[Conteúdo] Wilhelm Reich: percurso histórico e inserção do pensamento no Brasil.

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Paulo Albertini

Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – SP – Brasil

Responsável por um fazer científico comprometido com a busca de melhoria das condições de vida humana, o austro-húngaro Wilhelm Reich (1897-1957), como uma espécie de combatente cultural, amarrou vida e obra num só projeto e percorreu um itinerário marcado pelo engajamento em propostas de intervenção social.

Neste ensaio, por concebermos a obra reichiana como um processo vivo e contínuo de formulação, que implicou em movimentos de elaboração e reelaboração de conceitos e posturas, adotamos uma forma de exposição histórica. Em termos de objetivos, quatro intentos balizam esta investigação: a) acompanhar a trajetória científica percorrida por Reich; b) indicar a aliança entre teoria e prática presente na produção desse autor; c) identificar, do acervo freudiano, o grupo de noções e perspectivas que ajudaram a alicerçar o enfoque reichiano; d) tecer considerações sobre a inserção do pensamento de Reich no Brasil.

A fim de realizarmos esta pesquisa teórica, especificamente no que diz respeito à produção reichiana, consultamos artigos científicos, livros, capítulos de livros e, também, uma entrevista dada pelo autor aos Arquivos Sigmund Freud em 1952 (Higgins e Raphael, 1979). Devido à orientação assumida, no caso dos trabalhos de Reich procuramos explicitar, além do ano da edição utilizada, o ano da publicação original dos escritos. Adotamos a mesma conduta para os textos de Freud.

Reich escreveu a sua obra em alemão, a maior parte, e também em inglês. Tomamos como procedimento, confrontar as traduções de seus escritos para a língua portuguesa, nem sempre de boa qualidade, com edições publicadas em inglês ou espanhol. Ainda na esfera dos procedimentos, com o intuito de situar o leitor na atual área de estudos voltada para o pensamento reichiano, um território não tão conhecido e ainda em processo de estruturação (Matthiesen, 2007), buscamos inserir indicações a respeito de publicações recentes efetuadas nesse campo.

De acordo com a ordem cronológica dos acontecimentos, o conteúdo deste estudo foi organizado em quatro tópicos: no primeiro, o leitor encontrará uma exposição de caráter biográfico sobre, aproximadamente, as duas primeiras décadas da vida de Reich; no segundo, uma apreciação a respeito da orientação assumida por esse autor no movimento psicanalítico; no terceiro, uma apresentação sobre os caminhos, teóricos e práticos, trilhados por Reich depois de sua participação na instituição psicanalítica; no quarto, observações a respeito das características da inserção e do desenvolvimento do pensamento reichiano no Brasil.

