Por Jean-Paul Sartre
O que esperáveis que acontecesse, quando tirastes a mordaça que tapava as bocas negras? Que vos entoariam louvores? Estas cabeças que nossos pais haviam dobrado pela força até o chão, pensáveis, quando se erguessem, que leríeis a adoração em seus olhos? Ei-los em pé, homens que nos olham e faço votos para que sintais como eu a comoção de ser visto. Pois o branco desfrutou durante três mil anos o privilégio de ver sem que o vissem; era puro olhar, a luz de seus olhos subtraía todas as coisas da sombra natal, a brancura de sua pele também era um olhar, de luz condensada. O homem branco, branco porque era homem, branco como o dia, branco como a verdade, branco como a virtude, iluminava a criação qual uma tocha, desvelava a essência secreta e branca dos seres. Hoje, esses homens pretos nos miram e nosso olhar reentra em nossos olhos; tochas negras, ao seu redor, iluminam o mundo, e nossas cabeças brancas não passam de pequenas luminárias balouçadas pelo vento. Um poeta negro, sem mesmo se preocupar conosco, segreda à mulher que ama:
Mulher nua, mulher negra
envolvida com tua cor que é vida…
Mulher nua, mulher sombra, Fruto maduro de carne firme, êxtase turvo de vinho negro.
e nossa brancura nos parece um estranho verniz pálido que impede nossa pele de respirar, uma malha branca de ballet, desgastadas nos cotovelos e nos joelhos, sob a qual, se pudéssemos despi-la, encontra-se-ia a verdadeira carne humana, a carne cor de vinho negro. Julgamo-nos essenciais ao mundo, os sóis de suas messes, as luas de suas marés: não passamos de meros animais de sua fauna. Nem sequer animais:
Estes Senhores da cidade
Estes Senhores compenetrados
Que já não sabem dançar à noite sob o luar
Que já não sabem andar sobre a carne de seus pés
Que já não sabem contar histórias noite adentro…
Outrora europeus por direito divino, sentimos há algum tempo nossa dignidade esboroar-se sob os olhares americanos ou soviéticos; a Europa já não é senão um acidente geográfico, a península que a Ásia lança até o Atlântico. Se ao menos esperássemos recobrar algo de nossa grandeza aos olhos domésticos dos africanos. Porém não há mais olhoso domésticos: há olhares selvagens e livres que julgam nossa terra.
Aqui está um negro errante:
até o fim
de eternidade de seus infinitos bulevares
de “tiras”…
E o outro que grita para seus irmãos:
Ai de mim! Europa aracnídia move os dedos e suas falanges de navios…
E eis:
o emboscado silêncio deste noite d’Europa…
em que
… nada há que o tempo não desonre.
Um negro escreve:
Montparnasse e Paris, a Europa e seus tormentos sem fim,
Perseguir-nos-ão, por vezes, como se fossem recordações ou inquietudes…
e de pronto, aos nossos olhos, a França se afigura exótica. Não passa de uma lembrança, de uma inquietude, de uma bruma branca que pousa no fundo de almas assoalhadas, uma hinterlândia atormentada onde não é bom viver; derivou para o norte, ancorou perto de Kamtchatka: o sol, este sim, é essencial, o sol dos trópicos e o mar “piolentos de ilhas”, as rosas de Imango e os lírios de Iarive e os vulcões da Martinica. O Ser é negro, o Ser é ígneo, nós somos acidentais e longínquos, devemos justificar-nos por nossos costumes, nossas técnicas, nossa palidez de mal cozidos e nossa vegetação azinhavre. Somos roídos até os ossos por estes olhares tranquilos e corrosivos:
Escuta o mundo branco
horrivelmente lasso de seu imenso esforço
suas articulações rebeldes estalando sob estrelas duras
suas inflexibilidade d’aço azul varando a carne mística
escuta suas vitórias proditórias e trombetear suas derrotas
escuta nos alibis grandiosos seus miserável estertor
Piedade para nossos vencedores oniscientes e ingênuos.
Estamos, pois, liquidados; nossas vitórias, de ventre para o ar, exibem suas entranhas, nosso secreto revés. Se queremos quebrar esse finidade que nos aprisiona, não mais podemos confiar nos privilégios de nossa raça, cor, e técnicas: só poderemos unir-nos a esta tonalidade de onde nos exilam esses olhos negros, arrancando nossas malhas brancas para tentarmos ser simplesmente homens.
Entretanto, se tais poemas nos dão vergonha, não é deliberadamente: não foram escritos para nós; todos os que, colonos e cúmplices, abrirem este livro, cretão ler, por sobre um ombro, versos que não lhes são destinados. Aos negros é que estes negros se dirigem, e para falar-lhes de negros: sua poesia não é satírica nem imprecatória: é uma tomada de consciência.”Então, direis, no que nos interessa ela, se não a título de documento? Não podemos penetrá-la.” Gostaria de mostrar qual o caminho de acesso a este mundo de azeviche e como esta poesia que parece de início racial é finalmente um cantos de todos e para todos. Numa palavra, dirijo-me aqui aos brancos e gostaria de explicar-lhes o que os negros já sabem: porque é necessariamente através de uma experiência poética que o negro, na situação presente, deve primeiro tomar consciência de si mesmo e, inversamente, porque a poesia negra de língua francesa é, em nossos dias, a única grande poesia revolucionária.
Referência: Parte 1 da Introdução à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache, de Léopold Sedar Sanghor, Presses Universitaires, 1948.
FONTE: SARTRE, J.-P. Reflexões sobre racismo. J. Guinsburg. TraduçãoSão Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960, p. 105-149.
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