de uma soli- dariedade negativa enquanto opressores raciais. Nós lutamos junto de homens negros contra o racismo, enquanto também nos confrontamos com eles a respeito do sexismo.
Percebemos que a libertação de todos os povos oprimidos exige a destruição dos sistemas político-econômicos capitalistas e imperialistas, bem como do patriarcado. Somos socialistas por acreditarmos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo daqueles que trabalham e criam os produtos, e não para o lucro dos patrões. Os recursos materiais devem ser igualmente distribuídos entre aqueles que os criam. Não estamos convencidas, contudo, de que uma revolução socialista que também não seja uma revolução feminista e antirracista garantirá nossa libertação. Chegamos ao ponto de precisarmos desenvolver uma compreensão das relações de classe que leve em conta a posição de classe espe- cífica das mulheres negras. Geralmente, somos escanteadas na força de trabalho, apesar de que neste momento em particular algumas de nós são por ora vistas como símbolos duplamente desejáveis, seja em posições administrativas como em cargos especializados. Precisamos articular a situação real de classe dessas pessoas, que não são meramente trabalhadoras sem raça e sem sexo, mas para quem as opressões racial e sexual são determinantes significativos para suas vidas laborais e econômicas. Embora concordemos, em essência, com a teoria de Marx, uma vez aplicada às relações econômicas muito específicas por ele analisadas, sabemos que sua análise deve ainda ser expandida para que possamos compreender nossa situação econômica específica enquanto mulheres negras.
Sentimos que uma contribuição política que já fizemos é a expansão do princípio feminista de que o pessoal é político. Em nossos encontros de formação de consciência, por exemplo, fomos além das descobertas das mulheres brancas em muitos aspectos por estarmos lidando com as implicações de raça e classe para além da de sexo. Mesmo nosso jeito, enquanto mulheres negras, de falar/testemu- nhar na língua negra sobre o que experienciamos tem uma ressonância que é tanto cultural quanto política. Por necessidade, despendemos muita energia investigando a natureza cultural e subjetiva de nossa opressão, pois nenhum desses assuntos foi examinado antes. Ninguém antes de nós examinou a textura multifacetada da vida das mulheres negras. Um exemplo desse tipo de epifania ocorreu em uma reunião enquanto discutíamos as formas pelas quais nossos primeiros interesses intelectuais haviam sido minados por nossos pares, particularmente por homens negros. Descobrimos que todas nós, por sermos “inteligentes”, também éramos consideradas “feias”, ou seja, “inteligentes-feias”. “Inteligente-feia” cristalizou a maneira pela qual a maioria de nós foi forçada a desenvolver seus intelectos, o que gerou um grande custo para nossas vidas “sociais”. As sanções das comunidades negras e brancas contra pensadoras negras é comparativamente muito maior do que para as mulheres brancas, particularmente para aquelas das classes instru- ídas, média e alta.
Como já dissemos, rejeitamos a posição do separatismo lésbico por não ser uma análise ou estratégia política viável. Ela deixa de fora muitas pessoas, parti- cularmente homens negros, mulheres e crianças. Temos uma grande quantidade de críticas e desprezo por como homens têm sido socializados nesta sociedade: o que apoiam, como agem e como oprimem. Todavia, não temos a noção equivocada de que é a virilidade por si mesma – ou seja, sua virilidade biológica – que os torna o que são. Como mulheres negras, consideramos qualquer tipo de determinismo biológico uma base particularmente perigosa e reacionária sobre a qual construir uma política. Devemos também questionar se o separatismo lésbico é uma análise e estratégia política adequada e progressista, mesmo para aquelas que o praticam, uma vez que rejeita completamente qualquer outra fonte de opressão que não seja a sexual, negando a concretude das categorias de classe e raça.
PROBLEMAS PARA A ORGANIZAÇÃO DE FEMINISTAS NEGRAS
Durante nossos anos de coletivo feminista negro, experimentamos sucessos e derrotas, alegrias e dores, vitórias e fracassos. Descobrimos que é muito difícil organizar pessoas por meio de pautas do feminismo negro, e em certos contextos é difícil até mesmo anunciarmos que somos feministas negras. Tentamos refletir sobre as causas dessas dificuldades, particularmente porque o movimento de mulheres brancas continua forte e em expansão. Nesta seção, discutiremos algumas das razões gerais para os problemas organizativos que enfrentamos; falaremos também, especificamente, sobre as etapas da organização de nosso próprio coletivo.
