[Conteúdo] Margens Indomáveis: cogumelos como espécies companheiras

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Introdução

A dominação, a domesticação e o amor estão firmemente entre-
laçados. A casa – o nosso doce, familiar e seguro lar – é onde
todas essas dependências intra e interespecíficas atingem o auge da
saturação. Por mais prazeroso que seja, talvez essa não seja a melhor
ideia para uma vida multiespécies na Terra. Considere, ao invés disso,
a abundante diversidade que margeia as estradas. Ou considere os
cogumelos.

Esse ensaio tem uma dívida com Donna Haraway (2003) não
apenas pelo conceito de “espécies companheiras”, mas também pela
permissão que ela nos oferece de sermos ao mesmo tempo cientistas
e críticos culturais, ou seja, de recusarmos as fronteiras que isolam
natureza da cultura e, além disso, de ousarmos contar a história do
mundo em uma única frase, ou certamente num ensaio curto. Nesse
espírito, meu ensaio inicia com uma experiência de companheirismo
e biologia, antes de abordar a história da domesticação, da Conquista
europeia, e dos potenciais da política e do biologicamente diverso nas
costuras do capitalismo global. Esse material apresenta um argumento
fúngico contra um ideal tão arraigado como o da domesticação, pelo
menos o da domesticação de mulheres e de plantas.

Cogumelos numa Paisagem Multiespécies

Perambular e amar cogumelos são atividades que se retroalimentam. Caminhar é a velocidade do prazer corpóreo e da contemplação e é também a melhor velocidade para procurar cogumelos. Depois das chuvas o ar tem um cheiro fresco de ozônio, seiva e folhiço. Meus sentidos estão vívidos de curiosidade. Não há coisa melhor do que me deparar com as camadas laranja dos cantarelos (Cantharellus cibarius) penetrando na umidade escura. Ou com as bolotas quentes dos tortulhos (Boletus edulis) pipocando na terra esfarelenta. Cogumelos provocam a excitação da cor, da fragrância e do design, além do orgulho de quem é o primeiro a encontrá-los. Mas, dentre os prazeres que eles provocam, parece-me que os maiores são dois: primeiro, a recompensa generosa da dádiva; e, segundo, a oferta de um lugar que guiará as caminhadas futuras. Esses cogumelos não são produtos de meu trabalho, e pelo fato de eles não me terem exigido dedicação e cuidado, saltam às minhas mãos com todo o deleite do impensado e do inesperado. Por
um momento, minha carga pesada de culpa é absolvida e, como uma
ganhadora da loteria, estou iluminada com a doçura da vida.
Bismillahirachman irachim.

O prazer imprime uma marca: a impressão de um lugar. É a exci-
tação dos meus sentidos que me traz à memória um conjunto de cores
e tons, o ângulo da luz, as sarças espinhentas, o sólido aterramento da
árvore e a subida do morro à minha frente. Muitas vezes, andando a
esmo, repentinamente me lembrei de cada toco e de cada oco do lugar
onde estava, inclusive dos cogumelos que um dia encontrei ali. Uma
decisão consciente também pode me levar para pontos de encontros
passados, já que a melhor forma de encontrar cogumelos é sempre
voltar aos lugares onde você os achou antes. Em muitos casos, o corpo
vegetativo (micélio), que sazonalmente frutifica cogumelos, persiste
ao longo das estações; além disso, os corpos vegetativos de algumas
espécies de cogumelos são companheiros vitalícios de árvores especí-
ficas. Se você quiser encontrar cantarelos na Califórnia central, você
deve procurar sob os carvalhos. Mas não sob qualquer carvalho, você
deve procurar “o” carvalho que vive com o micélio de cantarelos. Você
o saberá por que já viu os cogumelos lá antes. Você visita aquele ponto
o suficiente para conhecer as flores de cada estação e a atividade dos
animais; você produziu um lugar familiar na paisagem. Lugares familiares são o início da apreciação das interações multiespécies.