Alguns aspectos biográficos

De início, a fim de aproximarmos a obra reichiana do seu contexto sócio-histórico, algo fundamental em se tratando de um autor profundamente envolvido com as questões de seu tempo, apresentaremos algumas considerações biográficas. Trata-se de um tópico de caráter introdutório, no qual almejamos iluminar alguns aspectos de uma vida, no quadro do enredo de uma época. No que diz respeito aos primeiros 25 anos da vida de Reich, a principal referência é a autobiografia Leidenschaft der jugend: Eine autobiographische, 1897-1922 (Paixão de juventude: Uma autobiografia, 1897-1922), publicada pela primeira vez em 1988, cerca de 30 anos após a sua morte. Trata-se de um diário escrito de 1918 até 1922, período em que cursou medicina em Viena; depois, nos anos de 1937 e 1944, Reich acrescentou outras recordações ao material original (Reich, 1988). Primogênito de uma família de quatro membros, composta por Leon, o pai, Cäcilie, a mãe, e Robert, o irmão três anos mais novo, Wilhelm Reich nasceu em 24 de março de 1897, numa aldeia da Galícia, Dobrzynica, que, então, fazia parte do antigo império austro-húngaro. Pouco tempo depois, a família mudou-se para Jujintz, na província de Bukovina, o lado germano-ucraniano da Áustria, onde adquirira extensa propriedade rural. No que diz respeito ao panorama de sua infância, Reich (1988) registra que Robert e ele não tinham permissão para brincarem com os filhos dos empregados da fazenda. Nessa mesma linha de cerceamento, o pai, de tradição judaica não ortodoxa, proibia aos integrantes da família o uso do iídiche, língua falada pelos judeus que ocupavam os cargos administrativos da propriedade. Somente o alemão, que apontava para uma cultura considerada superior, e o hebraico, por vezes empregado para sinalizar o vínculo à tradição judaica, podiam ser utilizados. Para o autor, tais restrições, que visavam separar patrões e empregados, eram provenientes de uma motivação de ordem econômica. Nesse contexto, uma cena, pela riqueza de detalhes, merece ser citada. De acordo com Reich (1988), aos oito anos de idade, quando brincava no quintal de sua casa, um menino, filho de um camponês, atirou uma pedra que o atingiu na testa e ocasionou um pequeno ferimento. Cäcilie, depois de lavar o machucado, contou o fato a Leon. Este mandou chamar o menino e seu pai e, depois de se reportar brevemente ao ocorrido, passou a golpear fortemente o trabalhador que, para espanto de Reich, não esboçou qualquer reação. Com o intuito de salientar o olhar de Reich sobre os fenômenos, o seu foco de interesse, chama a atenção o fato de que, tal como no evento relatado, boa parte dos escritos reichianos voltou-se para a investigação da aceitação da dominação, ou, em outras palavras, para a pesquisa da “vida economizada”, na feliz expressão empregada por Ramalho (2010). Assim, por exemplo, no clássico, Massenpsychologie des Faschismus (Psicologia de massa do Fascismo), publicado originalmente em 1933, ano no qual Hitler ascendeu ao poder na Alemanha, a questão norteadora é assim formulada: “o que é necessário explicar não é que o faminto roube ou que o explorado entre em greve, mas porque a maioria dos famintos não rouba e a maioria dos explorados não entra em greve” (Reich, 1974, p. 22). Com esse mesmo prisma, no âmbito da clínica, a orientação reichiana está sempre atenta aos sinais de resignação, expressos por meio de padrões de atuação que implicam em perda de vitalidade. Contudo, cabe assinalar que Reich não esteve sozinho nessa empreitada destinada a investigar as raízes da submissão individual ou coletiva. Segundo Rouanet (1986), o debate intelectual nas décadas de 20 e 30 do século passado envolveu a busca de resposta à pergunta, “obsessivamente reiterada”, de “como é possível que a maioria oprimida aceite sua opressão pela minoria?” (p. 26). O próprio Freud forneceu novos e valiosos elementos à discussão ao expor, ainda em 1921, no estudo Massenpsychologie und ich-analyse (Psicologia de massa e análise do ego), as conexões entre submissão à autoridade e busca de expiação de culpa inconsciente (Freud, 1973c). Deve-se também lembrar que essa temática possui um marco ainda no século XVI, quando o jovem filósofo francês Etienne De La Boétie, em Discours de La Servitude Volontaire (Discurso da Servidão Voluntária), discorreu sobre o enigma da servidão consentida, aquela que, de forma intrigante, rompe com o entendimento de que a liberdade seria a escolha natural do homem (La Boétie, 1982). Ainda em Paixão de juventude, Reich expõe em detalhes um conjunto de trágicos eventos familiares, que, pela sua importância, devem ser mencionados. De acordo com o relato, sua mãe teve um envolvimento amoroso com o seu segundo preceptor1 e, em janeiro de 1910, quando já recebia instrução do terceiro acadêmico, numa cena em que foi fortemente pressionado pelo pai, ele contou que havia testemunhado a traição de Cäcilie. Desde então, a família mergulhou num abismo sem volta: Reich, de imediato, aos 12 anos, foi enviado a Czernowitz, uma cidade próxima, para continuar seus estudos; a mãe, castigada física e psicologicamente pelo pai, morre em outubro de 1910, como consequência de sua terceira tentativa de suicídio por meio da ingestão de medicamentos; o pai, emocionalmente fragilizado, com dificuldades econômicas e acometido de tuberculose, falece em 1914. Como dimensionar, com a delicadeza que o assunto exige, a trama de fios presente nessa catástrofe familiar? De acordo com o escrito reichiano, chamam a atenção os temas da traição, vingança e culpa das pessoas envolvidas. Contudo, numa leitura mais global e distanciada, cabe lembrar que os eventos descritos ocorreram no contexto social europeu do início do século XX, em uma sociedade marcada por uma rígida moral sexual, com lugares muito claros em relação às figuras masculinas e femininas. Por tal linha de raciocínio, podemos olhar o conflito ocorrido naquela família como um microcosmo que trouxe à tona, de maneira radical e dramática, muito do enredo cultural do período, e não algo peculiar ou idiossincrático. Nessa ótica que aproxima parte e todo, difícil não perceber uma íntima relação entre a teoria e a prática reichiana e o mapa social então presente. A nosso ver, Reich, como uma espécie de pára-raios, experimentou, ainda muito jovem, problemas de um período histórico vinculado ao domínio da sexualidade e, com a devida militância de quem foi tomado pelo tema, dedicou-se a investigá-los e a combatê-los. Com a morte da mãe, em 1910, e do pai, em 1914, Reich, aos 17 anos, assume o controle da fazenda. Contudo, dada a ocorrência de avassaladores acontecimentos sociais, a sua vida de proprietário rural estava fadada a um breve desfecho. Em 28 de junho de 1914, o arquiduque da Áustria e herdeiro do trono, Francisco Ferdinando Habsburgo, é assassinado e o império austro-húngaro declara guerra à Sérvia. Com a rápida internacionalização do conflito, tem início a Primeira Guerra Mundial. Distante do centro do império, a província da Bukovina tornou-se extremamente insegura para seus habitantes e muitas fazendas foram abandonadas. Enquanto Robert foi mandado para a casa de parentes, Reich, apesar dos perigos, decidiu permanecer na propriedade. Apenas alguns dias depois do início da guerra, soldados russos invadiram a região e chegaram a pernoitar na fazenda. Dados os riscos iminentes que a vida civil apresentava para os moradores da região, permeada por franca hostilidade entre os austríacos simpatizantes dos russos e os que, como Reich, continuavam fiéis ao império, ele se inscreveu como voluntário no exército austríaco. Neste, ocupou as patentes de cabo e tenente, chegando a atuar em frentes de batalha em território italiano (Reich, 1988). Com o fim do conflito bélico em 1918, depois de quase quatro anos, a tarefa que se impunha era a da readaptação à vida civil. Como a antiga propriedade deixou de pertencer à família, devido a problemas territoriais decorrentes da guerra e a legais, vinculados a uma falência fraudulenta ocasionada por um parente, Reich, em precárias condições financeiras, decidiu rumar para Viena. Nessa cidade, de início, morou na casa de parentes e depois, juntamente com o irmão Robert e outro estudante, num quarto sem calefação, no qual chegou a passar fome e frio. Nesse período, ainda em 1918, matriculou-se no curso de Direito da Universidade de Viena, mas, depois de alguns poucos meses, recordando seu interesse pelas ciências naturais, abandonou o curso de Direito e matriculou-se no de Medicina, na mesma universidade (Reich, 1988).

