Por Thamy Ayouch
Resumo: A transexualidade, na sua forma ocidental contemporânea, é uma categoria oriunda do encontro entre os poderes médico e jurídico. Desses dois discursos, a perspectiva psicanalítica se separa por definição: a sua vocação não é retomar o saber psiquiátrico. Todavia, numerosos discursos em nome da psicanálise tentam ver, em Freud já, os fundamentos da classificação de uma patologia transexual. Esse esquecimento da sua historicidade e a essencialização patologizadora da categoria transexualidade torna a psicanálise antipsicanalítica. O autor tenta situar a filiação psiquiátrica de várias teorias psicanalíticas da transexualidade, expor elementos de algumas delas, para ver se e como seria possível pensar uma psicanálise da pós- -transexualidade.
Palavras-chave: transexualidade; transidentidades; gênero; sexuação; psicanálise; multiplicidade.
As variações transidentitárias não são um fenômeno novo: atravessam a mitologia greco-romana e várias culturas, dos Bardaches ameríndios aos Muxés mexicanos, passando pelos Kathoys tailandeses, os Hijras hindus, os Mahus da Polinésia ou os Fa’afafine de Samoa.
A transexualidade – anteriormente transexualismo –, porém, na sua forma ocidental contemporânea, é uma categoria nova, oriunda do encontro entre o discurso médico e o jurídico. Desses dois discursos, a perspectiva psicanalítica se separa por definição: sua vocação não é retomar o saber psiquiátrico. Todavia, numerosos discursos em nome da psicanálise tentam ver, já em Freud, os fundamentos da classificação de uma patologia transexual. Estes se desenvolvem em duas direções: um freudismo norte-americano medicalizado e um lacanismo indignado denunciando os desregramentos da medicina e a queda do Simbólico.
Aqui, talvez mais do que em qualquer outro discurso, a psicanálise não escapa às formações discursivas de sua época: se inscreve na linhagem direta da psiquiatria. Porém, esse esquecimento de sua historicização não acaba implicando um abandono da própria dimensão psicanalítica? Desde Freud, o pensamento psicanalítico se empenha em estudar o encontro das lógicas do conhecimento e do desejo e em apontar a fetichização e a dogmatização que podem ameaçar toda teoria. A ruptura epistemológica do discurso analítico consiste em apontar o desafio e os limites de todo processo cognitivo inscrito numa visão positiva do saber e sua infiltração por motivações outras que do saber (destinos pulsionais, no plano subjetivo, e dispositivos de poderes, no plano coletivo).
Sustento que quando a psicanálise considera a transexualidade como uma categoria que existe ontologicamente, em si, ela se torna antipsicanalítica, produzindo uma resistência a si mesma e ao seu exterior. Tentarei situar a filiação psiquiátrica de várias teorias psicanalíticas da transexualidade, expor elementos de algumas delas, a fim de verificar se e como seria possível pensar uma psicanálise da pós-transexualidade.
Uma invenção médica
Só se pode entender a transexualidade moderna referindo-se à dupla médico/paciente. A invenção da homossexualidade e a da transexualidade são contemporâneas: as duas ficaram vinculadas à noção psiquiátrica de sexo, que agrega uma sexuação (identificação de gênero) e uma sexualidade (orientação do desejo). A medicina do século XIX designa atributos naturais biológicos irredutíveis do masculino e do feminino, e disposições sexuais naturais de atração dos contrários, num dimorfismo essencializado. Transexualidade e homossexualidade procedem assim de uma inversão sexual, termo introduzido em 1897 por Havelock Ellis, para remeter à alma ou sensibilidade feminina dos homens. Se a inversão sexual implica a existência de uma sexualidade não invertida, é, por conseguinte, a homossexualidade que definiu e instituiu a heterossexualidade. Do mesmo modo, a noção de transexualidade, para ser consistente, faz surgir a norma cisidentitária1 de corpos cujo gênero é definido fixamente por uma conformação genital.
