por Ailton Krenak
Este texto é uma transcrição adaptada da fala proferida por Krenak durante a 7ª edição do seminário Conexões: Deleuze e Cosmopolíticas e Ecologias Radicais e Nova Terra e… e faz parte da publicação do evento organizada por Susana Oliveira Dias, Sebastian Wiedemann e Antonio Carlos Rodrigues
Boa tarde. Estou honradíssimo, feliz, achando um maior barato estar aqui com a Déborah [Danowski] e o Almires [Martins] e falando com vocês. Eu não sei aqui se todo mundo entende este português que eu falo, parece que estamos em uma situação em que recebemos visitantes de outras falas e outras línguas.
Bom, boa tarde, sejam bem-vindos. Eu tenho uma conexão, digamos assim, que se for com Deleuze, é via Déborah, via os meus amigos que ficam me contagiando com as ideias dele quando a gente se encontra. Eles passam isso para mim, assim como a gente passa umas coceiras para eles quando eles ficam andando no mato atrás da gente. Digamos que são novas afetações de ângulos que a gente vai arrumando e criando essas conexões. Gostei muito das referências ao cinema [feitas pela Déborah], porque a minha formação, até muito pouco tempo atrás, era de pouca leitura e de muita experiência.
A minha formação foi muito cedo a formação de tentar fazer um outro mundo, mas um outro mundo nos termos do que era pensar o século XX como um lugar onde era possível a velha ideia da revolução. Não a revolução como uma poética, mas a revolução como uma intervenção real no mundo possível, uma intervenção real num mundo possível feito por gente, de gente que precisava sangrar para fazer essas mudanças. E eu fiz, digamos assim, meu batismo nessa viagem de mudar o mundo. Talvez tenha sido também a minha primeira observação sobre mundos, porque eu estava em algum mundo, habitando algum mundo, quando fui incomodado a ponto de querer mudar aquele mundo que eu estava experimentando. Era um mundo onde o que mais me afetava é isso que listamos hoje como as tais das injustiças sociais. Era pobreza, miséria, segregação, assaltos, que sofríamos em nossas vidas no cotidiano, o impedimento de maneiras de estar no mundo que acreditávamos serem importantes para a nossa experiência se efetivar, maneiras que eram censuradas de estar no mundo.
A minha referência de mundo onde a ideia de trabalho, a ideia de todas essas normas que as instituições do Ocidente foram imprimindo, ao ponto de fazer um circuito amplo em torno da Terra inteira, configurando isso que chegamos no fim do século XX a chamar de humanidade… Essa ideia de humanidade, essa ficção incrível, que é maravilhosa essa coisa do cinema e essa coisa do real para o Ocidente é como misturar ficção e essa experiência de vida e a ficção elas ficam no mesmo ponto daquele papo do marciano com o terráqueo, perguntando quem já existiu e quem é só uma imagem do passado. Muitas vezes eu e a minha família, meu grupo de referência para existir, fomos identificados como a imagem do passado, nós já éramos. Então, essa experiência de viver no seu espírito, no seu sentido de estar no mundo em que você “já era”, é uma experiência radical no sentido de entender o que são guerras de mundo.
Guerras de mundos não são só narrativas que se confrontam ou narrativas que se alternam, mas são, na realidade, um tranco brutal onde a subjetividade e a própria experiência da vida, de estar vivo, da possibilidade de reprodução da cultura, das formas de vida, são eliminadas nesses processos de guerras de mundos. As guerras de mundos causam tanto drama e elas eliminam tantas outras possibilidades quanto as guerras que antecederam essa ficção que mostrava os terráqueos passando por um lugar para ir para Marte, ou qualquer outra possibilidade de mundo, buscando outros mundos. Eu fiquei pensando como foram terríveis as duas guerras do século XX, mas principalmente a Segunda Guerra Mundial, que foi quando se deu essa coisa da industrialização e esse convencimento do Ocidente de que eles tinham conseguido finalmente alcançar o máximo de virulência, a máxima capacidade de destruição do planeta e da humanidade, com um cálculo muito oportunista de que era possível só acabar com a humanidade mas deixar essa materialidade do planeta Terra existindo por algum tipo de aproveitamento futuro. É como se nós pudéssemos, a partir da Segunda Guerra Mundial, excluir essa tal de humanidade e pensar, em outros termos, o que nós iriamos fazer com o que nós achamos que é esta Terra, o que o pensamento ocidental cristalizou até o século XX sobre esta Terra que nós vivemos nela como coisa.