A busca por alimento, ou forrageamento, funcionou exatamente
desta forma na maior parte da história humana. Para encontrar uma
planta, animal ou fungo útil, os forrageadores localizavam lugares
familiares e retornavam a eles continuamente. Rifles superpotentes
e superpopulação de peixes em reservatórios tornam possível matar
algo com sucesso numa passagem aleatória pela zona rural; mas os
caçadores e pescadores esportivos se dão ainda melhor com um guia
local. Por meio de seus lugares familiares, os forrageadores aprendem
não só sobre as relações ecológicas em geral, mas também sobre o acaso
nas histórias naturais que permitiu que certas espécies e associações
de espécies pudessem ocorrer em certos locais. Os lugares familiares
de procura de alimento não requerem exclusividade territorial; outros
seres, humanos ou não, também o aprendem. Suas geografias expan-
sivas e sobrepostas resistem a modelos comuns que dividem o mundo
em “seu espaço” e “o meu”. Além disso, os forrageadores, mais do que
se concentrarem em certas espécies individualizadas, atem-se às pai-
sagens, com seus múltiplos residentes e visitantes. Lugares familiares
implicam formas de identificação e companheirismo que contrastam
com a hiperdomesticação e a propriedade privada nas formas em que
conhecemos. Se você procura um mundo de companheiros mutua-
mente prósperos, considere os cogumelos.

Cogumelos são bem conhecidos como companheiros. O conceito de
“simbiose” – convivência interespecífica mutuamente benéfica – foi
inventado para o líquen, uma associação de um fungo com uma alga
ou com uma cianobactéria. Nesta interação, o parceiro não-fúngico
abastece o metabolismo do líquen por meio da fotossíntese; o fungo
torna possível ao líquen viver em condições extremas. Ciclos repeti-
dos de umidificação e dessecamento não perturbam o líquen, pois o
parceiro fúngico pode reorganizar suas membranas logo que a água
aparece, permitindo a continuidade da fotossíntese (Jennings; Lysek,
1999, p. 75) . Os líquens podem ser encontrados tanto na tundra gelada quanto em pedras ressecadas do deserto.

Para os amantes dos cogumelos, o companheirismo interespecífico mais intrigante ocorre entre fungos e raízes de plantas. Nas micorrizas, os filamentos do corpo fúngico entram nas raízes das plantas ou formam uma bainha ao seu redor. As plantas-cadáver (Monotropa uniflora) e outras plantas sem clorofila são mantidas exclusivamente dos nutrientes que recebem dos fungos em suas raízes (Christensen, 1965, p. 50); muitas orquídeas não podem nem mesmo germinar sem a assistência de fungos. Nesses casos, as plantas tiram sustento dos fungos. Na maioria dos casos, entretanto, é o fungo que obtém sustento da planta. Mas os fungos de micorrizas não são egoístas quando se alimentam. Eles trazem água para a planta e tornam os minerais do solo, ao seu redor, disponíveis para seu hospedeiro.
 
Os fungos podem também perfurar pedras, tornando seus elementos minerais disponíveis para o crescimento das plantas. Na longa história da Terra, os fungos são responsáveis por enriquecer os solos e assim permitir que as plantas evoluíssem. Há fungos que canalizam minerais das rochas para as plantas (Money, 2002, p. 60). Há árvores capazes de crescer em solos pobres por causa dos fungos que trazem fósforo, magnésio, cálcio e outros nutrientes às suas raízes. Na região
onde eu vivo, os reflorestadores inoculam o fungo Suillus ao plantar mudas de abeto de Douglas (Pseudotsuga menziesii) para auxiliar no seu crescimento. Ao mesmo tempo, muitos dos mais valorizados cogumelos culinários são micorrizas. Na França, os produtores de trufas inoculam as mudas de árvores em áreas cercadas (Money, 2002, p. 85). É claro que os fungos são perfeitamente capazes de fazer esse trabalho por si próprios, com uma geografia mais aberta. E então nós, os amantes dos cogumelos, perambulamos, procurando a companhia de árvores
e de cogumelos.

Os fungos nem sempre são benignos nas suas associações interespecíficas. Os fungos são assustadoramente onívoros em seus hábitos
de conversão de carbono. Vários fungos subsistem tanto de animais
e plantas vivos como mortos. Alguns são ferozmente patogênicos (o
Cryptococcus neoformans mata muitos pacientes de AIDS) (Money, 2002,
p. 25). Alguns são parasitas irritantes (pense na frieira ou no pé de
atleta). Alguns deslizam pelos intestinos de seus hospedeiros inocua-
mente esperando chegar a uma condição favorável para se multiplicar.
Alguns fungos encontram substratos totalmente inesperados:
Cladosporium resinae, originalmente encontrado em resinas de árvores, tomou
gosto por combustível de aviões, causando o entupimento de tanques
de combustível (Jennings; Lysek, 1999, p. 67-138). Alguns ferem um
hospedeiro e vivem pacificamente com outro: Puccina graminis une-se ao arbusto de berberis e alimenta moscas com seu néctar de modo a
produzir esporos que são mortíferos ao trigo quando nascem sobre
ele (Money, 2002, p. 172-179). Os apetites fúngicos são sempre am-
bivalentes em sua benevolência, dependendo de nosso ponto de vista.
A habilidade dos fungos de degradar a celulose e a lignina da madeira
morta, tão temida pelos proprietários de casas de madeira, é também
o maior presente dos fungos à regeneração florestal. Sem os fungos,
a floresta estaria abarrotada de pilhas de madeira morta, e outros
organismos teriam uma base de nutrientes cada vez menor. Assim,
o papel dos fungos na renovação de ecossistemas torna mais do que
óbvio que os fungos são sempre companheiros de outras espécies.
A interdependência entre as espécies é um fato bem conhecido – exceto
quando diz respeito aos humanos.