Psicanálise e intervenção social

Em 1920, com a apresentação à Sociedade Psicanalítica de Viena de um estudo sobre Peer Gynt (Reich, 1975), personagem do drama homônimo de Ibsen, Reich, ainda um estudante de Medicina, foi aceito na instituição psicanalítica e nela permaneceu até 1934, portanto por 14 anos. Nessa instituição, elaborou ideias voltadas para o domínio da técnica terapêutica (o conjunto de diretrizes batizadas com o nome de Análise do Caráter); para a teoria (as formulações conhecidas como Teoria do Orgasmo) e, articulando psicanálise e marxismo, desenvolveu projetos de intervenção social (primeiro em Viena, a Sociedade Socialista para o Aconselhamento e a Investigação Sexual e, depois, em Berlim, a Associação Alemã para uma Política Sexual Proletária, a Sexpol). Vejamos esse conjunto de ideias e ações. No movimento freudiano, duas organizações, criadas em 1922, receberam toda atenção do jovem Reich: no plano da discussão da técnica, os Seminários de Técnica Psicanalítica; na esfera do atendimento à população de baixa renda, a Policlínica Psicanalítica de Viena. De acordo com o depoimento de Briehl – psicanalista norte-americano que participou desses Seminários em Viena e escreveu sobre Reich na coleção A história da psicanálise através de seus pioneiros -, “O objetivo desse seminário era o de estudar exclusivamente as histórias de casos estagnados e fracassos analíticos” (Briehl, 1981, p. 481). Especificamente sobre a atuação de Reich, o autor registrou:

Reich dirigia seu seminário com informalidade e espontaneidade. Enfatizava dois temas principais: o estudo dos problemas de resistência individualizados e o estudo das razões dos fracassos analíticos, até então considerados resultantes da inexperiência ou erros individuais e não consequências das limitações da técnica (p. 481/482).

Como o psicanalista americano indica, esse fórum estudava os casos considerados de insucessos analíticos (por exemplo, abandono, estagnação do processo, suicídio) e, pelo menos sob a direção de Reich, o foco dos trabalhos apontava para possíveis limitações na técnica, mais do que para os eventuais erros cometidos pelos analistas. Em termos conceituais mais específicos, a meta era buscar formas de se lidar com a resistência, pois, como bem sintetizaram Laplanche e Pontalis (1983, p. 596), de acordo com Freud “todo o progresso da técnica analítica constitui uma apreciação mais correta da resistência”. Tendo por base tal entendimento, talvez a pergunta norteadora desses seminários pudesse ser assim explicitada: que desenvolvimentos ou alterações na técnica são necessários para se conseguir lidar melhor com a resistência? Em suma, no que diz respeito à produção reichiana, essa atividade resultou na progressiva elaboração da Análise do Caráter, a primeira das três técnicas terapêuticas propostas por Reich e aquela que mais próxima se situa do referencial psicanalítico. Como ainda veremos neste ensaio, a segunda abordagem terapêutica foi batizada com o nome de Vegetoterapia Carátero-Analítica e a terceira com o de Orgonoterapia (Reich, 1976a). Já em relação à participação de Reich na Policlínica Psicanalítica de Viena, segundo o escrito sob a responsabilidade da Orgone Institute Press Wilhelm Reich: Biographical Material (1953), tal fato ocorreu por cerca de oito anos: de 1922 até 1928, no cargo de primeiro-assistente, e de 1928 até 1930, no de vice-diretor. A título de ilustração, vejamos uma comovente descrição reichiana do cotidiano nessa peculiar clínica psicanalítica:

Os horários de consulta viviam apinhados de gente … A afluência era tão grande que nós não dávamos conta, sobretudo depois que a clínica se tornou conhecida entre o povo. Cada psicanalista concordou em oferecer gratuitamente uma sessão diária. Mas não foi o suficiente. Precisávamos destacar os casos mais passíveis de análise. Isso nos obrigou a procurar descobrir os meios de avaliar as possibilidades de tratamento… Uma coisa se tornou logo clara: a psicanálise não é uma terapia de massa. A idéia de prevenir neuroses não existia – e ninguém sabia o que dizer a respeito (Reich, 1989, p. 74).

Desse modo, ficamos sabendo que, para o jovem psicanalista com profunda preocupação social, a experiência nessa clínica psicanalítica popular, além de revelar os limites do atendimento individual convencional, trouxe o tema da prevenção na área da saúde mental. Um comentário geral que pode ser feito sobre a participação de Reich nos Seminários de Técnica e na Policlínica de Viena refere-se a que ambas as experiências propiciaram o aparecimento de questionamentos sobre aspectos já sedimentados do acervo teórico e prático da psicanálise. A saber, no domínio da técnica, os Seminários acarretavam a discussão das diretrizes técnicas até então aceitas e a consequente formulação de outras orientações; na esfera da prática clínica, o trabalho cotidiano na Policlínica, dadas as suas peculiaridades, trazia uma série de novas questões e, também, um campo aberto para a experimentação de linhas não usuais de atendimento. Após termos visitado o engajamento reichiano com os Seminários de Técnica e com a Policlínica de Viena, voltaremos nossa atenção para um fio condutor dos trabalhos desse autor. Estamos nos referindo à perspectiva energética (Bedani, 2007) e à construção da teoria do orgasmo. Nas palavras de Reich (1989), o leitor pode encontrar uma detalhada apresentação dessa formulação no capítulo quatro do livro The function of the orgasm(A função do orgasmo). De nossa parte, no espaço deste ensaio, objetivamos mostrar que tal elaboração reichiana contempla a presença de algumas sementes lançadas por Freud. De acordo com Albertini (1994, 2003), no amplo edifício freudiano, o lócus reichiano deve ser buscado em noções relacionadas ao chamado ponto de vista econômico, tais como a de estase da libido e a de neurose atual. Cabe também apontar que, no acervo freudiano, há, em especial, um artigo em que essas noções ganharam relevo e embasam uma profunda crítica à moral sexual vigente. Trata-se do trabalho Die ‘kulturelle’ sexualmoral und die moderne nervosität (Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna), publicado originalmente em 1908 (Freud, 1973b). Neste, o autor atribui a tal moral sexual uma parcela de responsabilidade pelo aumento da incidência das chamadas doenças nervosas. Reich, além de uma proximidade global com esse trabalho freudiano, adota, em especial, uma tese central do mesmo, aquela que vê a conduta sexual do homem como o protótipo de suas demais reações na vida. Vejamos essa assertiva freudiana:

A conduta sexual de uma pessoa constitui o protótipo de suas demais reações. Em relação àqueles homens que conquistam energicamente seu objeto sexual, podemos supor análoga energia na luta por seus outros fins. Mas se, por atenderem a uma série de considerações, renunciam à satisfação de seus poderosos instintos sexuais, nos demais casos serão mais conciliatórios e resignados do que ativos (Freud, 1973b, p. 1.258).

Esse caminho – centrado na magnitude energética dos fenômenos, embalado por uma crítica à moral sexual do período e que concebe o comportamento sexual como o protótipo das demais reações humanas -, presente em escritos mais iniciais da bibliografia freudiana, em Reich vai desembocar, nos últimos anos da década de 1920 e início dos anos 1930, num combate à estruturação social repressora. Em especial, seu foco vai apontar para as instituições responsáveis pela formação sexual do homem: a família, a escola e as organizações religiosas. Segundo essa perspectiva, boa parte das amarras neuróticas humanas seria gerada por determinadas condições socioculturais, próprias de um período histórico, e não por dificuldades consideradas universais e atemporais. Para o autor, as atuais limitações humanas poderiam ser minimizadas a partir de transformações que implicassem em modificações no campo da sexualidade. Assim sendo, por exemplo, no livro Massenpsychologie des Faschismus (Psicologia de massa do fascismo), a repressão sexual é vista como uma espécie de matriz que prepara o indivíduo para a aceitação das demais repressões (Reich, 1974). Em termos mais específicos, a inibição sexual tenderia a gerar pessoas impotentes diante da vida e, em consequência, potencialmente aderentes a ideologias autoritárias, como a nazifascista, que, sob o manto da moralidade, aliava proteção e satisfação de impulsos secundários destrutivos. Com essa compreensão, a revolução sexual proposta por Reich teria efeitos que ultrapassariam, em muito, a esfera da luta pelo direito ao amor sexual; ela se insere num amplo projeto de transformação das estruturas sociais e humanas. Mais do que um mero brado de reivindicação hedonista, Reich aponta para a necessidade da presença de um contexto social não cerceador da vida, algo fundamental para a formação do cidadão. Deve-se registrar que essa direção, de cunho preventivo por meio de transformações sociais, de maneira alguma encontrou eco na produção freudiana desenvolvida a partir da década de 1920. Em sentido contrário ao assumido por Reich, trabalhos de Freud, como Das unbehagen in der kultur (O mal-estar na civilização), vão sustentar que a neurose é uma condição inevitável da vida civilizada; na verdade, o preço pago para a sua construção. Para o mestre psicanalista, não haveria como rimar cultura com liberdade ou com felicidade (Freud, 1973a). Como uma espécie de continuidade da atividade desenvolvida na Policlínica Psicanalítica de Viena, Reich, buscando uma atuação de caráter mais preventivo, fundou, em 1928, também em Viena, a Associação Socialista para o Aconselhamento e Investigação Sexual. Essa entidade – que contava com a participação de psicanalistas como Annie Angel, Edmund Bergler e Annie Reich (primeira mulher de Reich, com quem teve as filhas Eva e Lore), oito médicos e um advogado – criou seis centros de aconselhamento espalhados por bairros de Viena. No livro People in trouble (Pessoas em dificuldade), assim o autor recorda o início dos trabalhos:

Espalhamos a notícia de que sexólogos especialistas haviam formado uma organização para fornecer, em vários bairros de Viena, aconselhamentos gratuitos sobre problemas sexuais, educação de crianças e higiene mental em geral… Foram dadas palestras sobre higiene sexual, as causas e os possíveis remédios para as dificuldades emocionais. A Associação assumiu a posição de que a miséria sexual era causada, essencialmente, pelas condições enraizadas na ordem social burguesa e de que ela não poderia ser removida inteiramente, mas que podia ao menos ser aliviada com a ajuda às pessoas (Reich, 1976b, p. 107/108).

Segundo Reich, logo os centros ficaram superlotados. As principais atividades neles desenvolvidas eram o aconselhamento individual, as palestras sobre sexualidade de acordo com os princípios da Economia-sexual (denominação que Reich passa a empregar para se referir à sua abordagem) e o fornecimento de informações sobre métodos contraceptivos. Boa parte da procura era feita por mulheres com gravidez indesejada. Nesses casos, a orientação era privilegiar o estado emocional da mulher e, muitas vezes, ocorria o encaminhamento para médicos que, sem autorização legal, faziam o aborto (Reich, 1976b). Sobre a orientação socialista dessa Associação, deve-se pontuar que Reich, nos anos finais da década de 1920, aproximou-se do referencial marxista (Bedani e Albertini, 2006) e, procurando articulá-lo à psicanálise, produziu trabalhos que ficaram conhecidos como freudo-marxistas. O texto que lança as bases conceituais dessa articulação é Dialektischer materalismus und Psychoanalyse (Materialismo Dialético e Psicanálise), livro publicado originalmente em 1929. Neste, dentre outros aspectos, Reich argumenta a favor de duas teses centrais: a presença de um dinamismo dialético na vida mental e a visão de que a psicanálise não se constitui numa ciência idealista (Reich, 1972). Em 1930, dentre outros fatores (Albertini, 1994), procurando uma maior inserção no movimento de transformação social, Reich mudou-se para Berlim e filiou-se ao Partido Comunista Alemão. No ano seguinte, fundou a Associação Alemã para uma Política Sexual Proletária, a Sexpol, organização ligada ao Partido Comunista. Entusiasmado, assim registrou a amplitude do movimento na capital alemã:

Quando fui para Berlim, discursei em reuniões de massa perto de – não sei – quatro ou cinco vezes por semana. Tive reuniões com duas e três mil pessoas. Havia reuniões em que padres católicos tinham que responder a perguntas sobre problemas de higiene mental, etc. Era extraordinário. Não havia movimento organizado em Viena, mas em Berlim havia cerca de cinquenta mil pessoas na minha organização no primeiro ano (Higgins e Raphael, 1979, p. 82/83).

Numa apreciação global, pode-se dizer que a Sexpol deu continuidade ao trabalho desenvolvido em Viena pela Associação Socialista para o Aconselhamento e a Investigação Sexual, mas também transformou significativamente o seu rumo. Em vez de clínicas de aconselhamento e informação sexual, agora a proposta era politizar a questão sexual e vinculá-la profundamente à revolução comunista (Bedani e Albertini, 2009). Do acervo freudo-marxista de Reich, a produção que alcançou maior projeção foi a obra de psicologia política, já mencionada neste ensaio, Massenpsychologie des Faschismus (Psicologia de massa do Fascismo). Nesta, Reich, de posse da sua articulação entre a psicanálise e o marxismo, procura entender as razões que levaram boa parte do proletariado alemão, contra os seus próprios interesses de classe, a apoiar o nazifascismo. Para o autor, numa leitura divergente da efetuada pelo Partido Comunista Alemão, basicamente voltada para os aspectos econômicos, dava-se pouca relevância aos fatores subjetivos na determinação dos fatos históricos. Enfatizando o papel da cultura e, por consequência, o das mediações promovidas por instituições sociais, mostra, por exemplo, a família autoritária como uma espécie de Estado autoritário em miniatura e uma preparação para a vida neste. Com esse enfoque, em passagens saborosas, sugere como pequenos hábitos do cotidiano podem revelar sonhos e aspirações que permeiam o imaginário de proletários e burgueses (Reich, 1974). Supomos que, basicamente, Roudinesco e Plon (1998, p. 651) se reportavam a esse livro quando afirmaram sobre Reich: “o teórico de uma análise do fascismo que marcou todo o século.” Com a ascensão de Hitler ao poder em 1933, Reich, em perigo dada a sua evidente militância contra o nazifascismo, deixa a Alemanha e dirige-se inicialmente à Dinamarca e, depois, à Suécia. São tempos difíceis, como uma espécie de peça do destino, o autor de uma articulação entre a psicanálise e o marxismo congrega em sua orientação várias diferenças doutrinárias e práticas em relação ao Partido Comunista Alemão e uma participação política em franca oposição à linha assumida pela Sociedade Psicanalítica, pautada pela tentativa de não confronto com o nazifascismo. Como resultado dessas dissonâncias, é expulso das duas organizações, da primeira em 1933 e da segunda em 1934 (Jones, 1979; Wagner, 1996). A partir dessas experiências, Reich vai trilhar um caminho independente, longe da instituição psicanalítica e de qualquer agremiação político-partidária.