Incrível como o pensamento ocidental conseguiu transformar a Terra em uma matéria-prima, um recurso natural disponível, uma espécie de almoxarifado cósmico onde cada cretino pode saquear o que ele quiser indefinidamente. Pode saquear os oceanos, pode saquear as florestas, as montanhas, eventualmente as pessoas, empacotar essa matéria toda e transformar isso em outras produções, digamos, para atender essa fissura em transformar a nossa vida aqui na Terra numa coisa mais interessante do que simplesmente viver. Os espectros do passado que continuaram acreditando que viver é aquilo que a gente veio fazer na Terra atrapalham toda essa construção de um mundo, digamos assim, planejado, de um mundo plástico, um mundo onde os humanos podem finalmente realizar aquele sonho maravilhoso de fazer esse mundo ser à imagem e semelhança desses humanos totalmente transtornados com sua própria experiência de vida, querendo imprimir no mundo a sua cara. Mas quem são os humanos que querem imprimir no mundo a sua imagem e semelhança? Que humanos são esses e que exclusividade é essa de querer imprimir no planeta a sua própria imagem? É uma piração divina que eles estão experimentando? Eles acreditavam tanto, tanto, naquela criação que deu origem à sua tradição ocidental, de que eles também podem fazer o que o seu Deus fez criando gente à sua imagem e semelhança que podem também criar mundos à sua imagem e semelhança?
Eu queria provocar vocês a pensar em como o Ocidente tem uma fixação em plasmar o resto do planeta com a sua visão do mundo, em que a própria narrativa sobre o fim de mundo ela é um desejo do Ocidente [de] continuar a plasmar um entendimento sobre as nossas experiências, com certas diferenças em cada parte do planeta, mas com uma coisa em comum. Em algum momento nós alcançamos a noção de que a gente poderia ser “os humanos”. Essa eleição de nós, “os humanos”, ela é tão bacana, né? O “clube dos humanos”, o clube dos humanos que pisa e esmaga todas as existências possíveis, porque são humanos, afinal de contas.
Nós justificamos qualquer coisa que os humanos possam fazer com esse organismo, que também decidimos que é um planeta, que faz uma viagem com outros planetas. Elegemos uma cosmologia onde o lugar desse planeta é privilegiado na ciranda toda. É um lugar, por excelência, a nossa casa. Esse lugar, por excelência nossa casa, que estamos depredando a ponto de inviabilizar não só o nosso clube dos humanos, mas a possibilidade de afetos, de vidas, de outros mundos. Essa nossa absoluta capacidade de nos justificar como humanidade aqui na Terra, seja apoiado nas nossas mitologias, nas nossas religiões… Está aí o cristianismo plasmando o planeta inteiro, imprimindo uma narrativa fortemente influenciada por isso mesmo, aquelas pessoas que desde os seus bisavôs estão longe de práticas de religião. Na América Latina, por exemplo, todo mundo é católico e quem não é católico é cristão, então parece que é o Flamengo e o Fluminense. Para quem não é do Brasil fica difícil entender a piada, mas aqui na América Latina ou você é Flamengo ou você é Fluminense, mas a questão é o seguinte, parece que não há outra linha de pensamento na América que não seja o cristianismo, que imprimiram, inclusive, nos nativos daqui. Poucos deles têm a possibilidade de pensar sem o terror de ir para o inferno, que, aliás, é o fim de mundo mais prometido, mais corrente que a gente tem, o fim de mundo mais “na hora”. É o fast-food, você não precisa esperar, chega no balcão e pede, então essa distribuição ampla, geral e irrestrita de inferno, ela vem junto de uma coleção também de mundos.