O excepcionalismo humano nos cega. A ciência herdou das grandes religiões monoteístas narrativas sobre a superioridade humana. Essas histórias alimentam pressupostos sobre a autonomia humana e levantam questões relacionadas ao controle, ao impacto humano e à natureza, ao invés de instigar questões sobre a interdependência das espécies. Uma das muitas limitações dessa herança é que ela nos fez imaginar as práticas de ser uma espécie (humana) como se fossem mantidas autonomamente e, assim, constantes na cultura e na história. A ideia de natureza humana foi apropriada por ideólogos conservadores e por sociobiólogos que se utilizam de pressupostos da constância e autonomia humanas para endossar as ideologias mais autocráticas e militaristas. E se imaginássemos uma natureza humana que se transformou historicamente com variadas teias de dependência
entre espécies? A natureza humana é uma relação entre espécies.
Longe de desafiar a genética, um recorte interespecífico para nossa espécie abre
possibilidades de linhas de pesquisa tanto biológicas quanto culturais.
É preciso entender mais, por exemplo, sobre as variadas teias de do-
mesticação nas quais nós humanos nos enredamos. A domesticação é geralmente compreendida como o controle humano sobre outras espécies. Que tais relações podem também transformar os humanos é algo frequentemente ignorado. Além disso, tende-se a imaginar a domesticação como uma linha divisória: ou você está do lado humano, ou do lado selvagem. Pelo fato de essa dicotomia se basear num comprometimento ideológico com a supremacia humana, ela apoia as mais incríveis fantasias, por um lado, de controle doméstico e, por outro lado, de autoprodução das espécies selvagens. Por meio dessas fantasias, as espécies domésticas são condenadas à prisão perpétua e à homogeneização genética, enquanto as espécies selvagens são “preservadas” em bancos de germoplasma
enquanto suas paisagens multiespécies são destruídas. Apesar desses
esforços extremos, a maioria das espécies dos dois lados da linha,
incluindo os humanos, vive em complexas relações de dependência e
interdependência. Prestar atenção a essa diversidade pode ser o início
da apreciação de um modo interespecífico de ser das espécies.

Fungos são espécies indicadoras da condição humana. Poucos fungos tiveram lugar nos esquemas humanos de domesticação e apenas alguns deles, como os fungos usados para produção industrial de enzimas, tiveram seus genomas seriamente alterados (os champignons do supermercado são o mesmo Agaricus bisporus que cresce nos campos). Os fungos são onipresentes, eles seguem todos os nossos experimentos e desvarios. Considere Serpula lacrymans, o fungo da podridão seca, que antes era encontrado apenas no Himalaia (Jennings; Lysek, 1999, p. 138). Em suas conquistas no sul da Ásia, a Marinha inglesa o incorporou em seus navios. S. lacrymans proliferou na madeira sem tratamento geralmente usada nos navios para campanhas navais, e assim viajou ao redor do mundo. No século XIX, o apodrecimento da madeira dos navios britânicos era chamado de “calamidade nacional” e o pânico perdurou até a introdução dos navios de guerra couraçados
na década de 1860 (Ainsworth, 1976, p. 90-93). A podridão seca, en-
tretanto, continuou se espalhando, pois o fungo encontrou novo lar
nas vigas úmidas dos porões e nos dormentes das estradas de ferro da
civilização patrocinada pelos britânicos. A expansão britânica e a po-
dridão seca movimentaram-se juntas. Como nesse exemplo, a presença
dos fungos geralmente nos fala sobre as mudanças nas práticas de ser
humano. A domesticação dos humanos é um lugar por onde começar.