Um caminho independente

Após a Alemanha, e depois de sua breve passagem pela Dinamarca e Suécia, Reich consegue estabelecer-se, por cerca de cinco anos, de 1934 até 1939, na Noruega. Em seguida, ainda em 1939, emigra para os Estados Unidos da América, onde permanece até a sua morte em 1957. Nesse amplo período pós-psicanálise, nada muda quanto à sua intensa atividade, senão vejamos: a) na área da psicologia política, publica escritos que ficaram conhecidos como os da Democracia do Trabalho; b) desenvolve uma série de estudos experimentais que resultam na descoberta de uma energia primordial, o Orgone; c) no campo das técnicas terapêuticas, continua produzindo e formula a Vegetoterapia Carátero-Analítica e a Orgonoterapia; d) na esfera da prevenção, organiza um projeto, como sempre, teórico e prático, destinado a proteger o desenvolvimento da criança, o Crianças do Futuro. Obviamente que essa nossa divisão em linhas de trabalho é apenas um recurso didático, na prática essas produções se deram de forma absolutamente entrelaçadas. De acordo com a biografia sobre Reich, Wilhelm Reich: una biografia personal (Wilhelm Reich: uma biografia pessoal), escrita por Ilse Ollendorff De Reich, sua segunda esposa e mulher com quem viveu de 1939 até 1954, Reich, em Oslo, principalmente entre 1935 e 1937, viveu um período de relativa tranquilidade. Segundo os dados colhidos pela autora, com a boa repercussão de Psicologia de massa do fascismo no meio intelectual e artístico, Reich gozava de certa notoriedade como um pensador que combateu, ao mesmo tempo, o nazifascismo e a orientação autoritária e economicista do stalinismo. Nesse clima ameno e receptivo, denotando uma postura próxima e informal, as pessoas o chamavam de Willy, algo muito diferente da forma de tratamento presente nos Estados Unidos, onde Reich manteve-se mais distante e exigia, fora de um restrito círculo íntimo de pessoas, o tratamento de Doutor Reich (De Reich, 1978). Foi nesse contexto afável dos primeiros anos de sua estadia na Noruega que Reich iniciou a elaboração dos textos conhecidos como os da Democracia do Trabalho (Barreto, 2000). Como um conjunto de artigos, essa produção foi publicada na edição de 1946 de Psicologia de massa do fascismo e pode ser caracterizada como uma aplicação, para o âmbito da Psicologia Política, de formulações que, no período, ganhavam relevo na teorização reichiana. Grosso modo, essas noções estavam afinadas com o princípio da autorregulação (Bellini, 1993; Rego, 2005a), espécie de competência espontânea da vida, algo que, em última instância, explicaria a sua permanência e, digamos, sucesso. Em sua assertiva central, essa proposta de organização de pequenas e grandes estruturas sociais entende o trabalho como possibilidade de expressão humana e busca, a partir desta tese, protegê-lo. Assim sendo, o termo “Democracia”, que adjetiva o substantivo “Trabalho”, aponta para a necessidade de autoridades fundadas na competência e não para formas hierárquicas rígidas e pré-estabelecidas de poder (Reich, s. d.). De acordo com a pertinente leitura de Dadoun (1978), tal perspectiva reichiana contém um espírito libertário, algo que lembra uma orientação política de cunho anarquista. Sobre a atividade experimental desenvolvida na Noruega e, depois, nos EUA, cabe inicialmente pontuar que, não respeitando as usuais fronteiras entre os territórios científicos, Reich, munido de conhecimentos, sobretudo, dos campos da biologia e da física, realizou uma série de trabalhos e descobertas ainda pouco considerados pela comunidade científica. Em linhas gerais, essa orientação experimental de pesquisa pôde, inicialmente, ser concretizada no Instituto de Psicologia da Universidade de Oslo, onde, por meio da interferência de ex-alunos candidatos a psicanalistas, Reich teve à sua disposição um laboratório de fisiologia. Neste, efetuou investigações sobre as reações de prazer e angústia geradas por diversos tipos de estímulos utilizados em diferentes regiões do corpo (especialmente, pele, boca, língua e genitais). Fruto dessa linha de estudos, centrada na medida das diferenças de potencial elétrico, postulou a presença de uma energia a que, inicialmente, chamou de bioeletricidade (Reich, 1989). Depois, na sequência dos trabalhos, verificou que a maneira de funcionamento da eletricidade não dava conta de explicar as reações por ele observadas. Sem conseguir interpretar os seus achados experimentais nas formas de energia conhecidas, hipotetizou a existência de uma nova energia, a qual batizou com o nome Orgone e passou a chamar o seu fazer científico de Orgonomia (Reich, 1971; Maluf Junior, 2009). De acordo com Reich, essa descoberta nada mais seria do que a concretização de antigas concepções explicitadas por uma ampla gama de pensadores e cientistas, tais como, por exemplo, Giordano Bruno, com a sua visão de uma alma universal a animar o mundo; Henri Bergson, o filósofo que supôs que a vida seria governada por uma força vital criativa, o élan vital, e o próprio Freud, que chegou a conceber a libido como uma energia biológica, algo que, com o avanço científico, algum dia, poderia ser comprovado. Tal caminho de investigação vai desembocar numa série de atividades ligadas ao uso, sobretudo terapêutico, dessa energia cósmica primordial. Nos Estados Unidos constrói os chamados Acumuladores de Orgone e entabula trabalhos voltados, dentre outros fins, para o auxílio na terapêutica de pacientes acometidos de câncer, usualmente pessoas em estado muito avançado dessa doença (Reich, 2009). Contudo, é importante dizer que essa orientação de investigação e teorização, fundada na suposição da existência de uma energia concreta, real, não é nova no percurso reichiano, ela dá continuidade, agora no domínio experimental, às elaborações da teoria do orgasmo, iniciada por Reich ainda nos primeiros anos da década de 1920. Depois, esse encadeamento de ideias passou pela postulação de uma fórmula de quatro tempos, a chamada fórmula do orgasmo: TC-DR (tensão corporal-carga energética-descarga energética-relaxamento corporal). Em síntese, partindo do estudo da sexualidade e procurando entender o encontro amoroso realizador, Reich teria descoberto um modelo de funcionamento elementar, uma sequência de estados, presente