[Conteúdo] O que a pandemia do coronavírus diz sobre a nossa sociedade

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11 minutos de leitura

Pânico, pandemia, e o corpo político

Por Laurie Penny

Interromper um surto não é apenas uma luta com a natureza. Também é uma luta com a cultura.

 

Infecções não atacam somente as fraquezas do corpo humano. Elas também exploram as fraquezas sociais.

Alguns desastres são pequenos, outros estão muito distantes. A Covid-19 não é nenhum dos dois. Ela é grande, está aqui, e é rápida. As taxas de infecção estão dobrando aproximadamente a cada três dias. Vai ser ruim e vai ser triste. O quão ruim e triste depende do que faremos agora.

Estou escrevendo no dia 12 de março de 2020. Isso significa que a raça humana tem entre duas e quatro semanas para se recompor. Não estamos lidando apenas com germes que são pequenos demais para serem vistos; estamos lidando com obstáculos estruturais que são enormes demais para serem vistos, de maneira que, agora, tele-trabalhando da minha varanda em Los Angeles, não consigo ver a Califórnia.

 

São tempos estranhos e assustadores, e as pessoas estão agindo com medo e de maneira estranha. Meu telefone está vibrando com mensagens de familiares ao redor do mundo, checando uns aos outros. Uma amiga querida está voando para casa na Irlanda hoje à noite para cuidar de seus pais doentes enquanto seu irmão está em quarentena. Outra está doente, lutando para respirar, não dorme há dias e decidiu se apegar ao fato de que suas batatas acabaram.

 

As sociedades foram moldadas por surtos desde os seus primórdios. “As doenças epidêmicas não são eventos aleatórios que afligem as sociedades caprichosamente e sem aviso”, escreve Frank M. Snowden em Epidemics and Society: From the Black Death to the Present[1]. “Cada sociedade produz suas próprias vulnerabilidades específicas. Estudá-las é entender a estrutura dessa sociedade, seu padrão de vida e suas prioridades políticas.`”

Não importa de quem é a culpa pelo fato de a Covid-19 estar devastando o planeta. O que importa é como iremos pará-la – e deter uma epidemia nunca é somente uma luta com a natureza. É também uma luta com a cultura.

Um BUG ou um vírus explora todas as fraquezas do corpo político. A cólera se tornou um grande problema quando os seres humanos começaram a se mudar para as cidades em grandes proporções. Isso continuou sendo um problema até que descobrimos novas maneiras de construir sistemas públicos de esgoto em grande escala, o que envolvia muito dinheiro e mão de obra. Por causa de doenças como a cólera, nós literalmente descobrimos como lidar com a nossa merda.

A falta de conhecimento sobre a teoria dos germes é uma fraqueza estrutural. O preconceito é outra. O que vem à mente quando pensamos na cultura vitoriana? Chapéus bobos e repressão sexual. No século 19, a epidemia de sífilis foi usada para justificar o sexismo e a repressão sexual – quando na verdade o sexismo e a repressão sexual tornavam a sífilis mais provável de se espalhar. Os médicos rotineiramente deixavam de contar às suas pacientes quando elas estavam doentes, porque não queriam expor os maridos traidores que pagavam as consultas. Hoje, as doenças venéreas tendem a proliferar em sociedades que fetichizam a ignorância sexual e tratam o sexo como algo sujo e vergonhoso.

Preconceito e dogma são vulnerabilidades estruturais. No auge da epidemia da AIDS, o vírus se espalhou mais rápido justamente por causa da ignorância e da homofobia. Muitos cristãos conservadores estavam convencidos de que o HIV-AIDS era uma vingança especial de Jesus contra o tipo errado de pessoa que fazia o tipo errado de sexo, e alguns ainda insistem que era mais espiritualmente eficaz orar para afastar os gays do que distribuir preservativos. Infelizmente, um vírus não se preocupa com os princípios religiosos de ninguém ou com suas perspectivas de reeleição. É um pequeno mecanismo de autorreplicação. É moralmente neutro.

Você não pode argumentar que um vírus não existe. Você não pode afastá-lo da lógica, humilhá-lo e recuar ou apelar para sua consciência. Não existe nada assim. Um vírus não tem objetivos, necessidades ou desejos. Não tem cérebro. Você pode explicar o complexo militar-industrial para o seu Lírio da Paz (embora, depois de algumas semanas de auto-quarentena é provável que estejamos todos conversando com nossas plantas domésticas). A Covid-19 é uma doença que poupa crianças e afeta desproporcionalmente homens mais velhos. O presidente Bolsonaro, o demagogo da extrema direita no Brasil, tem a doença, assim como vários assessores que jantaram com Trump no último fim de semana em Mar-a-Lago. Quando se trata de doença como metáfora, a Covid-19 não é sutil. Susan Sontag lutaria para tirar um livro inteiro disso. Mas isso não é um carma. Não é um castigo divino, apesar de que as pessoas nas garras de epidemias geralmente recorrem a histórias simples como essa, porque estão com medo. As epidemias não estão tentando punir ninguém. Estamos fazendo isso com nós mesmos, e isso, como nos diz o profeta Thom Yorke, é o que realmente dói. Isso e a falta de batatas.