E aqueles que estão fora dessas narrativas, aqueles que escaparam dessa captura do mundo, do clube dos humanos, onde estão eles? Eles estão circulando em que gradiente? Será que é essa gente, que de geração em geração viu carvão e viu gente ser consumida nos grandes aglomerados da América Latina, que são chamados de favelas, conglomerados nessas regiões periféricas do planeta. Na África então, a vala de pessoas que não pensam nessas coisas incríveis, elas são já tão plasmadas que são aceitas, que o resto do mundo acha que a África é para isso mesmo. Os africanos que ainda tiverem alguma esperteza saiam daí, o resto fica sendo uma vala comum, onde o Ocidente vai despejar a sua frustração sobre a nossa incapacidade de transformar os humanos cada vez mais iguais. Já que não é possível que façamos todos serem iguais no acesso do que seria o bem comum da vida, que, pelo menos, a gente faça todo mundo ser igual naquilo que a gente pode imprimir como dominação, controle e vigilância sobre o jeito de pensar e a maneira de reproduzir e criar mundos e a possibilidade de outros afetos que não sejam aqueles afetos totalmente controlados, “estamentados” e previsíveis. Porque tudo que estiver fora disso precisa ser reeducado, ensinado a como viver de uma maneira própria, aquilo que nós estamos preparados para viver, um progresso contínuo e de preferência sustentável das nossas economias regionais. Nós nos rebelamos de vez em quando fazendo esses rituais de contestação, acendemos algumas fogueiras, mas, na verdade, nós voltamos a um cotidiano onde as nossas instituições estão atoladas até o pescoço no cumprimento da norma, na reprodução constante desse padrão colonialista que não tem coragem de se desfazer da cangalha que nos colocaram e que a gente acha que já virou a nossa roupa.
Basta ver um grupo de pessoas correndo na cumeeira de uma serra, em algum lugar da floresta, por imagens de satélite, de repente mostram nas capas de revista os últimos grupos de quase humanos correndo pelados pela floresta. Daqui alguns anos vocês vão encontrar essas pessoas vestidas e, quem sabe aqui, com um microfone falando com vocês sobre guerras de mundos, porque nós temos uma capacidade incrível de nos consumirmos, de consumir a diferença, nós deglutimos a diferença até que todo mundo fique igual. É isso que eu queria falar com vocês e a presença de vocês foi o que me inspirou para fazer uma bravata sobre a civilização.
Quando nós abrimos essa mesa, eu e o Almires fomos referidos como “pensadores indígenas”, que é uma generalização absoluta, que põe em questão duas coisas: se somos pensadores e essa coisa de sermos “indígenas”. “Índio”, eu já disse uma vez e já foi publicado, foi um equívoco de português. Oswald de Andrade disse que foi um erro de gramática de português, que os portugueses quando chegaram em nossa praia estava uma baita chuva e eles vestiram os índios, e se fosse um dia de sol os índios teriam despido os portugueses. Esse poeminha do Oswald se chama “Erro de português”. Com o tempo e com a circulação que eu fui fazendo no meio dessas culturas, e entendendo o que o Oswald estava dizendo, eu falei: deve ter tido também o equívoco do português de onde ele chegou, a coisa da viagem.