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado

Os cereais domesticaram os humanos. O caso de amor entre as pessoas
e os cereais é um dos grandes romances da história humana. Uma de
suas formas mais extremas começou há mais ou menos dez mil anos
no Oriente Próximo, em que as pessoas começaram a cultivar trigo e
cevada. Na gênese dessa domesticação, trocaram o afeto às paisagens
multiespécies pela intimidade com apenas um ou dois cultivares.

O mais curioso sobre a domesticação de grãos no Oriente Próxi-
mo é que na maioria de sua extensão era muito fácil coletar grandes
quantidades de trigo e cevada selvagens sem o duro trabalho do cultivo.
Mesmo na década de 1960, a grande quantidade de grãos selvagens
fazia da coleta uma tarefa simples. A história que contamos a nós
mesmos sobre a “conveniência” e “eficiência” de plantar em casa
simplesmente não é verdadeira. O cultivo quase sempre requer mais
trabalho do que o forrageamento. Houve provavelmente muitas ra-
zões, da religião à escassez local, para se experimentar a domesticação.
Porém, o que manteve e estendeu o cultivo de grãos foi a emergência
das hierarquias sociais e a ascensão do Estado. A agricultura intensiva
de cereais é bem-sucedida em um aspecto, em relação a outras formas
de subsistência: o de apoiar as elites. Os Estados institucionalizam o
confisco de uma porcentagem da colheita. Por toda a Eurásia, a as-
censão dos Estados, e suas civilizações especializadas, foi associada à
disseminação da agricultura intensiva de cereais. Em alguns lugares
o Estado sucedeu a agricultura; em outros, a agricultura sucedeu os
Estados. Em ambos os casos, os Estados promoveram a agricultura em
suas insígnias e exércitos. Algumas vezes outras formas de subsistência
foram criminalizadas: apenas os foras da lei recusariam a dádiva da
fertilidade estatal. E para aqueles no coração do Estado, essa dádiva de
fertilidade poderia se manter, pelo menos em tempos bons, pelo amor.
A transformação biológica das pessoas e das plantas que acompa-
nhou a agricultura intensiva de cereais pode ser entendida de melhor
forma, portanto, por meio do advento dos arranjos sociais hierárquicos
e pela constituição do Estado. Estados encorajam o estabelecimento
de fazendas sedentárias e estáveis. O Estado incentivou unidades do-
mésticas de base familiar e garantiu as formas de propriedade privada
e herança que traçaram linhas dentro e entre famílias. O patriarca era
o representante do Estado no nível da unidade de trabalho doméstica:
era ele quem assegurava que os impostos e dízimos seriam recolhidos
para a subsistência das elites. Foi no interior dessa configuração política
que tanto as mulheres quanto os grãos foram confinados e manejados
para maximizar a fertilidade.

Os grãos selecionados por meio da domesticação eram sementes
com alto teor de carboidratos. Dietas com alto teor de carboidratos
permitiram às mulheres terem mais filhos. Ao invés de investirem
em limitar a fertilidade, como fazem a maioria dos forrageadores, as
pessoas repentinamente passaram a querer o número máximo pos-
sível de filhos, não apenas por conta do fetiche da fertilidade, mas
também porque a família precisava de mais trabalho para os cereais.
Os cereais não se importavam se o trabalho que os produziu era familiar
ou extrafamiliar: não havia escassez de pessoas. Mas a propriedade
apoiada pelo Estado incentivou o trabalho dentro da família, ou seja,
o trabalho infantil. Ter muitos filhos não significava apenas deixar a
natureza trabalhar: nem todos os animais trabalham para maximizar
a reprodução. A reprodução humana fora de controle e não sustentá-
vel é uma característica de uma domesticação humana em especial:
o caso de amor entre as pessoas e os grãos de cereais. Essa obsessão
pela reprodução, por sua vez, limitou a mobilidade das mulheres e
suas oportunidades para além do cuidado com as crianças. Apesar
das possibilidades matriarcais criadas por esse processo, parece justo
chamar esse caso de amor interespecífico de “a derrota histórica do
sexo feminino”.

Ao intensificarem seus esforços para alimentar populações
humanas cada vez maiores, os agricultores se concentraram num
conjunto cada vez menor de plantas e para um conjunto ainda menor
de formatos de família. Entretanto, a padronização dos cultivos e de
suas famílias humanas não se completou em nenhum lugar. Onde
quer que o poder do Estado tenha se atenuado, paisagens de maior
biodiversidade e de maior diversidade social continuaram a proliferar.
Entretanto, o modelo idealizado de confinamento padronizado foi
uma força poderosa por si mesma para manter as margens na mar-
ginalidade. Durante minha pesquisa com agricultores itinerantes de
Kalimantan, Indonésia, algumas mulheres falavam de minha riqueza
e de meus privilégios: “Se eu tivesse o que você tem, meus pés nunca
tocariam o chão”. O confinamento das mulheres é a base de um belo
sonho de ordem e plenitude.