Por muitos séculos, o conflito que alimenta o motor da trama da raça humana tem sido a tensão entre o individualismo e o comportamento coletivo – entre o objetivo do florescimento independente e o conceito do bem comum. Como espécie, passamos vários séculos cultivando uma mentalidade coletiva que rejeita o esforço coletivo, e a maioria de nós vive em nações que parecem perigosamente convencidas de que a raça humana é algo que você pode realmente vencer.

Isso, como dizem no twitter, é um verdadeiro problema. A psicologia coletiva do neoliberalismo incentiva o interesse próprio e o pensamento de curto prazo. Isso cria e requer vidas humanas organizadas em torno do tipo de insegurança e estresse constantes que nos impedem ativamente de pensar além do próximo trimestre fiscal. As doenças que terão mais sucesso no próximo século serão, como sempre, as doenças que exploram nossos principais tipos de falha e delírios populares.

Ilusão não é o mesmo que ignorância. A ignorância não é o problema aqui. Esse é um erro que cientistas, repórteres e liberais de direita cometem repetidamente. Consideremos a ameaça da resistência à vacina: a vacinação contra doenças evitáveis, como o sarampo, só funciona se 90% da população tomar a vacina. Acredita-se que o motivo pelo qual as pessoas não vacinam seus filhos é que elas não têm os dados corretos. Na verdade, quando a repórter científica Maggie Koerth investigou essa narrativa, ela descobriu o oposto: quando os pesquisadores tentaram desmistificar a desinformação, os antivaxxers estavam mais propensos a concordar com a ciência, porém menos propensos a vacinar seus próprios filhos. Mesmo equipados com informações melhores, seus parâmetros de ameaça eram totalmente inadequados ao conceito existencial de imunidade coletiva.

Uma boa parte das pessoas que acumulam máscaras e roubam álcool em gel também estão cientes de que isso é uma coisa estúpida e egoísta de se fazer – mas se você não confia que outras pessoas irão compartilhar, o comportamento egoísta faz sentido emocionalmente, mesmo quando o comportamento egoísta também é irracional e ativamente perigoso. Se você projeta uma economia mundial que recompensa o interesse próprio acima de tudo e torna o altruísmo inacessível, não é surpreendente que algumas pessoas comecem a agir como se estivessem no dilema do prisioneiro.

“O que é verdade para todos os males do mundo é verdade para a peste também”, escreveu Albert Camus, em uma citação que é melhor você se acostumar a ver muito nas próximas semanas. “Ajuda os homens a se elevarem acima de si mesmos”. Isso não é inteiramente verdade, visto que o que uma crise tende a fazer é revelar o caráter, incluindo suas incongruências. Enquanto escrevo, velhinhas na Bélgica estão se agarrando por cima dos últimos rolos de papel higiênico. O violoncelista Yo-Yo Ma está transmitindo gravações de sua casa. Sicilianos em quarentena tocam música juntos em seus arranha-céus, provando duas coisas: que a nação italiana sempre soube o que fazer com o queijo e que um número surpreendente de pessoas possui pandeiros.

À meia-noite do Dia da Pandemia, fui ao supermercado local com meu colega de casa comprar itens essenciais como gim, vinho e Kit-Kats na promoção. O lugar era uma cena de abertura de um filme de desastre. As prateleiras tinham sido esvaziadas de sabão, água engarrafada e aveia, mas foi muito surpreendente ver o que restou. Havia muitas barras de proteína, porque ninguém quer comer barras de proteína na última refeição, mesmo em Los Angeles.

Uma garota vestindo uma jaqueta e com uma expressão confusa agarrou a última batata-doce. “Não sei por que estou comprando isso”, anunciou ela em voz alta. “Eu nem gosto delas. Eu apenas sinto que podemos precisar disso”. Seu namorado estava empurrando um carrinho cheio de todas as caixas restantes de verduras. Pelos olhares maldosos que vinham em sua direção, eu queria poder avisar os dois para largar a couve e correr, caso as coisas estivessem prestes a virar A Loteria[2].

“Eu vivi três guerras. Isso é besteira ”, disse uma loira empurrando um carrinho meio vazio. O nome dela era Irina, ela tinha 35 anos e era da ex-Iugoslávia. “Foi assim durante seis anos. É estupido. É claro que as pessoas deveriam tentar levar isso a sério, tentar não infectar ninguém, mas sério – não tem mais batatas!”

As pessoas fazem escolhas estranhas quando estão com medo. No momento, muitos jovens millennials falidos que conheço ainda estão trabalhando em bares, cafés e masmorras de BDSM porque eles realmente precisam manter esses empregos e – como os boomers têm demonstrado alegremente por décadas – se uma crise de nível biológico provavelmente não vai matá-lo pessoalmente, você pode muito bem fingir que não está acontecendo. Eu ainda quero gritar com eles. Infelizmente, gritar também não ajuda muito agora. Você não pode lutar contra uma epidemia apenas sendo agressivo. Envergonhar seus amigos não é a melhor maneira de fazer com que mudem de comportamento rapidamente. Envergonhar e culpar as pessoas pode fazer você se sentir melhor a curto prazo, e às vezes funciona a longo prazo, quando as pessoas tiverem tempo para sair, pensar sobre isso e se acalmar. Não temos esse tempo agora. Temos que ser gentis uns com os outros. Temos que praticar a confiança. Porque agora, e nas próximas décadas, nossos maiores problemas como espécie serão os problemas que não podemos resolver sem confiarmos uns nos outros para fazer a coisa certa.

