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[Conteúdo] Racismo e sexismo na cultura brasileira

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25 minutos de leitura

Por Lélia Gonzalez

* Artigo apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, no IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, no Rio de Janeiro, em 31 de outubro de 1980. (Publicamos um trecho abaixo)

I. Cumé que a gente fica?

Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá, chega prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.

Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela prá responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso prá bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma porção de coisa prá gente da gente? Teve um hora que não deu prá aguentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a festa acabou em briga…

Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela ne- guinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com a língua nos dentes…

Agora tá queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se comportar? Não é a toa que eles vivem dizendo que “preto quando não caga na entrada, caga na saída”.

A longa epígrafe diz muito além do que ela conta. De saída, o que se percebe é a identificação do dominado com o dominador. E isso já foi muito bem analisado por um Fanon, por exemplo. Nossa tentativa aqui é a de uma indagação sobre o porquê dessa identificação. Ou seja, que foi que ocorreu, para que o mito da democracia racial tenha tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os processos que teriam determinado sua construção? Que é que ele oculta, para além do que mostra? Como a mulher negra é situada no seu discurso?

O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular.

Consequentemente, o lugar de onde falaremos põe um outro, aquele que habitualmente nós vínhamos colocando em textos anteriores. E a mudança foi se dando a partir de certas noções que, forçando sua emergência em nosso discurso, nos levaram a retornar a questão da mulher negra numa outra perspectiva. Trata-se das noções de mulata, doméstica e mãe preta.

Em comunicação apresentada no “Encontro Nacional da LASA (Latin American Studies Association), em abril de 1979 (GONZALEZ, 1979a), falamos da mulata, ainda que de passagem, não mais como uma noção de caráter étnico, mas como uma profissão. Tentamos desenvolver um pouco mais essa noção em outro trabalho, apresentado num simpósio realizado em Los Angeles (UCLA) em maio de 79 (GONZALEZ, 1979c).

Ali, falamos dessa dupla imagem da mulher negra de hoje: mulata e doméstica. Mas ali também emergiu a noção de mãe preta, colocada numa nova perspectiva. Mas ficamos por aí. Nesse meio tempo, participamos de uma série de encontros internacionais que tratavam da questão do sexismo como tema principal, mas que certamente abriam espaço para a discussão do racismo também. Nossa experiência aí foi muito enriquecedora. Vale ressaltar que a militância política no Movimento Negro Unificado constituía-se como fator determinante de nossa compreensão da questão racial. Por outro lado, a experiência vivida enquanto membro do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo permitiu-nos a percepção de várias facetas que se constituiriam em elementos muito importantes para a concretização deste trabalho. E começaram a se delinear, para nós, aquilo que se poderia chamar de contradições internas. O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva socioeconômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar. Exatamente a partir das noções de mulata, doméstica e mãe preta que estavam ali, nos martelando com sua insistência…

Nosso suporte epistemológico se dá a partir de Freud e Lacan, ou seja da Psicanálise. Justamente porque como nos diz Miller em sua Teoria da Alingua (1976):

O que começou com a descoberta de Freud foi uma outra abordagem da linguagem, uma outra abordagem da língua, cujo sentido só veio à luz com sua retomada por Lacan. Dizer mais do que sabe, não saber o que diz, dizer outra coisa que não o que se diz, falar para não dizer nada, não são mais, no campo freudiano, os defeitos da língua que justificam a criação das línguas formais. Estas são propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar. Psicanálise e Lógica, uma se funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou ainda: a análise desencadeia o que a lógica domestica (p. 17).

Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.

A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo, é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por quê? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irrespon- sabilidade, incapacidade intelectual, criancice etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, natural- mente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha (GONZALES, 1979b), pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados.

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto.

Por aí se vê que o barato é domesticar mesmo. E se a gente detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que a constituem. (Como é que pode?) Seguindo por aí, a gente também pode apontar pro lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como os diferentes modos de rejeição /integração de seu papel.

Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo prá nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela prá tudo nesse sentido. Só que isso tá aí… e fala.