O termo transexualismo foi usado pela primeira vez por Magnus Hirschfeld em 1910, mas o “fenômeno transexual”, segundo a expressão do sexólogo Harry Benjamin, nasce em 1951, com a operação midiatizada de Christine Jorgensen. Para os médicos, a transexualidade é referida a uma experiência de corpo errado: operação de transgenitalização é apresentada como uma correção de anomalias da natureza.
A transexualidade procede então de um diagnóstico, e o seu reconhecimento no triplo plano social, médico e jurídico se acompanha de uma patologização. Para ser identificado(a) como transexual, e ter acesso aos protocolos de redesignação de sexo, tanto no Brasil quanto na França, um diagnóstico de patologia mental há que ser emitido por uma equipe oficial de psiquiatras, psicólogos e endocrinologistas. Na França, a mudança jurídica do gênero no estatuto civil implica que seja previamente efetuada uma esterilização do sujeito, a ser verificada por experts médicos. Assim, a transexualidade surge na intersecção de uma juridificação da medicina e uma medicalização do jurídico: é um dos efeitos patentes e contemporâneos do poder disciplinar de normalização.
Na França, a SOFECT (Société Française d’Etude et de Prise en Charge du Transsexualisme), equipe oficial de psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas e cirurgiões, seleciona os candidatos ao programa de transexualização, segundo um protocolo codificado e demorado, destinado a diagnosticar uma transexualidade primária. Esse protocolo comporta:
- um teste de vida real: a necessidade de viver no gênero de destino durante um ano, na ausência de qualquer tratamento hormonal ou de qualquer cirurgia estética (depilação, cirurgia facial etc.). Em numerosos casos, isso acaba vulnerabilizando ainda mais as pessoas trans;
- equipes de médicos impostas, que não podem ser escolhidas pelos pacientes;
- um período mínimo de dois anos para emitir o diagnóstico de transexualismo, necessário para a eligibilidade à fase hormonocirúrgica;
- a necessidade de suspender toda hormonoterapia iniciada previamente;
- uma psicoterapia compulsória de dois anos, antes do acesso ao protocolo médico de hormonocirurgia.
Somente as pessoas aceitas nos protocolos oficiais podem se beneficiar de procedimentos simplificados e acelerados para a mudança de sexo no estatuto civil.
Cabe ressaltar aqui que a impossibilidade de um exame clínico objetivo definindo uma “verdadeira transexualidade” inscreve esse diagnóstico nas convenções sociais hegemônicas de gênero. A(o) verdadeira(o) transexual remete ao verdadeiro homem ou à verdadeira mulher, e ele(ela) deve convencer nessa performance de gênero, e se distinguir, diagnosticamente, dos homossexuais, travestis, transvestistas e fetichistas.
As normas de protocolização do acompanhamento das pessoas trans são divididas entre sexólogos (que se remetem ao State of Care – SOC – protocolo oriundo da Associação Harry Benjamin) e psiquiatras, que seguem o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Diseases). O discurso psiquiátrico que pretende apresentar uma verdade sobre a transexualidade e proceder da épistémè é nada mais nada menos do que mais uma opinião entre outras sobre esse fenômeno medicamente fabricado, e procede da doxa. Surpreendentemente, a maioria dos discursos psicanalíticos sobre transexualidade retoma essa doxa.
As teorizações psicanalíticas
A leitura da abundante literatura psicanalítica sobre transexualismo revela uma indigência deplorável na criatividade teórica e uma preocupante
surdez clínica. Duas vertentes se destacam:
• uma corrente stolleriana-freudiana, que define as etapas de acesso à redesignação de gênero em função de garantias de restauração da conformidade de gênero;
• uma vertente lacaniana, que denuncia a redesignação de sexo como uma resposta louca a uma demanda louca.
Robert J. Stoller4 instaura a linha freudiana de teorização do transexualismo. A identidade de gênero se fundamentaria, segundo ele, sobre a convicção de ser masculino ou feminino, cuja congruência com a anatomia estabelece uma diferença entre a normalidade e o transexualismo. A precocidade dessa convicção separa os transexuais primários e os secundários, que manifestam tardiamente esse desejo e não renunciam ao prazer dos seus órgãos genitais. Se para Stoller o transexualismo não é um delírio (delusion) mas uma ilusão (illusion), ele não fica menos patologizado.