A principal fonte de dificuldade em nosso trabalho político é que não estamos apenas tentando combater a opressão em uma frente ou mesmo em duas, ao contrário, abordamos toda uma gama de opressões. Não temos privilégios raciais, sexuais, heterossexuais ou de classe nos quais podemos nos apoiar, nem temos acesso, por menor que seja, a recursos e poder que grupos possuidores de qualquer um desses tipos de privilégio têm.
O fardo psicológico de ser uma mulher negra e as dificuldades derivadas para se tomar consciência e se engajar em tarefas políticas nunca devem ser subesti- madas. Muito pouco se valoriza a psique das mulheres negras nesta sociedade, que é tanto racista quanto sexista. Como uma das primeiras integrantes desse grupo disse certa vez: “Somos todas pessoas feridas apenas por sermos mulheres negras”. Somos despossuídas tanto psicologicamente como em todos os outros âmbitos; ainda assim, sentimos a necessidade de lutar para mudar a condição de todas as mulheres negras. Em A Black Feminist’s Search for Sisterhood[7], Michele Wallace conclui:
Nós existimos como mulheres que são negras e que são feministas, por ora abandonadas e trabalhando independentemente, pois ainda não há um ambiente nesta sociedade remotamente simpático à nossa luta – porque, estando na base da cadeia, nós teríamos que fazer o que ninguém mais fez: teríamos que lutar contra o mundo.[8]
Wallace é pessimista, mas realista ao avaliar a posição das feministas negras, particularmente em sua alusão ao isolamento quase típico que a maioria de nós enfrenta. Podemos usar a nossa posição na camada social inferior, no entanto, para dar um salto claro na ação revolucionária. Se as mulheres negras fossem livres, isso significaria que todos os outros seriam livres, já que nossa liberdade exigiria a destruição de todos os sistemas de opressão.
O feminismo é, no entanto, muito ameaçador para a maioria das pessoas negras porque põe em xeque alguns dos pressupostos mais básicos sobre a nossa existência, isto é, que o sexo é um determinante das relações de poder. Abaixo aparece a maneira pela qual papéis masculinos e femininos foram definidos em um panfleto nacionalista negro do início dos anos 1970:
Entendemos que é e tem sido tradicional que o homem seja o chefe da casa. Ele é o líder do lar / da nação pois seu conhecimento do mundo é mais abrangente, sua consciência é mais ampla, sua compreensão é mais completa e o uso dessas informações é mais ciente…. Afinal, é razoável que o homem seja o chefe do lar porque ele é capaz de defender e proteger o seu desenvolvimento… As mulheres não podem fazer as mesmas coisas que os homens – elas são feitas pela natureza para funcionar de outra forma. Igualdade entre homens e mulheres é algo que não pode acontecer nem mesmo no mundo abstrato. Os homens não são iguais a outros homens, em habilidade, experiência ou até mesmo em compreensão. O valor de homens e mulheres pode ser visto como ouro e prata – eles não são iguais, mas ambos têm grande valor. Devemos perceber que homens e mulheres são complementares, pois não há lar/família sem um homem e sua esposa. Ambos são essenciais para o desenvolvimento de qualquer vida que seja.[9]
As condições materiais da maioria das mulheres negras dificilmente as levariam a perturbar os arranjos econômicos e sexuais que parecem simbolizar alguma estabilidade em suas vidas. Muitas mulheres negras têm boa compreensão do sexismo e do racismo, mas devido às constrições cotidianas de suas vidas não podem correr o risco de lutar contra ambos.
A reação dos homens negros ao feminismo tem sido notoriamente negativa. Eles estão, é claro, ainda mais ameaçados do que as mulheres negras pela possibi- lidade de que as feministas negras possam se organizar em torno de suas próprias pautas. Eles percebem que podem não apenas perder aliadas valiosas e trabalhadoras em suas lutas, mas que também podem ser forçados a mudar suas formas habitualmente sexistas de interagir e oprimir mulheres negras. As acusações de que o feminismo negro divide a luta negra são poderosos inibidores do crescimento de um movimento autônomo de mulheres negras.
Ainda assim, centenas de mulheres estiveram ativas em momentos diferentes durante os três anos de existência do nosso grupo. E cada mulher negra que chegou, veio pela necessidade imperiosa de ter uma centelha de possibilidade que não existia anteriormente em sua vida.