Os fungos são inimigos da monocultura e dos monocultores . Desde que os Estados antigos incentivaram a agricultura intensiva, houve muitas e variadas pressões para padronizar os cultivares. Desde o século XIX, a agricultura científica suplantou os esforços de padronização das primeiras domesticações. Ela transformou a padronização em si no “padrão moderno”. Atualmente, apenas a padronização permite aos agricultores comercializar sua produção. Entretanto, a padronização torna as plantas vulneráveis a todo tipo de doença, incluindo aquelas
causadas por fungos, conhecidas como ferrugens e carvões. Sem chan-
ces de desenvolver variedades resistentes, uma lavoura atacada pode
morrer toda de uma só vez. A emergência de vastos campos de grãos
prestou-se, portanto, a oferecer um banquete aos fungos fitoparasitas
e a criar sua reputação de inimigos da civilização e, posteriormente,
do progresso. Como o cultivo de não cereais foi moldado nos ideias
da lavoura intensiva de cereais, essas lavouras também sucumbiram
a todo tipo de doenças causadas por fungos: um aviso a todos nós.
A catástrofe fúngica mais famosa é provavelmente a peste da
batata irlandesa. As batatas eram cultivadas na Irlanda com um zelo
monocultor, forjado na imagem reversa da expansão dos grãos pro-
vocada pelo Estado. A colonização britânica relegou aos irlandeses as
terras mais marginais. Incursões militares queimaram e confiscaram
lavouras de grãos. Foram os tubérculos subterrâneos que permitiram
a sobrevivência dos irlandeses. No final do século XVIII, as batatas
haviam se tornado a base da dieta dos irlandeses. Quando os senhores
de terras, por motivações políticas, abriram novas terras para arren-
datários as cultivarem, proliferaram pequenos sítios. As famílias dos
arrendatários, providos de batatas, casaram-se mais cedo e tiveram
mais filhos. Mesmo com a economia abalada pelo controle colonial,
a população humana cresceu de cinco para oito milhões de habitan-
tes em 50 anos, levando as pessoas a depender das batatas em sua
alimentação. (Salaman, 1985 [1949]). Mas a monocultura cobra seu
troco. Os europeus haviam importado apenas algumas das milhares
de variedades de batata domesticadas pelos sul-americanos.
Phytophtora infestans, o míldio da batata, foi registrado a primeira
vez em 1835 como um problema local na Inglaterra. O fungo desen-
volveu-se lentamente até o verão chuvoso e abafado de 1845, quando
repentinamente todas as plantas da Irlanda estavam infectadas, assim
como todas as batatas armazenadas. O resultado foi que um milhão
de pessoas passaram fome e talvez dois milhões tenham emigrado
para os Estados Unidos. Como a manipulação genética e a clona- gem passaram a afetar mais e mais cultivos, o alarme fúngico soa continuamente. Considere as plantações de acácia pelas quais nossos perspicazes agentes do desenvolvimento pensaram poder substituir as florestas do Bornéu: produzidas a partir de um único clone, são uniformemente suscetíveis a um fungo que devora e torna ocos seus
troncos (Brookfield et al.,1995, p. 105). Porque alguém imaginaria
plantá-los dessa foram é outra história – que nos leva à dinâmica da
conquista e expansão europeia.