Essa vertente é prolongada na França por Colette Chiland, que considera a transexualidade como doença do narcisismo própria a sujeitos estado-limite, para os quais toda elaboração é em curto-circuito, evacuada no ato e no corpo. Segundo essa autora, eles não conseguem chegar a uma elaboração psíquica e se opõem a toda exploração psíquica por amnésia infantil, clivagem e recusa. Chiland se agarra à evidencia biológica, por ela inquestionável, da diferença entre os sexos:
Tive que segurar firmemente a “bússola do sexo” desde que trabalho na área do transexualismo. A bússola do sexo quer dizer que existem machos e fêmeas, e que a diferença entre os sexos não pode nem deve ser refutada.
Quando se sai desse naturalismo que essencializa, como fazem vários lacanianos, se remete, porém, a uma primazia des-historicizada do Simbólico e da Lei, que inscreve os transexuais, transgressores dessa Lei simbólica, do lado da psicose. Aqui, qualquer transgenitalização é recusada, e a transexualidade é concebida na lógica estrutural da psicose ou da perversão. Como exposto por vários autores7 , se parte aqui da leitura freudiana do Caso Schreber, salientando a relação entre psicose, homossexualidade e feminilização do sujeito masculino.
Essa abordagem se origina em Lacan, que, ao considerar o transexualismo, remete a uma diferença entre os sexos garantida pela relação simbólica com o falo. Descarta a concepção biologizadora de Stoller para destacar a diferença entre os sexos como simbólica, relacional, e mediada pelo falo, constitutivo, com o gozo, das fórmulas lacanianas da sexuação. Consequentemente, a demanda de mudança de sexo revelaria um erro comum: confundir o órgão (o pênis) e o significante (o falo)10, e recorrer, no Real, à cirurgia. Sendo um psicótico, o transexualista deve ser dissuadido do seu delírio, como mostra Lacan em entrevistas com pacientes trans. A preocupante violência desses encontros perpetua a postura de “intensificação da realidade” própria, segundo Foucault12, à vitória do psiquiatra sobre a loucura no manicômio.
Vários lacanianos seguem essa abordagem: Moustafah Safouan inscreve o transexualismo numa identificação simbiótica da criança com a mãe, por “forclusão do Nome-do-Pai”. Reproduzindo a mesma análise, Joël Dor considera que o transexual fica na fronteira entre psicose e perversão e somente acede a uma castração real, cirúrgica, que lhe interdita uma identidade sexual, por falta de integração do estatuto simbólico da diferença dos sexos. Para Marcel Czermak, o transexual revelaria a patologia da identidade sexual própria a toda organização psicótica, pois confunde o órgão com o significante. Essa mesma leitura é reiterada por Henri Frignet16. O autor diferencia transexuais verdadeiros, cuja identidade sexual estaria foracluída, de transexualistas, que se manteriam num impasse quanto à sexuação, embora sua identidade sexual seja assegurada. Ao não reconhecer o “Nome-do-Pai”, o transexual não pode ter acesso à diferença. Esta irá retornar no real sob a forma de reivindicação de ser do outro sexo com a demanda de redesignação anatômica (no Imaginário e no Real) e a demanda de modificação do estado civil (no Simbólico).
Esse breve percurso através de teorizações psicanalíticas da transexualidade deixa claro que essas perspectivas retomam a patologização psiquiátrica, e partem da mesma normatividade dimorfista e heterocentrada. Porém, o que fica mais surpreendente é a estranha crispação, beirando a hostilidade, e repetindo incansavelmente o mesmo interdito de pensar. O receio desses teóricos remete à Unheimlichkeit provocada por uma mistura de inquietude, medo, fascinação e familiaridade suscitada em cada um(a) de nós por um motivo transidentitário. Pois somos todas e todos afetadas(os) por essa questão, e deixar não analisada a contratransferência produz os vínculos terapêuticos os mais mortíferos.
Como pensar, fora desses padrões normativos, uma psicanálise da pós-transexualidade, atenta à multiplicidade, à diversidade e à subversão que pode ser característica do gênero?