Nós todos conhecemos a história de que os portugueses estavam procurando a rota para as Índias, e quando eles chegaram aqui na América do Sul ninguém atualizou eles de que não tinham chegado nas Índias, e então aquelas pessoas que eles encontraram na praia passaram a ser oficialmente “os índios”. Então essa sequência de equívocos gerou isso que chamam de “os índios”. Ninguém chama a si mesmo de “os índios”. Foi um apelido chato que os portugueses deram para a gente e que pegou, porque apelido é assim: quanto mais chato é, mais gruda em você. Essa família de onde eu me origino, que são os Krenak, esse é um apelido menos distante, com um pouco mais de proximidade, que atribui um pouco de sentido para isso que nós estamos chamando de identidade. Mas essa gente, que também se chama de Krenak, também se chama de outra maneira, nós nos chamamos, em nossa conversa de iguais, de burum. E, na maior simplicidade, porque esse burum quer dizer gente, é como se você viesse conversar comigo e me perguntar “quem é você?” [e] eu responder: “eu sou gente”. Essa natural constatação de que somos gente eu acho que ela cria uma coisa de identidade reflexiva, que permite que eu reconheça em você gente e você reconheça em mim gente. Isso pacifica, de certa maneira, os nossos possíveis encontros, não esvazia o conflito que está na base dos desencontros históricos que a gente já teve, e que resultou, inclusive, nesses apelidos todos. Eu não tenho – talvez pela fricção constante que eu tenho com outras culturas e com outros povos – dificuldade com essa coisa de identidade, não tenho esse problema, digamos que eu já quebrei o pau há muito tempo sobre esse assunto. Para que ele não me incomode mais eu me relaciono em qualquer lugar, com qualquer pessoa, sempre com a possibilidade de estar com gente, entre gente, é gente. Os Krenak, que sobreviveram a uma peneira grave que quase nos extinguiu, viraram o século XX com uma convicção de que nós constituímos um sistema de gentes com todas as outras humanidades e que o risco do nosso desaparecimento – desse complexo sistema de gente – já passou.
É, mais ou menos, como se a gente pudesse celebrar com essa coisa do Antropoceno o fim não da nossa separação, mas o fim da possibilidade de a gente se separar. Vocês estão entendendo? Quer dizer, se houver um apocalipse, nós estamos todos dentro. Então é esse o barato. Ninguém aqui vai acabar sozinho e como eu sempre fui um ativista – dessas coisas dos direitos transumanos, sub-humanos, e também humanos, os direitos civis e os de cidadania – e como, alguns de vocês sabem, como ativista desses direitos, eu participei da luta política no Brasil – a ponto de defender no Congresso, nesse tipo de política que nós temos no nosso país disputado dentro daquele debate político, esses princípios que estão na nossa Constituição –, o capítulo dos índios na Constituição brasileira eu poderia dizer que eu ajudei a escrever. Isso tem um certo sentido de integrar um tipo de experiência de cidadania que me faz refletir a coisa da identidade em outros termos também. Mas eu acho que no fim da década de 1980 – como o Almires lembrou, que na perspectiva do Estado brasileiro a gente podia simplesmente desaparecer, porque fazia parte do projeto colonial desaparecer com a gente fisicamente –, como a gente não desapareceu, ali na década de 1980, em um debate político, eu afirmei o seguinte: que eu achava que a gente tinha ultrapassado a linha vermelha, que a gente já tinha ultrapassado a linha vermelha e que não tinha mais a possibilidade de desaparecer com um coletivo desses, com esse grupo chamado de “índios”, sem dar um escarcéu enorme, sem dar um escândalo. [Eu disse] que eles tinham perdido a última oportunidade de acabar com a gente no século XX e que agora eles estavam irremediavelmente acompanhados desses índios. Então nós somos a praga que vai acompanhar a humanidade enquanto ela existir, vocês estão entendendo? E isso é muito legal. O Raul Seixas que dizia: “eu sou a mosca que pousou na sua sopa”. Então, civilizados, arrependei-vos!
Artigo disponível no ebook Conexões Deleuze e Cosmopolíticas e Ecologias Radicais e Nova Terra e… . Susana Oliveira Dias; Sebastien Wiedemann; Antonio Carlos Rodrigues Amorim (org). Campinas, SP; ALB; FE/UNicamp, 2019, pp. 97-102.