A empresa monocultora foi o motor da expansão europeia. As chamadas plantations produziram a riqueza – e o modus operandi – que permitiu aos europeus dominarem o mundo. Fala-se em tecnologias e recursos superiores, mas foi o sistema de plantation que tornou possível as frotas marítimas, a ciência e mesmo a industrialização. As plantations são sistemas de plantio ordenado realizado por mão de obra de não proprietários e direcionados à exportação. As
plantations aprofundam a domesticação, reintensificando as dependências das
plantas e forçando a fertilidade. Tomando de empréstimo da agricul-
tura de cereais promovida pelo Estado, investiu-se tudo na supera-
bundância de uma só lavoura. Mas faltou um ingrediente: removeu-se
o amor. Ao invés do romance conectando as pessoas, as plantas e os
lugares, os monocultores europeus nos apresentaram o cultivo pela
coerção. As plantas eram exóticas; o trabalho era realizado à força
por meio da escravidão, de contratos e de conquista. Apenas por meio
de ordenamento e controle extremos algo poderia frutificar dessa ma-
neira; mas com hierarquia e antagonismo administrado em campo,
lucros enormes (e misérias complementares) puderam ser produzidos.
Como as plantations formataram a maneira como o agronegócio con-
temporâneo é organizado, tendemos a pensar em tais arranjos como
a única maneira de praticar agricultura. Mas esse arranjo teve de ser
naturalizado até que aprendêssemos a levar em conta a alienação das
pessoas em relação às suas lavouras.
Considere a cana-de-açúcar, uma participante-chave. Ninguém
ama a monocultura de cana. O trabalhadores da cana em Porto Rico
saem para “se defender” e “brigar” com a cana (Mintz, 1974, p. 16).
Contudo, entre os séculos XVII e XIX, as lavouras de cana-de-açúcar
produziram a riqueza que abasteceu a conquista e o desenvolvimento
europeus.

A cana foi transportada através das zonas quentes, redefinindo
regiões; e atrás dela vieram proprietários, administradores e traba-
lhadores. Escravos foram levados da África Ocidental para o Novo
Mundo. Trabalho precário coolie da Índia e da China penetrou o Pacífico.
Camponeses foram dominados e coagidos nas Índias. E ao forjar um
novo antagonismo com as plantas das monoculturas, os seres huma-
nos modificaram a natureza de ser espécie. As elites estabeleceram
seu senso de autonomia com relação às outras espécies: eles eram
senhores e não amantes dos seres não humanos, ou seja, das espécies
outras que vieram ao mundo para definir a autoatribuição humana.
Mas para os monocultores isso só era possível na medida em que
uma subespécie humana era formulada e produzida à força: alguém
tinha que trabalhar na lavoura de cana. A biologia veio a significar
a diferença entre proprietários livres e trabalhadores submetidos.
As pessoas de cor trabalhavam nos canaviais; as pessoas brancas apenas
os possuíam e administravam. Não havia lei ou ideal que parasse a
miscigenação, mas garantia-se que apenas a raça branca podia herdar
propriedades. As divisões raciais foram produzidas e reproduzidas a
cada dote ou herança.

Desde o início os fungos estavam lá, prontos para preencherem
os eventuais nichos. Os fungos limitaram a lavoura de cana dos pe-
quenos proprietários. Depois do corte, a cana deve ser processada
imediatamente para evitar a fermentação por fungos. A enorme escala
dos canaviais e sua disciplina selvagem de trabalho são em parte uma
resposta aos temores da fermentação, o que inspirou a construção
de dispendiosos engenhos nas fazendas – e o desejo de mantê-los
funcionando continuamente. No entanto, a fermentação por fungos
acabou se tornando uma dádiva aos monocultores. Não demorou para
os canavieiros caribenhos perceberem que o melaço, um subproduto
do processamento do açúcar, ao reagir com os onipresentes esporos
de leveduras, rapidamente se transformava em álcool. Assim nasceu
o rum. E o mortífero, porém, lucrativo “comércio triangular” ofertou
rum em troca de mais escravos africanos e assim houve maior pro-
dução de açúcar e assim surgiram mais destilarias e financiadores na
Inglaterra ou na Nova Inglaterra. Posteriormente, o açúcar veio a se
tornar um objeto e símbolo do consumo em massa, assim cimentando
as expectativas do público de uma espécie autônoma que se alimentava
de comida cuja espécie não pode ser reconhecida, que misteriosamente
aparecia do além. Muito antes disso, entretanto, o rum de fermentação
fúngica havia tornado a plantation canavieira lucrativa, disseminando-a ao longo do campo da Conquista europeia.

Nos limites da respeitabilidade, o rum abasteceu masculinidades marítimas pelas quais o comércio tornou-se aventura. A fermentação, assim, tirou a atenção das pessoas da crueldade da domesticação lito-
rânea, tanto humana quanto não humana.

As mulheres brancas tornaram-se agentes da higiene racial.
Dividindo-nos firmemente em raças, as monoculturas refizeram o que é ser da
espécie humana, a prática de ser um humano. A separação racial, de-
pendendo se feita no casamento ou na organização familiar, requereu
transformações adicionais de gênero. Nas regiões das
plantations , com suas misturas não estabilizadas entre o que é nativo ou estrangeiro, o que é livre, dependente ou escravizado, do selvagem e do domesticado, da doença e da plenitude, as coisas podiam facilmente dar errado.