As prescrições de gênero Uma psicanálise da pós-transexualidade precisa se desfazer da própria noção de transexualidade, inventada pela psiquiatria, e lastrada pela primazia, supostamente a-histórica, de uma diferença binária dos sexos. Cabe recordar que essa diferença, antes de ser qualquer evidência natural, é uma produção do sistema sexo/gênero, que constrói duas categorias como biológica e ontologicamente anteriores ao espaço discursivo e cultural que as produz. Porém, como aponta Judith Butler17, não existe nenhuma natureza ontológica, não há nenhuma diferença anatômica entre os sexos, que não seja sempre já incluída numa instituição cultural do gênero, construída socialmente e definida historicamente. O gênero precede, fabrica e define os sexos de um modo performativo: ser mulher ou ser homem consiste em retomar gestos, atos, discursos, desejos, atitudes, e repeti-los, criando assim, pela reiteração, a ilusão de um modelo anterior à repetição. Essa performatividade do gênero não é, porém, uma escolha deliberada: é uma interpelação social, uma atribuição normativa, uma prescrição coletiva.
Uma psicanálise aberta às transidentidades precisa então ser tanto subjetiva quanto social: ela almejaria situar o sujeito no enquadre social, histórico e político no qual ele se inscreve, e abordar o inconsciente a partir do sistema sexo/ gênero. Essa psicanálise visaria analisar o funcionamento das prescrições de gênero na subjetivação, nas relações do sujeito com os outros, mas também na sua própria perspectiva, como teoria que não escapa às formações discursivas dentro das quais ela surge.
Algumas abordagens psicanalíticas procuram pensar essa designação coletiva do gênero. Em Sexual. La sexualité élargie au sens freudien, Laplanche coloca em perspectiva três termos- -chaves – gênero, sexo e sexual:
O gênero é plural. Pode ser duplo, como masculino-feminino, mas não o é por natureza. Muitas vezes é plural, como na história das línguas e na evolução social.
O sexo é dual. Tanto pela reprodução sexuada como por sua simbolização humana, que fixa essa dualidade de maneira estereotipada em: presença/ausência, fálico/castrado.
O sexual é múltiplo, polimorfo. Descoberta fundamental de Freud que encontra seu fundamento no recalcamento, no inconsciente, no fantasma. É o objeto da psicanálise.
Proposição: O sexual é o resíduo inconsciente do recalcamento-simbolização do gênero pelo sexo.
Gênero, sexo e sexual são associados com a sedução originária, indução do sexual-infantil na criança pelo adulto encarregado de lhe propiciar cuidados, marcados pelos afetos conscientes e inconscientes do(a) cuidador(a). O adulto atribui um gênero à criança (“você é uma menina/ um menino”), e a bombardeia de mensagens prescritivas. Essas mensagens, porém, são ambíguas, pois carregam também os seus conteúdos inconscientes. O infante precisa simbolizar esses enigmas, e procura traduzir essas mensagens plurais pelo sexo dual. Essa tradução-simbolização, na maioria dos casos, visa recalcar toda subjetivação plural e diversificada do gênero, mas ela produz um resto da tradução, que é constitutivo do inconsciente.
Além da binariedade
Para poder apreender essa multiplicidade de gênero constitutiva do inconsciente, uma psicanálise das transidentidades precisa então historicizar a diferença entre os sexos. Lembremos que o gênero não é só uma relação histórica de dominação das mulheres pelos homens: ele é também uma ordem normativa que erige uma fronteira entre duas categorias de sexo, e perpetra uma opressão precisamente por essa dualização. Contudo, essa dualização é na verdade historicamente situada. Como indica Thomas Laqueur, foi só no século XVIII que começou a aparecer o modelo do dimorfismo que coloca a ênfase sobre as diferenças anatômicas, opõe radicalmente os corpos feminino e masculino e faz proceder a sexualidade e as sexuações da biologia dos corpos.