II. a Nêga ativa

Mulata, mulatinha meu amor

Fui nomeado teu tenente interventor (Lamartine Babo)

Carnaval. Rio de Janeiro, Brasil. As palavras de ordem de sempre: Bebida, Mulher e Samba. Todo mundo obedece e cumpre. Blocos de sujo, banhos a fantasia, frevos, ranchos, grandes bailes nos grandes clubes, nos pequenos também. Alegria, loucura, liberdade geral. Mas há um momento que se impõe. Todo mundo se concentra: na concentração, nas arquibancadas, diante da tevê.

As escolas vão desfilar suas cores duplas ou triplas. Predominam as duplas: azul e branco, verde e rosa, ver- melho e branco, amarelo e preto, verde e branco e por aí afora. Espetáculo feérico, dizem os locutores: plumas, paetês, muito luxo e riqueza. Imperadores, uiaras, bandeirantes e pioneiros, princesas, orixás, bichos, bichas, machos, fêmeas, salomões e rainhas de sabá, marajás, escravos, soldados, sóis e luas, baianas, ciganas, havaianas. Todos sob o comando do ritmo das baterias e do rebolado das mulatas que, dizem alguns, não estão no mapa. “Olha aquele grupo do carro alegórico, ali. Que coxas, rapaz”. “Veja aquela passista que vem vindo; que bunda, meu Deus! Olha como ela mexe a barriguinha. Vai ser gostosa assim lá em casa, tesão”. “Elas me deixam louco, bicho”.

E lá vão elas, rebolantes e sorridentes rainhas, distribuindo beijos como se fossem bênçãos para seus ávidos súditos nesse feérico espetáculo… E feérico vem de “fée”, fada, na civilizada língua francesa. Conto de fadas?

O mito que se trata de reencenar aqui é o da democracia racial. E é justamente no momento do rito carnavalesco que o mito é atualizado com toda a sua força simbólica. E é nesse instante que a mulher negra transforma-se única e exclusivamente na rainha, na “mulata deusa do meu samba”, “que passa com graça/fazendo pirraça/fingindo inocente/tirando o sossego da gente”. É nos desfiles das escolas de primeiro grupo que a vemos em sua máxima exaltação. Ali, ela perde seu anonimato e se transfigura na Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la. Estes, por sua vez, tentam fixar sua imagem, estranhamente sedutora, em todos os seus detalhes anatômicos; e os “flashes” se sucedem, como fogos de artifício eletrônicos. E ela dá o que tem, pois sabe que amanhã estará nas páginas das revistas na- cionais e internacionais, vista e admirada pelo mundo inteiro. Isto, sem contar o cinema e a televisão. E lá vai ela feericamente luminosa e iluminada, no feérico espetáculo.

Toda jovem negra, que desfila no mais humilde bloco do mais longínquo subúrbio, sonha com a passarela da Marquês de Sapucaí. Sonha com esse sonho dourado, conto de fadas no qual “A Lua te invejando fez careta/ Porque, mulata, tu não és deste planeta”. E por que não?

Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade en- gendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se cons- tata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas.

Se a gente dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar muita coisa interessante. Muita coisa que explica essa confusão toda que o branco faz com a gente porque a gente é preto. Prá gente que é preta, então, nem se fala. Será que as avós da gente, as mucamas, fizeram alguma coisa prá eles tratarem a gente desse jeito? Mas que era uma mucama? O Aurélio assim define:

Mucama. (Do quimbundo mu’kama ‘amásia escrava’) S. f. Bras. A escrava negra moça e de estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família e que, por vezes era ama-de-leite.

Parece que o primeiro aspecto a observar é o próprio nome, significante proveniente da língua quimbunda, e o significado que nela possui. Nome africano, dado pelos africanos e que ficou como inscrição não apenas no dicionário. Outro aspecto interessante é o deslocamento do significado no dicionário, ou seja, no código oficial. Vemos aí uma espécie de neutralização, de esvaziamento no sentido original. Ou por vezes é que, de raspão, deixa transparecer alguma coisa daquilo que os africanos sa- biam, mas que precisava ser esquecido, ocultado.