em fenômenos não necessariamente sexuais, como, por exemplo, a divisão celular, na qual, uma célula, dada sua elevada tensão interna, divide-se e, com isso, restabelece seu equilíbrio energético (Albertini, 1997). Foi com esse ângulo de leitura, que prioriza os aspectos energéticos dos eventos, que Reich se dedicou a estudar o câncer, enfermidade marcada, dentre outros aspectos, por uma forma acentuada de divisão celular. Com relação às terapêuticas desenvolvidas por Reich no período, a Vegetoterapia Carátero-Analítica (nome que remete ao funcionamento do sistema nervoso autônomo, ou vegetativo, e, também, mantém o vínculo com a Análise do Caráter) e, depois, a Orgonoterapia, sem entrar na descrição do conteúdo de cada abordagem, e como uma pequena contribuição ao assunto, apontaremos para a uma espécie de infraestrutura conceitual que alicerça essas duas orientações clínicas. A nosso ver, em ambas: a) o corpo é definitivamente convidado a entrar na cena clínica, não só como possibilidade de leitura da forma (a atenção, por exemplo, ao tom de voz ou a maneira típica do analisando se movimentar), já presente na Análise do Caráter, mas como domínio que, dada sua estruturação histórica, pode facilitar ou dificultar a circulação energética; b) não há uma visão dualística da relação corpo-mente, pois, para o autor, na natureza, tudo que se divide foi, numa fase anterior, uma unidade, tal princípio vai embasar a concepção reichiana da unidade funcional soma-psique (Rodrigues, 2008); c) ocupa lugar de destaque a noção de sensação de órgão, entendida como a possibilidade de apreender a dinâmica do outro, seus movimentos emocionais, por meio das próprias sensações corporais, uma espécie de empatia corporal (Reich, 1976a; Rego, 2005b; Wagner 2003, 2009). Cabe observar que as abordagens terapêuticas reichianas, inclusive a Análise do Caráter, têm suas diretrizes, como, por exemplo, a leitura da forma, alicerçadas em uma noção de corpo como algo histórico, construído na cultura, e não como um dado pronto da natureza. Nesse sentido, o nosso corpo contém e revela a nossa história. Com relação a esse prisma, é interessante pontuar que tal concepção está afinada com a expressa pelo antropólogo francês Marcel Mauss, sobretudo no clássico estudo As técnicas corporais, publicado originalmente em 1936 (Mauss, 1974). No final da década de 1940, diminuindo suas ações no campo curativo e ampliando as de meta preventiva, Reich, em 1949, portanto há dez anos vivendo nos Estados Unidos, organiza o Centro Orgonômico de Pesquisa sobre a Infância e, no ano seguinte, cria mais um de seus projetos marcados pela aliança entre teoria e prática, o Crianças do Futuro. Este, na linha de sua constante e crescente preocupação psicoprofilática, orientação que o aproximou da área da educação e, também, do movimento de higiene mental (Albertini, Siqueira, Tomé e Lisboa, 2007; Câmara, 2009; Ramalho, 2001), visava à prevenção do encouraçamento, na linguagem reichiana do período, o processo psicofísico de cronificação de defesas. De acordo com Reich, a exuberância pulsional da criança tende a estimular conteúdos recalcados dos adultos e, com isso, acaba por ameaçar o frágil equilíbrio interno destes, que, se acuados, podem reagir de maneira violenta. Com essa compreensão, Reich aponta para a presença de uma espécie de ódio ao vivo na educação infantil, entendendo educação no sentido de criação, o que inclui, sobretudo, a ação dos pais. Com essa leitura, ganha relevo nas práticas educativas de inspiração reichiana, mais do que o exercício de qualquer técnica, o bom estado emocional do educador (Matthiesen, 2005). Em termos mais globais, segundo o pensamento reichiano do período, o ser humano, por medo de sua natureza interna, encontra-se distanciado de suas raízes primárias, naturais. Separado da natureza que pulsa dentro de si e, como consequência, apartado de seus sistemas biológicos autorregulatórios, tende a agir de forma não racional. Em sua formulação, o projeto Crianças do Futuro comportava ações voltadas para o pré-natal, parto, primeiros anos e desenvolvimento posterior da criança (Reich, 1984b). No que diz respeito à prática realizada e às conclusões chegadas, no artigo Armoring in a newborn infant (Encouraçamento em uma criança recém-nascida), destinado a apresentar, em detalhes, o nascimento e os primeiros meses de uma criança cuidada de acordo com as diretrizes do projeto, há reflexões valiosas. Em suma, na busca pela criança saudável, muitos problemas foram encontrados, desde o contato do bebê com a mãe na amamentação, até ações, consideradas inadequadas, efetuadas pelo pai. Ao final do artigo, Reich, como resultado da prática observada, diminui suas expectativas e pondera que, na esfera da saúde, não se pode pensar em termos absolutos (Reich, 1984a). Sobre os últimos anos da vida de Reich, o leitor interessado pode encontrar exposições detalhadas no trabalho de Sharaf (1984), colaborador de Reich nos EUA e seu principal biógrafo, e De Reich (1978), como já citada aqui, a segunda esposa de Reich. De nossa parte, neste ensaio, cabe registrar que Reich morreu no dia 3 de novembro de 1957, de ataque cardíaco, numa prisão nos EUA, depois de cerca de nove meses de encarceramento. Da complexa rede de fatores sociais e pessoais que contribuíram para o trágico desenlace verificado, o fato jurídico original foi uma investigação conduzida pela Food and Drug Administration, a FDA, órgão dos EUA destinado a controlar a área de medicamentos e alimentos, que, em 1954, resultou na proibição da distribuição dos Acumuladores de Orgone. Vale mencionar, também, que a prisão de Reich ocorreu num clima social avesso a qualquer atividade considerada como antiamericana, ainda sob os ecos do chamado período macartista da história daquele país. Reich, afinal de contas, era um estrangeiro, com um passado de militância comunista, apesar de há muito tê-la abandonado, e com uma linha de atuação no campo da sexualidade que, no mínimo, suscitava certo incômodo. A nosso ver, o absurdo verificado, sua prisão e queima de uma ampla gama de livros e artigos de seu acervo bibliográfico (ver a lista completa em Boadella, 1985, p. 302) certamente estão enraizados nesse contexto inamistoso a ele, e ao que ele fazia.