Se existem obviamente dados biológicos incontestáveis, materialidades e corpos, esses dados, no entanto, não são suficientes em si para determinar o sexo ou concluir a fortiori que há dois sexos opostos. Os elementos biológicos são múltiplos: sua organização ao redor de um único marcador do sexo é um ato social, retomado pelo imaginário de todo sujeito. Uma psicanálise da pós-transexualidade deve então analisar o processo defensivo de unificação operado em toda consideração de sexo e a sua dimensão fantasmática imaginária.
Mas essa psicanálise deve também fazer a arqueologia da binariedade de sexos no seu próprio discurso. Isso implica contestar o seu próprio uso da categoria de diferença entre sexos. Observemos que essa diferença definida com respeito ao ter/não ter pênis provém de uma visibilidade: ou seja, de um primeiro momento de captação imaginária. A percepção do corpo próprio ou alheio se inscreve sempre sobre uma estruturação da fantasia, uma simbolização do desejo. A diferença entre os sexos definida de forma binária (ter/não ter) procede dessa captação imaginária. Ela provém da teoria sexual infantil do menino da Viena do século XIX que introduz a alternativa de ter/não ter. Várias vezes, quando essa teoria sexual infantil do menino é tomada literalmente, ela acaba ecoando na teoria sexual infantil do(a) psicanalista teorizador(a).
Lembremos que, na obra freudiana, as separações entre masculino e feminino não se deixam reduzir a uma diferença de sexos binária20, mas remetem muitas vezes a uma sobreposição, um entrelaçamento dentro do mesmo sexo. Pensar a transidentidade é assim prolongar essa sobreposição, estender essa brecha na binariedade que uma maioria de psicanalistas se apressou em fechar.
É preciso, consequentemente, que a psicanálise da pós-transexualidade acolha a possibilidade transgênero que não vincula a sexuação ao aparelho genital. Caberia, para fazer isso, retomar a crítica foucaultiana da categoria de “sexo-desejo”. O “sexo-desejo” apresenta o sexo (aparelho genital) como a causa principal do desejo e o desejo como a consequência do sexo, num trajeto normativo que vai da sexuação de homens-pênis e mulheres-vaginas a uma sexualidade, a da heterossexualidade compulsória. Na noção médica de transexualidade, a inteligibilidade do corpo transexual é reduzida ao seu órgão genital e às suas atrações sexuais. Torna-se mulher adquirindo uma neovagina e sendo atraída por homens, como atestam, a contrario, várias mulheres trans excluídas dos protocolos oficiais por terem revelado seu desejo por outras mulheres. Para os médicos e a primeira geração trans, existem apenas dois sexos e mudar de sexo equivale a mudar de órgãos genitais, considerados como os marcadores indiscutíveis da pertença à classe das mulheres ou dos homens. No entanto, para muitas pessoas trans, mudar de aparelho genital não faz necessariamente sentido, já que os dois sexos são contestados na sua naturalidade e unicidade.
Desfazer a binariedade dos sexos significa também acabar com a ideia bem problemática de que a sexualidade é escolha do mesmo ou do outro sexo. Isso implicaria, pela psicanálise, repensar um desejo trans, em que a sexualidade não está vinculada à estabilidade ou à existência dos sexos. Uma pessoa transgênero pode ser atraída por homens, mulheres, ou the rest of us22, sem que seja possível dizer que é atraída pelo seu sexo ou por outro. A multiplicidade das combinações e a impossibilidade de um ponto de vista classificatório objetivo abrem assim a possibilidade de uma política subversiva das minorias sexuais e de uma renovação do pensamento psicanalítico da pulsão polimorfa.
Identidade vs identificações
O paradigma das transidentidades implica discutir a própria categoria de identidade na fórmula identidade de gênero. Em psicanálise, tanto como nos Gender and Queer Studies, a identidade sexual e sexuada nunca é definitiva, ela resulta de um processo e das relações do sujeito com o outro.
Para nos unificarmos narcisicamente, precisamos repetir no quotidiano a certeza de nossa pertença a um gênero: é uma postura identitária defensiva, imaginária, que fomenta, em pessoas tanto cis quanto trans, a ilusão de uma essência masculina ou feminina. As formações do inconsciente, porém, quebram a fantasia de uma mesmice ou ipseidade de si. Contra a identidade, a abordagem psicanalítica visa inscrever a plasticidade psíquica em movimentos identificatórios provisórios. A identificação é sempre inacabada, situada na história subjetiva e coletiva, e prescrita pelo outro. O sujeito se forma e se transforma sendo identificado pelos outros: apropriando-se, em momentos da sua evolução, de elementos, atributos, rasgos distintivos dos seres do seu entorno.