Vejamos o que nos dizem outros textos a respeito de mucama. June E. Hahner, em A Mulher no Brasil (1978), assim se expressa:

[…] a escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das menores, condições de vida amena, fácil e da maior parte das vezes ociosa. Cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos o chão das salas e dos quartos, cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor. Tinha seus próprios filhos, o dever e a fatal solidariedade de amparar seu companheiro, de sofrer com os outros escravos da senzala e do eito e de submeter-se aos castigos corporais que lhe eram, pessoalmente, destinados. […] O amor para a escrava […] tinha aspectos de verdadeiro pesadelo. As incursões desaforadas e aviltantes do senhor, filhos e parentes pelas senzalas, a desfaçatez dos padres a quem as Ordenações Filipinas, com seus castigos pecuniários e degredo para a África, não intimidavam nem os fazia desistir dos concubinatos e mancebias com as escravas. (p. 120 e 121)

Mais adiante, citando José Honório Rodrigues, ela se refere a um documento do final do século XVIII pelo qual o vice-rei do Brasil na época excluía de suas funções de capitão-mor que manifestara “baixos sentimentos” e manchara seu sangue pelo fato de se ter casado com uma negra. Já naqueles tempos, observa-se de que maneira a consciência (revestida de seu caráter de autoridade, no caso) buscava impor suas regras do jogo: concubinagem tudo bem; mas casamento é demais.

Ao caracterizar a função da escrava no sistema produtivo (prestação de bens e serviços) da sociedade escravocrata, Heleieth Saffioti mostra sua articulação com a prestação de serviços sexuais. E, por aí, ela ressalta que a mulher negra acabou por se converter no “instrumento inconsciente que, paulatinamente, minava a ordem esta- belecida, quer na sua dimensão econômica, quer na sua dimensão familiar” (1976, p. 165). Isto porque o senhor acabava por assumir posições antieconômicas, determinadas por sua postura sexual; como houvesse negros que disputavam com ele no terreno do amor, partia para a apelação, ou seja, a tortura e a venda dos concorrentes. E a desordem se estabelecia exatamente porque:

[…] as relações sexuais entre os senhores e escravas desencadeavam, por mais primárias e animais que fossem, processos de interação social incongruentes com as expectativas de comportamento, que presidiam à estratificação em castas. Assim, não apenas homens brancos e negros se tornavam concorrentes na disputa das negras, mas tam- bém mulheres brancas e negras disputavam a atenção do homem branco. (p. 165)

Pelo que os dois textos dizem, constatamos que o engendramento da mulata e da doméstica se fez a partir da figura da mucama. E, pelo visto, não é por acaso que, no Aurélio, a outra função da mucama está entre parênteses. Deve ser ocultada, recalcada, tirada de cena. Mas isso não significa que não esteja aí, com sua malemolência perturbadora. E o momento privilegiado em que sua presença se torna manifesta é justamente o da exaltação mítica da mulata nesse entre parênteses que é o carnaval.

Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano. E é nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas. Melhor exemplo disso são os casos de discriminação de mulheres negras da classe média, cada vez mais crescentes. Não adianta serem “educadas” ou estarem “bem vestidas” (afinal, “boa aparência”, como vemos nos anúncios de emprego, é uma categoria “branca”, unicamente atribuível a “brancas” ou “clarinhas”). Os porteiros dos edifícios obrigam-nos a entrar pela porta de serviço, obedecendo instruções dos síndicos brancos (os mesmos que as “comem com os olhos” no carnaval ou nos oba-oba. Afinal, se é preta só pode ser doméstica, logo, entrada de serviço. E, pensando bem, entrada de serviço é algo meio maroto, ambíguo, pois sem querer remete a gente prá outras entradas (não é “seu” síndico?). É por aí que a gente saca que não dá prá fingir que a outra função da mucama tenha sido esquecida. Está aí.

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente porque é ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, “mãos brancas” estão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste país).

Cabe de novo perguntar: como é que a gente chegou a este estado de coisas, com abolição e tudo em cima? Quem responde prá gente é um branco muito importante (pois é cientista social, uai) chamado Caio Prado Junior. Num livro chamado Formação do Brasil Contemporâneo (1976), ele diz uma porção de coisas interessantes sobre o tema da escravidão:

Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, não determinará senão relações elementares a muito simples. […] A outra função do escravo, ou antes da mulher escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores, não tem um efeito menos elementar. Não ultrapassara também o nível primário e puramente animal do contato sexual, não se aproximando senão muito remotamente da esfera propriamente humana o amor, em que o ato sexual se envolve de todo um complexo de emoções e sentimentos tão amplos que chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato que afinal lhe deu origem. (p. 342 e 343)