A ideia do corpo político é uma metáfora muito antiga. Se uma nação é um “organismo social”, os Estados Unidos têm um sistema imunológico social extremamente fraco. Muitos americanos não têm dinheiro para ficar em casa se ficarem doentes. São pouquíssimos os atestados médicos, e perder um cheque de pagamento pode significar um desastre. Muitos americanos não podem se dar ao luxo de ficar doentes, porque o sistema de saúde do país é um gigante desajeitado da barbárie moderna. O que isso significa é que a maioria deles internalizou algumas ou todas as seguintes ideias: Temos que competir ferozmente com os outros, ninguém mais é confiável, a saúde e a riqueza de nossa própria nação vêm em primeiro lugar, e, a longo prazo, o pensamento coletivo é menos importante do que a sobrevivência individual. E acontece que todas essas coisas são úteis para a propagação de uma doença como a Covid-19.

Pessoas que acreditam que precisam competir ferozmente com os outros estão mal preparadas para compartilhar o álcool em gel. Pessoas que não confiam umas nas outras acham difícil acreditar que todos seguirão os procedimentos básicos de quarentena. Então por que deveriam? Aqueles que não estão acostumados com o conceito de bem comum não sabem o que fazer diante de uma ameaça comum – exceto o pânico. O pânico não ajuda, mas às vezes não é uma má escolha para começar.

“Eu quero que vocês entrem em pânico.” Foi assim que a adolescente ativista climática Greta Thunberg abriu seu discurso nas Nações Unidas no ano passado. Ela não estava nos aconselhando a começar a estocar batatas. O mundo não entrou em pânico, embora o aquecimento global seja uma crise em uma escala muito mais bíblica do que a Covid-19. A diferença é que o colapso do clima está acontecendo gradualmente. É claro que, em uma escala planetária, a velocidade da ascensão exponencial do desastre ambiental é assustadora e de tirar o fôlego, mas a maioria de nós não está vendo uma diferença na grande escala de tempo que importa para os seres humanos que tentam sobreviver ao capitalismo tardio, ou seja, de salário em salário. O colapso do clima está acontecendo no ritmo de uma vida humana. O coronavírus está acontecendo em uma velocidade relativa muito maior, que é uma medida de quão rápido seus amigos e familiares emergem do grosso cobertor da negação, em sociedades nas quais a maioria de nós, em um nível prático, prefere morrer a ser seriamente incomodados.

Sérios inconvenientes são o novo normal – para todos nós. Incluindo os velhos, os ricos e os poderosos. Esse é um problema para o qual ninguém pode comprar uma saída. Tal como acontece com a crise climática, ainda não estamos tecnologicamente avançados o suficiente para impedir que isso aconteça de forma fácil e plena – mas temos as informações e a capacidade prática para impedir que seja uma omnishambles[3] em nível de extinção. Sabemos o que fazer, ou pelo menos temos profissionais suficientes que sabem o que fazer, e parte do nosso paradigma de sobrevivência vai envolver aprender a calar a boca e ouvir profissionais treinados em vez de vacilar diante da Fox News.

Você pode adquirir imunidade da promotoria, mas não pode adquirir imunidade de uma pandemia. O coronavírus é um teste de estresse para a espécie. É um teste para os desastres que estão por vir. Bem, uma corrida úmida/difícil. É um teste para a nossa capacidade de lidar com desastres em escala planetária, e dessa vez provavelmente passaremos. Quase. Não com louvor, especialmente considerando o tempo que levamos para fechar os aeroportos, e não sem muita dor, estresse e perdas – mas a civilização não está prestes a entrar em colapso este ano. Redes de ajuda mútua estão se replicando loucamente em plataformas de mídias sociais sobrecarregadas e ofegantes. Vizinhos que nunca trocaram mais do que algumas frases estão perguntando uns aos outros como estão e o que precisam e, às vezes, timidamente, quais são seus nomes. Isso será terrível, e, em seguida, terminará, e quando terminar teremos aumentado nossa resistência.

 

[1] Epidemias e Sociedade: Da Peste Negra aos dias atuais

[2] The Lottery (“A Loteria”) é um conto escrito por Shirley Jackson para o The New Yorker em 26 de junho de 1948.

[3] Omnishambles é um neologismo usado pela primeira vez na sátira política da BBC, The Thick of It. A palavra é composta do prefixo latino omni-, que significa “todos”, e a palavra shambles, um termo para uma situação de desordem total.

 

Traduzido do inglês por WALMIR LACERDA.

 

FONTE: www.wired.com

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