Aqui as mulheres brancas se tornaram responsáveis por manter
as fronteiras, seja das casas, das famílias, das espécies e da raça branca.
Os fungos tropicais eram uma pequena parte do problema; o mofo e
as infecções podiam sair de controle. Mantendo suas casas livres de
mofo, mosquitos e miscigenação, as mulheres brancas nos trópicos se
tornaram modelos da alienação de espécies e subespécies.

No século XIX, os discursos de higiene científica e eugenia in-
formaram as segregações de espécie das mulheres brancas. A teoria
dos germes de Pasteur foi testada e fomentada nos Trópicos, em que
certos espaços controlados pelos brancos puderam ser organizados
como laboratórios, com microorganismos barrados nas fronteiras dos
lares brancos. As mulheres brancas foram chamadas a seguir de seus
maridos aos Trópicos para manter as coisas limpas. Reimportada pelas
Metrópoles, tal higiene pública e privada alimentou as dicotomias de
classe, informando distinções previamente existentes entre mulheres
“doentes” e mulheres “contagiosas” (Ehrenreich; English,1973). As
mulheres de alta classe se tornaram vulneráveis anjos do lar, enquanto
as mulheres pobres eram acusadas de agentes de infecções. Ambas
receberam ordens renovadas de reprodução. As famílias pobres preci-
savam de mais força de trabalho, particularmente quando o trabalho
infantil permitiu a sobrevivência de muitos adultos. Já as famílias
com privilégios se fortaleceram com o avanço da ideia de raça, já que
as mulheres tinham de gerar seus herdeiros.

As fronteiras do lar se tornaram as expectativas das fronteiras
esperadas para o amor. Com a fetichização do lar como espaço de pureza
e interdependência, as intimidades extradomésticas, sejam internas à
espécie ou entre espécies, pareciam fantasias arcaicas (a comunidade,
o sitiante) ou questões passageiras (feminismo, direitos animais). Fora
de casa reinavam o domínio da racionalidade econômica e os interes-
ses individuais conflitantes. Além disso, esse tipo de fetiche familiar
reapareceu na cultura de massa de meados do século XX nos Estados
Unidos – e novamente hoje em dia – quando os EUA assumiram a
liderança global que permitiu sobrepujar os regimes mais antigos de
cultura colonial. Aqui não se espera amor fora dos muros familiares.
No seio da família, outras espécies podem ser aceitas. Animais de
estimação são modelos da devoção familiar. Mas o modelo dos tão
amados pets não dissemina o amor: ele mantém o amor amarrado ao
interior da família.

A opinião pública estadunidense aprendeu a imaginar-se como
pessoas morais e piedosas porque amam suas crianças e seus animais
de estimação. As pessoas aprendem que este amor os torna “pesso-
as boas”, ao contrário dos terroristas, que fazem apenas odiar. Elas
imaginam que o amor as capacita para tomarem decisões em nome
de todo o mundo. Cria-se uma hierarquia moral na qual a “bondade”
americana se torna qualificação para a liderança global. Outros povos
e outras espécies são julgados por sua habilidade de sobreviver a pa-
drões americanos de intimidade doméstica. Se estiverem propriamente
envolvidos com o amor familiar, merecem viver. Outros riscos tornam-
se “efeitos colaterais” dos projetos estadunidenses para melhorar o
mundo. Eliminar tais riscos pode ser algo infeliz, mas não “desumano”.
Sob tal tutela, nossa forma de ser uma espécie é realinhada para barrar
os Outros na porta de casa.

Dados o poder e a capacidade de disseminação deste plano
biossocial, é incrível que uma (ainda) rica diversidade de espécies e
populações ainda continue a existir na Terra. Mas a existência de tal
riqueza não pode mais ser tomada como um pressuposto.
Coleta de Cogumelos nas Costuras do Império