Depois que a gente lê um barato assim, nem dá vontade de dizer nada porque é um prato feito. Mas vamos lá. Quanto aos dois fatos apontados e conjugados, é só dar uma olhadinha, de novo, no texto de Heleieth. Ela dá um baile no autor, dentro do mesmo espaço discursivo em que ele se colocou. Mas nosso registro é outro, vamos dar nossa chamadinha também. Pelo exposto, a gente tem a impressão de que branco não trepa, mas comete ato sexual e que chama tesão de necessidade. E, ainda por cima, diz que animal só tira sarro. Assim não dá prá entender, pois não? Mas, na verdade, até que dá. Pois o texto possui riqueza de sentido, na medida em que é uma expressão privilegiada do que chamaríamos de neurose cultural brasileira. Ora, sabemos que o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento. Na verdade, o texto em questão aponta para além do que pretende analisar. No momento em que fala de alguma coisa, negando-a, ele se revela como desconhecimento de si mesmo.

Nessa perspectiva, ele pouco teria a dizer sobre essa mulher negra, seu homem, seus irmãos e seus filhos, de que vínhamos falando. Exatamente porque ele lhes nega o estatuto de sujeito humano. Trata-os sempre como objeto. Até mesmo como objeto de saber. É por aí que a gente compreende a resistência de certas análises que, aovinsistirem na prioridade da luta de classes, se negam a incorporar as categorias de raça e sexo. Ou seja, insistem em esquecê-las (FREUD, 1925).

E, retomando a questão da mulher negra, a gente vai reproduzir uma coisa que a gente escreveu há algum tempo. As condições de existência material da comunidade negra remetem a condicionamentos psicológicos que têm que ser atacados e desmascarados. Os diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas etc., até à polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” […] dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço […] No caso do grupo dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende porque o outro lugar natural do negro sejam as prisões. A sistemática repressão policial, dado o seu caráter racista, tem por objetivo próximo a instauração da submissão psicológica através do medo. A longo prazo, o que se visa é ao impedimento de qualquer for- ma de unidade do grupo dominado, mediante a utilização de todos os meios que perpetuem a sua divisão interna. Enquanto isso, o discurso dominante justifica a atuação desse aparelho repressivo, falando de ordem e segurança sociais (GONZALES, 1979c).

Pelo visto, e respondendo à pergunta que a gente fez mais atrás, parece que a gente não chegou a esse estado de coisas. O que parece é que a gente nunca saiu dele. Basta a gente dar uma relida no que a Hahner e a Heleieth disseram. Acontece que a mucama “permitida”, a empregada doméstica, só faz cutucar a culpabilidade branca porque ela continua sendo a mucama com todas as letras. Por isso ela é violenta e concretamente reprimida. Os exemplos não faltam nesse sentido; se a gente articular divisão racial e sexual de trabalho fica até simples. Por que será que ela só desempenha atividades que não implicam em “lidar com o público”? Ou seja, em atividades onde não pode ser vista? Por que os anúncios de emprego falam tanto em “boa aparência”? Por que será que, nas casas das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente copeira? Por que é “natural” que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais etc. e tal?

E quando, como no famoso “caso Marli” (que tem sua contrapartida no “caso Aézio” que, afinal, deu no que deu), ela bota a boca no trombone, denunciando o que estão fazendo com homens de sua raça? Aí as coisas ficam realmente pretas e há que dar um jeito. Ou se parte para a ridicularização ou se assume a culpabilidade mediante a estratégia de não assumi-la. Deu pra sacar? A gente se explica: os programas radiofônicos ditos populares são useiros e vezeiros na arte de ridicularizar a crioula que defende seu crioulo das investidas policiais (ela sabe o que vai acontecer a ele, né? O “caso Aézio” taí de prova). Que se escutem as seções policiais desses programas. Afinal um dos meios mais eficientes de fugir à angústia é ridicularizar, é rir daquilo que a provoca. Já o “caso Marli”, por exemplo, é levado a sério, tão a sério que ela tem que se esconder. É sério porque se trata do seu irmão (e não do seu homem); portanto, nada melhor para neutralizar a culpabilidade despertada pelo seu ato do que o gesto de folclorizá-la, de transformá-la numa “Antígona Negra”, na heroína, única e inigualável. Com isso a massa anônima das Arlis é esquecida, recalcada. E tudo continua legal nesse país tropical. Elementar, meu caro Watson.