Quando começamos a nos reunir no início de 1974, após a primeira conferência regional do NBFO no leste dos Estados Unidos, não tínhamos uma estratégia de organização, nem mesmo uma pauta. Nós só queríamos ver o que tínhamos. Após alguns meses sem encontros, começamos a nos reunir novamente no final do ano e iniciamos uma grande variedade de atividades de conscientização. A sensação avassaladora que tivemos foi que, após anos e anos, finalmente nós tínhamos nos encontrado. Embora não estivéssemos fazendo um trabalho político enquanto grupo, cada uma de nós continuou seu envolvimento na luta lésbica, contra o abuso de políticas de esterilização e mobilizações pelo direito ao aborto, nas atividades do Dia Internacional da Mulher Terceiro-mundista e no acompanhamento dos julga- mentos de Dr. Kenneth Edelin, Joan Little e Inéz García[10]. Durante nosso primeiro verão, quando a adesão caiu consideravelmente, nós continuamos dedicadas a discutir seriamente a possibilidade de abrir um refúgio para mulheres agredidas em uma comunidade negra (naquele tempo não havia refúgio em Boston). Também decidimos, por volta dessa época, a nos tornarmos um coletivo independente, já que tivemos sérios desentendimentos com a postura burguesa-feminista da NBFO e sua falta de direcionamento político claro.
Também fomos contatadas, naquele período, por feministas socialistas, com as quais havíamos trabalhado em atividades pelo direito ao aborto, e que queriam nos encorajar a participar da Conferência Nacional Feminista em Yellow Springs. Uma de nossas integrantes compareceu; apesar da estreiteza da ideologia que foi promovida naquela conferência em particular, nos tornamos mais conscientes da necessidade de entendermos nossa situação econômica e de fazer nossa própria análise econômica.
No outono, quando algumas integrantes voltaram, passamos por vários meses de inatividade e divergências internas. Inicialmente conceituadas como uma divisão lésbica-heterossexual, essas discordâncias eram também resultado de diferenças políticas e de classe. Durante o verão, aquelas que seguiram se reunindo determinaram a centralidade de fazer trabalho político, de ir além das atividades de tomada de consciência e de servir exclusivamente como um grupo de apoio emocional. No início de 1976, quando algumas das mulheres que não queriam fazer trabalho político, que também tinham manifestado divergências deixaram de comparecer por conta própria, voltamos a procurar um direcionamento. Nesse momento, decidimos que nos tornaríamos um grupo de estudos, com a adição de novas integrantes. Sempre compartilhamos nossas leituras umas com as outras, e algumas de nós já escreviam artigos sobre feminismo negro para discussão interna alguns meses antes de essa decisão ser tomada. Começamos a funcionar como um grupo de estudos e também passamos a discutir a possibilidade de iniciar uma publicação feminista negra. Tivemos um retiro no final da primavera que propor- cionou tempo tanto para a discussão política quanto para a resolução de questões interpessoais. Atualmente estamos planejando reunir uma coletânea de textos de feministas negras. Sentimos que é absolutamente essencial demonstrar a realidade de nossa política para outras mulheres negras e acreditamos que podemos fazer isso escrevendo e distribuindo nosso trabalho. O fato de que feministas negras individuais estão vivendo em isolamento em todo o país, que os nossos próprios números são pequenos, e que temos algumas habilidades em escrita, impressão e publicação, nos impele a realizar esse tipo de projeto como um modo de organizar feministas negras, ao mesmo tempo em que continuamos a fazer trabalho político em parceria com outros grupos.
QUESTÕES FEMINISTAS NEGRAS E PROJETOS
Durante nosso tempo reunidas, identificamos e elaboramos muitas questões de particular relevância para as mulheres negras. O caráter inclusivo de nossa polí- tica nos desperta para qualquer situação que afete a vida de mulheres, do Terceiro Mundo e dos/das trabalhadores/as. Evidentemente, estamos comprometidas em especial em contribuir com lutas nas quais raça, sexo e classe sejam fatores simultâneos na opressão. Podemos, por exemplo, nos envolver na organização de uma fábrica que emprega mulheres do Terceiro Mundo, ou realizar um piquete em um hospital que está cortando cuidados de saúde já inadequados para uma comunidade Terceiro-mundista, ou, ainda, estabelecer um centro de atendimento a vítimas de estupro em um bairro negro. Organizar-se em torno de preocupações com políticas de bem-estar e creches também podem ser pautas. A quantidade de tarefas a serem cumpridas e as inúmeras questões que elas simbolizam refletem apenas a pervasividade de nossa opressão.
