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[Conteúdo] A questão da técnica

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Por Martin Heidegger



A questão da técnica

A seguir, questionaremos a técnica. O questionamento trabalha na construção de um caminho. Por isso aconselha-se considerar sobretudo o caminho e não ficar preso às várias sentenças e aos diversos títulos. O caminho é um caminho do pensamento. Todo caminho de pensamento passa, de maneira mais ou menos perceptível e de modo extraordinário, pela linguagem. Questionaremos a técnica e pretendemos com isto preparar um relacionamento livre com a técnica. Livre é o relacionamento capaz de abrir nossa Pre-sença à essência da técnica. Se lhe respondermos à essência, poderemos fazer a experiência dos limites de tudo que é técnico.

A técnica não é igual à essência da técnica. Quando procuramos a essência de uma árvore, temos de nos aperceber de que aquilo que rege toda árvore, como árvore, não é, em si mesmo, uma árvore que pudesse encontrar entre as árvores.

Assim também a essência da técnica não é, de forma alguma, nada de técnico. Por isso nunca faremos a experiência de nosso relacionamento com a essência da técnica enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que é técnico, enquanto a ele nos moldarmos ou dele nos afastarmos. Haveremos sempre de ficar presos, sem liberdade, à técnica tanto na sua afirmação como na sua negação apaixonada. A maneira mais teimosa, porém, de nos entregarmos à técnica é considerá-la neutra, pois essa concepção, que hoje goza de um favor especial, nos torna inteiramente cegos para a essência da técnica.

De acordo com uma antiga lição, a essência de alguma coisa é aquilo que ela é. Questionar a técnica significa, portanto, perguntar o que ela é. Todo mundo conhece ambas as respostas que respondem esta pergunta. Uma diz: técnica é meio para um fim. A outra diz: técnica é uma atividade do homem. Ambas as determinações da técnica pertencem reciprocamente uma à outra. Pois estabelecer fins, procurar e usar meios para alcançá-los é uma atividade humana. Pertence à técnica a produção e o uso de ferramentas, aparelhos e máquinas, como a ela pertencem estes produtos e utensílios em si mesmos e as necessidades a que eles servem. O conjunto de tudo isto é a técnica. A própria técnica é também um instrumento, em latim instrumentum.

A concepção corrente da técnica de ser ela um meio e uma atividade humana pode se chamar, portanto, a determinação instrumental e antropológica da técnica.

Quem ousaria negar que ela é correta? Ela se rege evidentemente pelo que se tem diante dos olhos quando se fala em técnica. A determinação instrumental da técnica é mesmo tão extraordinariamente correta que vale até para a técnica moderna. Desta, de resto, afirma-se com certa razão ser algo completamente diverso e por isso novo face à técnica artesanal mais antiga. Também a usina de força, com suas turbinas e geradores, é um meio produzido pelo homem para um fim estabelecido pelo homem. Também o avião a jato, também a máquina de alta frequência são meios para fins. Naturalmente, fabricar uma máquina de alta frequência exige a integração de diversos processos da produção técnico-industrial. Naturalmente, uma serraria perdida em algum vale da Floresta Negra é um meio primitivo quando comparada com a usina hidroelétrica instalada no rio Reno.

Permanece, portanto, correto: também a técnica moderna é meio para um fim. É por isso que a concepção instrumental da técnica guia todo esforço para colocar o homem num relacionamento direito com a técnica. Tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, da maneira devida. Pretende-se dominar a técnica. Este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do homem.

Supondo, no entanto, que a técnica não seja um simples meio, como fica então a vontade de dominá-la? Dissemos acima que a determinação instrumental da técnica era correta. Com certeza. O correto constata sempre algo exato e acertado naquilo que se dá e está em frente (dele). Para ser correta, a constatação do certo exato não precisa descobrir a essência do que se dá e apresenta. Ora, somente onde se der esse descobrir da essência, acontece o verdadeiro em sua propriedade. Assim, o simplesmente correto ainda não é o verdadeiro. E somente este nos leva a uma atitude livre com aquilo que, a partir de sua própria essência, nos concerne. Embora correta, a determinação instrumental da técnica não nos mostra a sua essência. Para chegarmos à essência ou ao menos à sua vizinhança, temos de procurar o verdadeiro através e por dentro do correto. Devemos, pois, perguntar: o que é o instrumental em si mesmo? A que pertence meio e fim? Um meio é aquilo pelo que se faz e obtém alguma coisa. Chama-se causa o que tem como consequência um efeito. Todavia, causa não é apenas o que provoca um outro. Vale também como causa o fim com que se determina o tipo de meio utilizado. Onde se perseguem fins, aplicam-se meios, onde reina a instrumentalidade, aí também impera a causalidade.

A filosofia ensina há séculos que existem quatro causas: 1) a causa materialis, o material, a matéria de que se faz um cálice de prata; 2) a causa formalis, a forma, a figura em que se insere o material; 3) a causa finalis, o fim, por exemplo, o culto do sacrifício que determina a forma e a matéria do cálice usado; 4) a causa efficiens, o ourives que produz o efeito, o cálice realizado, pronto. Descobre-se a técnica concebida como meio, reconduzindo-se a instrumentalidade às quatro causas.

E se a causalidade for obscura justamente em sua essência, naquilo que ela é? Sem dúvida, há séculos considera-se a doutrina das quatro causas uma verdade caída do céu, clara como a luz do sol. E, não obstante, já é tempo de se perguntar: por que existem precisamente quatro causas? No tocante às quatro causas, o que significa “causa” em sentido próprio? De onde se determina o caráter de uma causa das quatro causas de modo tão uniforme a ponto de se pertencerem uma à outra numa coerência?

Enquanto não nos empenharmos nestas perguntas, a causalidade permanecerá obscura e sem fundamento e, com ela, a instrumentalidade e, com esta, a determinação corrente da técnica.

De há muito, costuma-se conceber a causa como o que é eficiente. Ser eficiente significa, aqui, alcançar, obter resultados e efeitos. A causa efficiens, uma das quatro causas, determina de maneira decisiva toda causalidade. E isso a tal ponto que já não se conta mais a causa finalis entre as causas. A finalidade não pertence à causalidade. Causa, casus provém do verbo cadere, cair. Diz aquilo que faz com que algo caia desta ou daquela maneira num resultado. A doutrina das quatro causas remonta a Aristóteles. No entanto, para o pensamento grego e no seu âmbito, tudo que a posteridade procurou entre os gregos com a concepção e com o título de “causalidade” nada tem a ver com a eficiência e a eficácia de um fazer. O que os alemães chamam de Ursache, o que nós chamamos de causa, foi chamado pelos gregos de αἴτον, aquilo pelo que um outro responde e deve. As quatro causas são os quatro modos, coerentes entre si, de responder e dever. Um exemplo pode aclarar.

 

(…)

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica, in Ensaios e conferências: Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5 ed. – Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 11-38 (Coleção Pensamento Humano)

 

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