Inserção no Brasil

Um material obrigatório a respeito da entrada do pensamento reichiano no Brasil é o livro Gestalt-Terapia, Psicodrama e Terapias Neo-Reichianas no Brasil: 25 anos depois, organizado por Selma Ciornai e que contou com a participação de Lilian Meyer Frazão, Sergio Perazzo, Regina Favre e Cecília Maria Bolças Coimbra. Trata-se de uma coletânea de artigos dedicada ao registro, celebração e análise dos passos iniciais que envolveram a introdução no Brasil das três abordagens nomeadas no título da publicação (Ciornai, 1995). De acordo com a proposta que norteia a obra, aproximadamente ao redor de 1970, a Gestalt-Terapia, o Psicodrama e as Terapias Neo-Reichianas compartilhavam, digamos, certo estilo, que se materializava por meio de determinadas posturas. Estas, marcadas pelos ideais da contracultura que permearam aqueles anos, mais particularmente pelo Movimento do Potencial Humano, originado nos EUA, em Esalen, na Califórnia, ainda nos anos 1960, basicamente apontavam para uma: a) visão alternativa à psicanálise; b) ênfase em processos psicoterapêuticos centrados na vivência e na expressão emocional; c) atitude avessa à formalização e à institucionalização. Especificamente quanto ao domínio reichiano, ainda nos anos 1960, um papel de destaque foi ocupado pelo psiquiatra José Ângelo Gaiarsa, que, de forma pioneira, inspirando-se em Reich e Jung, formulou orientações para a área da psicoterapia e efetuou, no campo da cultura, afinado com o espírito da época, um trabalho crítico em relação à moral sexual repressiva (Favre, 1995). Neste registro histórico, cabe, ainda, mencionar nomes como os de Roberto Freire, Ralph Viana, Romeu Costa e Pethö Sandor, além do italiano Federico Navarro, importantes autores que contribuíram para a inserção das ideias reichianas no Brasil e, também, para a formação de profissionais, de alguma forma, vinculados ao universo reichiano. Num texto da coletânea em tela, Coimbra (1995), alicerçada em seu estudo de doutorado (Coimbra, 1992), tece considerações a respeito de um tema crucial, que sintetizaremos com as seguintes palavras: até que ponto essas abordagens do campo da psicologia, que chegaram ao Brasil com uma aura de transformação social, teriam perdido esse impulso original e se adaptado ao mercado do consumo das tecnologias do bem-estar? Especificamente no que diz respeito a Reich, tal indagação espelha uma preocupação social que acompanha e, de certa forma, ajuda a constituir o próprio enfoque desenvolvido por esse cidadão-cientista. A nosso ver, existe uma tradição que perpassa o território reichiano, uma espécie de ideal de ego, que não se satisfaz plenamente com o trabalho de índole curativa e cobra ações com uma amplitude social de natureza preventiva, algo que Reich empenhou-se profundamente em procurar fazer. Assim sendo, pensando numa continuidade dessa orientação, uma questão decorrente se impõe: no presente contexto da chamada pós-modernidade, quais as linhas de atuação que poderiam significar a permanência desse espírito reichiano? Sem condições de, neste ensaio, esboçar qualquer exercício de resposta, fica o registro da questão (ver Almeida, 2007, 2008). Outro ponto que merece análise diz respeito à relação global do pensamento reichiano com a chamada contracultura. Se, a abordagem desse autor carrega teses libertárias, sobretudo no campo da sexualidade, desenvolvidas desde os anos 1930, que claramente ajudaram a compor o movimento contestatório dos anos 1960 e 1970, cabe também indagar o quanto esse movimento não acabou, digamos, engolindo e re-significando o próprio enfoque reichiano. A nosso ver, esse é um tema relevante, pois, no contexto da contracultura, um determinado Reich foi propagado, porém outros aspectos de sua obra, igualmente importantes, mas não sintonizados com o clima social dominante, permaneceram na sombra. Assim, por exemplo, orientações voltadas para os riscos que uma imediata liberação dos costumes poderia gerar, dada a prevalência de estruturas humanas moldadas num contexto social repressivo (Reich, 1976a, 1976b, 1981), pouco foram enfatizadas. Quanto à presença do referencial reichiano no meio acadêmico brasileiro, focalizando especificamente estudos de mestrado e de doutorado, o importante trabalho de Matthiesen (2007) contém dados relevantes. De acordo com o levantamento efetuado pela autora, até setembro de 2005, 58 investigações, em algum grau voltadas para o pensamento reichiano, foram realizadas. Destas, apenas quatro foram concluídas durante as décadas de 1970 e 1980, sendo as demais 54 finalizadas a partir de 1990. Desse levantamento, também merece atenção o número de 24 doutorados defendidos de 2000 até setembro de 2005. Ou seja, de posse desses dados conclui-se que, a partir de 1990, ocorreu um progressivo aumento no número de mestrados e doutorados, de alguma forma, dedicados ao estudo da abordagem reichiana. Tal presença na academia, podemos dizer, revela uma mudança de rumo em relação à inserção das ideias de Reich no Brasil. De uma introdução embalada pelo clima anárquico e contestador da contracultura, mais voltado para a prática de vivências emocionais do que para a formalização conceitual, caminhou-se, progressivamente, para uma preocupação com a sistematização e a problematização do pensamento reichiano. A respeito do conteúdo presente nessa produção acadêmica brasileira, com o auxílio do estudo de Matthiesen (2007), aliado ao que conhecemos do campo, notamos que, além das investigações dedicadas aos ramos tradicionais desenvolvidos por Reich (sobretudo, Psicologia Política, Saúde e Educação), observamos, também, a existência de trabalhos voltados para a discussão da relação do enfoque reichiano com o de outros pensadores (tais como, Freud, Foucault, Deleuze e Guattari, Jung, Piaget, Bergson, Nietzsche, Rousseau e Espinosa). A nosso ver, essa discussão com outros autores promove, dentre outros benefícios, um saudável diálogo entre diferentes. Estamos chegando ao final desta jornada. Procuramos acompanhar a trajetória de um pensador incomum, alguém que se envolveu com alguns dos principais movimentos científicos e políticos da cena social do século XX. Nesse percurso, produziu muito, brigou muito, viveu muito. Entendemos sua obra, a enorme massa de questões e propostas que aqui e ali foi plantando, não como um edifício acabado, mas como um processo inquieto e constante de elaboração que, dada sua fertilidade, pede avaliação e continuidade.

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Fonte: Boletim de psicologia

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