Das pautas e projetos nos quais nossas integrantes participaram estão as lutas contra o abuso de políticas de esterilização, contra o estupro, as lutas pelo direito ao aborto, por mulheres agredidas e por cuidados de saúde. Também fizemos muitos workshops e atividades pedagógicas sobre o feminismo negro em campi universitários, em conferências de mulheres e, mais recentemente, para mulheres cursando o ensino médio.
Uma questão de grande preocupação para nós, e que começamos a abordar publicamente, é o racismo no movimento de mulheres brancas. Como feministas negras, somos frequente e penosamente forçadas a constatar quão pouco esforço mulheres brancas fazem para reconhecer e combater seu racismo, o que requer, entre outras coisas, algo além de uma compreensão rasa sobre raça, cor e sobre a cultura e história negras. Eliminar o racismo no movimento de mulheres brancas é, por definição, um trabalho para mulheres brancas, mas continuaremos a falar sobre e a cobrar responsabilidade.
Em nossas práticas políticas, nós não acreditamos que o fim sempre justifica os meios. Para atingir objetivos políticos “corretos”, usam-se muitas ações reacionárias e destrutivas. Como feministas, não queremos comprometer pessoas em nome da política. Acreditamos no processo coletivo e na distribuição não hierár- quica de poder dentro de nosso grupo, bem como em nossa visão de sociedade revolucionária. Estamos comprometidas com um exame contínuo de nossas polí- ticas, desenvolvidas por meio da crítica e autocrítica, aspectos essenciais de nossa prática. Em sua introdução de Sisterhood is powerful[11], Robin Morgan escreve: “Não tenho a menor noção de qual papel revolucionário homens heterossexuais brancos poderiam cumprir, já que eles são a própria personificação do poder e dos interesses reacionários”[12].
Como feministas negras e lésbicas, sabemos que temos uma tarefa revolucionária bem definida e estamos prontas para uma vida de trabalho e luta.
[1] O Coletivo Combahee River foi uma organização feminista negra e lésbica ativa em Boston, entre 1974 e 1980 (N.T.).
[2] O título em português, em tradução livre, seria “Reflexões sobre o Papel da Mulher Negra na Comunidade de Escravos” (N.T.).
[3] No original, National Black Feminist Organization (N.T.).
[4] Tokenismo, aportuguesamento de tokenism, diz respeito a uma prática superficial de inclusão/ recrutamento de grupos vulneráveis em forças de trabalho, com o objetivo de aparentar uma política de igualdade e se esquivar de acusações de discriminação (N.T.).
[5] Sapphire é um termo que tem duplo significado. Pode significar mulher atraente, “gostosa”, sensual. Também pode denominar namorada de membros da gangue Crips, a qual foi criada em meados dos anos 1960 e é expressiva na Costa Oeste dos EUA (N.T.).
[6] Bulldagger é uma maneira pejorativa de denominar mulheres lésbicas afro-americanas (N.T.).
[7] O título em português, em tradução livre, seria “Uma busca de feministas negras pela irmandade” (N.T.).
[8] Wallace, Michele. A Black Feminist’s Search for Sisterhood. The Village Voice, 28 de julho de 1975, p. 6-7.
[9] Mumininas of Committee for Unified Newark. Mwanamke Mwananchi (The Nationalist Woman). Newark, N.J.: 1971, p. 4-5.
[10] Esses são três casos de destaque midiático da época. Dr.Kenneth Edelin foi um médico ginecologista negro condenado por homicídio do feto ao realizar um aborto legal em 1975 (o caso foi revertido em 1976, após intensa polêmica nacional). Joan Little (caso de 1974), por sua vez, foi uma mulher negra condenada por homicídio após matar um homem em legítima defesa. Na cadeia, reagiu a uma tentativa de estupro por um de seus guardas e o golpeia, o que o vela à morte; este caso também foi intensamente abordado pela mídia. Inéz García, mulher de origem hispânica, foi condenada de 1974 de assassinar um homem que a estuprara. Condenada por assassinato em segundo grau, Inéz passou dois anos na cadeia até o julgamento do recurso, ocasião em que foi absolvida por legítima defesa. (N.T.)
[11] O título em português, em tradução livre, seria “A irmandade é poderosa” [1970] (N.T.).
[12] No original, “[…] since they are the very embodiment of reactionary-vested-interest-power” (N.T.).
FONTE: http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/159864
REFERÊNCIA: https://combaheerivercollective.weebly.com