Uma psicanálise da pós-transexualidade precisa, portanto, questionar as categorias identitárias do próprio pensamento psicanalítico. Quando se fecha à evolução da clínica e da história, a teorização passa a ser um processo autoerótico do núcleo pulsional do(a) teorizador(a). O que permite evitar esse narcisismo seria então uma intersubjetividade da teoria, garantida pela transferência, pela abertura da teoria às mudanças sociais, e pela frequentação de outras disciplinas e teorias (sem as quais a psicanálise passaria a ser um discurso autístico).
Repensar os protocolos
No plano clínico, uma psicanálise aberta às transidentidades há de se despsiquiatrizar, começando por despatologizar as questões transidentitárias.
Cabe ver que a categoria de transexualidade proposta pela medicina não corresponde mais, tanto qualitativa quanto quantitativamente, às demandas das pessoas trans. Como aponta Arnaud Alessandrin, as três frentes convocadas pelos programas de transexualização (psiquiatria, cirurgia e direto) estão sendo desbordadas hoje em dia. Os corpos trans inovam e inventam novas organizações das relações entre normas e transgressões. Comparam ofertas locais e internacionais, viram experts do fato transidentitário, que é irredutível ao binarismo transexual.
Hoje, o único fato que mantém os protocolos de transição oficiais vigentes parece ser o seu monopólio no território (francês ou brasileiro). Portanto, trata-se de questionar o alvo terapêutico desses protocolos. A sua posição consiste em salientar um objetivo de cura, que Karine Espineira chama de “escudo terapêutico”. Porém, vale perguntar quem cura aqui, em que contexto, com que meios e, sobretudo, de quê. Cabe perguntar quem o escudo terapêutico protege verdadeiramente: as pessoas trans ou a ordem social? Essa questão é central na teoria analítica, mas sobretudo na prática: trata-se de saber se o trabalho do(a) psicanalista (tanto clínico(a) quanto teórico(a)) é destinado a acompanhar o(a) analisando(a) ou a manter a ordem social.
Para evitar uma psicanálise cuja função seria policiar as sexualidades e as sexuações, é fundamental sair da patologização própria aos protocolos oficiais. Uma psicanálise da pós- -transexualidade deveria apreender os percursos plurais trans como diversas possibilidades de identificação de gênero, que resultam de uma sucessão de escolhas mais ou menos livres procedendo de singularidades individuais e de encontros sociais, médicos, associativos etc.
Sofrimento e terapia
Para desvincular a abordagem psicanalítica do escudo terapêutico, é preciso analisar a categoria de sofrimento com base na psiquiatrização. Como escreve Judith Butler, dizer para um sujeito que a sua vida é uma vida de sofrimento é, em si, patologizante, e é essa patologização que produz sofrimento. Não se pode abordar psicanaliticamente as transidentidades postulando, como faz Colette Chiland26, que toda pessoa trans sofre. Isso não quer dizer que as transidentidades sejam isentas de dificuldades e adversidades. Porém, não se trata de um sofrimento de gênero dado de antemão que necessitaria respostas médicas, mas é, ao revés, a acumulação de adversidades sociais, familiares, médicas e jurídicas que provoca uma vulnerabilidade.
Diante dessa vulnerabilidade, fora de qualquer terapia compulsória, a psicanálise pode ser uma forma de acompanhar um sujeito nas suas interrogações, se for desejado e pedido pelo próprio sujeito, e não para necessariamente abordar o motivo transidentitário. A atitude clínica psicanalítica corresponde à escuta de um sujeito por outro, destinada a ajudá-lo a se subjetivar, se desalienar, e se situar no próprio desejo: ela visa oferecer um acompanhamento para o sujeito pensar seu percurso individual além do determinismo das repetições subjetivas e das prescrições sociais. Para respeitar a hipersingularidade não generalizável de todo sujeito, é preciso sair de qualquer modelo etiológico ou nosográfico da “transexualidade”, que atrapalha e impossibilita a abordagem analítica.