A diversidade, biológica e social, se amontoa defensivamente em margens
despercebidas. Em selvas urbanas, bem como nos recantos rurais, ainda
fervilha o amontoado de diversidade que os planejadores imperiais
tendem a considerar excessiva. Os pequenos agricultores convivem com
uma diversidade biológica significativamente maior do que o fazem as
grandes fazendas de capital intensivo, e não apenas em suas lavouras.
Mesmo os fungos do solo e outros microorganismos preferem pequenas
propriedades (Vandermeer; Perfecto, 1995). Apesar do ritmo frenético
do comércio genético, os processos evolutivos em zonas despercebidas
continuam a produzir mais espécies úteis e interações entre espécies
em muitas ordens de magnitude. Os fungos são representativos.
Que ser é capaz de se desenvolver em áreas de mineração con-
taminadas? Muitos cogumelos de micorrizas, da guloseima Laccaria laccata
aos perturbadores Pisolithus tinctorius, acumulam metais pesados,
protegendo os seus parceiros florestais, as plantas, da contaminação (Dighton, 2003, p. 323-339). Novos fungos radioativos colonizaram as
paredes da sala do reator nas ruínas de Chernobyl. Se alguém decidir
sequestrar a radioatividade, tais espécies serão necessárias (Dighton,
2003, p. 350-351). Claro que nem todo o desenvolvimento das espécies
de fungos é benigno, mas é apenas na profusão confusa da diversida-
de que é possível a adaptação. De fato, na maioria dos lugares existe
uma correlação negativa entre, de um lado, a diversidade e, de outro,
a intensidade de investimento de capital e controle do Estado. Para
aqueles que amam a diversidade, talvez seja necessário um projeto de
desmapeamento do Capital-Estado.
 
Tais projetos operam melhor na obscuridade que eles procuram
espalhar. Para trabalhos que intencionam publicidade, deveríamos
procurar saber algo do ponto de vista das bordas produtivas e desor-
denadas: as costuras do império.

Os cogumelos que comemos se reúnem nas bordas. Os fungos são onipresentes, mas os cogumelos comestíveis e medicinais só crescem
em poucos lugares. Muitos cogumelos valiosos desenvolvem-se em
ambientes agrários equivalentes a costuras: nos limites entre cam-
pos e florestas, nas margens das zonas de cultivo. Os tortulhos e os
cantarelos são espécies da floresta e de bordas de trilhas; eles gostam
de luz, mesmo à medida que crescem junto com as árvores. Outros,
como o cogumelo do prado (Agaricus campestris), preferem os campos abandonados. Esses cogumelos ainda nos lembram dos prazeres da variedade que existe para além do doméstico. Enquanto isso, muitas espécies são abundantes nas florestas e nas montanhas que circundam vales intensamente agrários.

Desde tempos antigos, os coletores de cogumelos têm vasculha-
do as bordas das montanhas e das florestas dos reinos granívoros:
no sudoeste da China e no Sudeste Asiático adjacente; na Coreia; na
Europa Oriental; e no norte da Eurásia. Na América do Norte contem-
porânea, imigrantes dessas regiões agrárias marginais continuam a
coletar cogumelos para o mercado. Enquanto isso, o mercado mundial
de cogumelos distribuiu sua coleta por todo o mundo. O matsutake,
uma iguaria japonesa, leva coletores não só para as margens asiáticas
tradicionais, mas também para as margens montanhosas do outro lado
do Pacífico: a Colúmbia Britânica, o Noroeste dos EUA e as montanhas
de Oaxaca.

A coleta comercial de cogumelos nos permite ver as costuras do
capitalismo global. Não se trata apenas de lugares diferenciados e
produtos específicos; as formas de conhecimento e de gestão de re-
cursos também são extremamente divergentes, conectadas apenas de
maneira temporária na cadeia de commodities de cogumelo. Famílias do Sudeste Asiático competem por territórios em Oregon. Connoisseurs japoneses desenvolvem hierarquias regionais de gosto. Há muita contingência e variação aqui para imaginar um simples cálculo de oferta e demanda. A imersão neste espaço não remove ninguém do mundo do capital, das classes e da regulação. Aqui não há espaço para uma busca por utopia. Mas perceber as costuras é um lugar para se começar (Tsing, 2005).


Em casas protegidas ao longo de todo o império, os seres huma-
nos se acomodam em suas poltronas com seus animais de estimação
e seus biscoitos que imitam espécies para assistir à destruição do resto
do mundo na TV. É difícil saber se algum ser humano vai sobreviver
a tais sonhos domésticos. Os fungos não estão se posicionando. Mes-
mo os líquens resistentes estão morrendo por causa da poluição do
ar e da chuva ácida (Dighton, 2003, p. 322). Quando eles captam a
radioatividade dos acidentes nucleares, eles a ofertam como alimento
para as renas, que por sua vez alimentarão os humanos caçadores. Nós
podemos ignorá-los, ou podemos considerar o que eles estão a nos dizer
sobre a condição humana (Dighton, 2003, p. 352-353).

Fora de casa, entre as florestas e os campos, a recompensa ainda
não se esgotou.

Clique aqui para ler o artigo completo e ter acesso à bibliografia.
 

Fonte: ISA (Instituto Sociambiental)

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