Expertise dos sujeitos
Os sujeitos transidentitários vêm questionar o ponto cego das teorias psiquiátricas ou psicanalíticas binárias, e não podem ser apreendidos por categorias psi preexistentes. É preciso então um reposicionamento metodológico, que vise colocar as pessoas trans em posição de expertise em suas vivências, e fazê-las participar diretamente da reconfiguração da teoria pela qual são pensadas.
Para isso, é imprescindível, antes de mais nada, desconstruir com pacientes trans os efeitos iatrogênicos (isto é, produzidos pelo próprio dispositivo médico), deletérios e tóxicos de acompanhamentos psiquiátricos oficiais da transexualidade. Cabe abordar os sintomas da suposta psicopatologia dos sujeitos transexuais, descritos como síndromes de perseguição, desconfiança, agressividade, agitação, depressão, quanto sintomas induzidos pelas próprias teorias e práticas inadequadas. Trata-se também de levar em conta, além da hipocrisia profissional, a violenta contratransferência provocada em vários médicos, psiquiatras, psicanalistas, pelas questões trans.
É necessário colocar em relevo as situações paradoxais e o verdadeiro esforço para tornar o outro louco produzido pelos dispositivos clínicos e teóricos dos protocolos oficiais. Para aceder a um protocolo de redesignação de gênero, as pessoas trans são submetidas a uma terapia compulsória de dois anos, na qual se busca ao mesmo tempo verificar a constância da sua demanda e dissuadi- -las dessa demanda. Se desistem, provam ser “falsos transexuais”, se se mantêm firmes, podem ser acusadas de “rigidez paranoide”.
Trata-se também de pensar, junto com as pessoas trans, essas estranhas “doenças mentais” chamadas transtorno de identidade de gênero ou disforia de gênero, diagnosticáveis só na ausência de qualquer doença associada ou comorbidade (autismo, Asperger, estado-limite, ansiedade, ou depressão). A doença é assim identificada pela ausência de qualquer outro transtorno: para ser reconhecido(a) como doente (transexual), um sujeito tem que ser não doente. As equipes oficiais se encarniçam em curar a todo custo uma experiência transidentitária patologizada, e negligenciam os transtornos provocados pelas suas próprias discriminações.
Conclusão
A confiscação médica do saber sobre as questões transidentitárias é contrabalançada pelos saberes locais, minoritários, deslocalizados, das experiências transidentitárias. A escuta psicanalítica deve ouvir essas deslocalizações e a hipersingularidade de cada construção transidentitária, além de qualquer paradigma unitário.
Isso implica várias reorganizações para a psicanálise, pelas quais se trate de:
• se des-solidarizar das avaliações psiquiátricas
da transexualidade e denunciar o maltrato institucional, teórico e clínico das pessoas trans;
• analisar a contratransferência clínica, teórica,
e a “melancolia de gênero”27 no centro dela;
• repensar a diferença de sexos além do binarismo e a partir da multiplicidade;
• renunciar a todo modelo etiológico que pretenda ser generalizável.
Uma ruptura epistemológica surge quando o sistema que servia para abordar o mundo aparece adaptado apenas a uma parte desse mundo. As transidentidades introduzem uma verdadeira ruptura epistemológica: elas revelam que as identificações de gênero definidas em função do aparelho genital designado são um caso particular dentro de uma multiplicidade possível de identificações. Do mesmo modo, a psicanálise da pós-transexualidade deve perpetuar essa ruptura epistemológica em que a binariedade sexual é revelada como um caso particular dentro da multiplicidade das sexuações.
Seria assim uma psicanálise em movimento, desvinculada da identidade consigo mesma, desejosa de se renovar com as transformações clínicas. Ela retomaria a seguinte injunção de Foucault: “não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”28. Que nos deixe livres também quando se trata de pensar e de acompanhar clinicamente.
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Fonte: Eu sou Atlântica (Alex Ratts org.)
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