É por aí que a gente entende porque dizem certas coisas, pensando que estão xingando a gente. Tem uma música antiga chamada “Nêga do cabelo duro” que mostra direitinho porque eles querem que o cabelo da gente fique bom, liso e mole, né? É por isso que dizem que a gente tem beiços em vez de lábios, fornalha em vez de nariz e cabelo ruim (porque é duro). E quando querem elogiar a gente dizem que a gente tem feições finas (e fino se opõe a grosso, né?). E tem gente que acredita tanto nisso que acaba usando creme prá clarear, esticando os cabelos, virando leidi e ficando com vergonha de ser preta. Pura besteira. Se bobear, a gente nem tem que se defender com os xingamentos que se referem diretamente ao fato da gente ser preta. E a gente pode até dar um exemplo que põe os pingos nos is.

Não faz muito tempo que a gente estava conversando com outras mulheres, num papo sobre a situação da mulher no Brasil. Foi aí que uma delas contou uma história muito reveladora, que complementa o que a gente já sabe sobre a vida sexual da rapaziada branca até não faz muito: iniciação e prática com as crioulas. É aí que entra a história que foi contada prá gente (brigada, Ione). Quando chegava na hora do casamento com a pura, frágil e inocente virgem branca, na hora da tal noite de núpcias, a rapaziada simplesmente brochava. Já imaginaram o vexame? E onde é que estava o remédio providencial que permitia a consumação das bodas? Bastava o nubente cheirar uma roupa de crioula que tivesse sido usada, para “logo apresentar os documentos”. E a gente ficou pensando nessa prática, tão comum nos intramuros da casa grande, da utilização desse santo remédio chamado catinga de crioula (depois deslocado para o cheiro de corpo ou simplesmente cc). E fica fácil entender quando xingam a gente de negra suja, né?

Por essas e outras, também, que dá vontade de rir quando a gente continua lendo o livro do “seu” Caio Prado Junior (1976, p. 343). Aquele trecho, que a gente reproduziu aqui, termina com uma nota de rodapé, onde ele reforça todas as babaquices que diz da gente, citando um autor francês em francês (só que a gente traduz):

“O milagre do amor humano é que, sobre um instinto tão simples, o desejo, ele constrói os edifícios de sentimentos os mais complexos e delicados”. (André Maurois)

É este milagre que o amor da senzala não realizou e não podia realizar no Brasil-colônia.

Pelo exposto, parece que nem Freud conseguiu melhor definir neurose do que André Maurois. Quanto à negativa do “seu” Caio Prado Júnior, infelizmente, a gente sabe o que ele está afirmando esquecidamente: o amor da senzala só realizou o milagre da neurose brasileira, graças a essa coisa simplérrima que é o desejo. Tão simples que Freud passou a vida toda escrevendo sobre ela (talvez porque não tivesse o que fazer, né Lacan?).

Definitivamente, Caio Prado Júnior “detesta” nossa gente.

A única colher de chá que dá prá gente é quando fala da “figura boa da ama negra” de Gilberto Freyre, da “mãe preta”, da “bá”, que “cerca o berço da criança brasileira de uma atmosfera de bondade e ternura” (p. 343). Nessa hora a gente é vista como figura boa e vira gente. Mas aí ele começa a discutir sobre a diferença entre escravo (coisa) e negro (gente) prá chegar, de novo, a uma conclusão pessimista sobre ambos.

É interessante constatar como, através da figura da “mãe-preta”, a verdade surge da equivocação (LACAN, 1979). Exatamente essa figura para a qual se dá uma colher de chá é quem vai dar a rasteira na raça dominante. É através dela que o “obscuro objeto do desejo” (o filme do Buñuel), em português, acaba se transformando na “negra vontade de comer carne” na boca da moçada branca que fala português. O que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como querem os brancos e tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como querem alguns negros muito apressados em seu julgamento. Ela, simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra. Se assim não é, a gente pergunta: que é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe prá dormir, que acorda de noite prá cuidar, que ensina a falar, que conta história e por aí afora? É a mãe, não é? Pois então. Ela é a mãe nesse barato doido da cultura brasileira. Enquanto mucama é a mulher; então “bá” é a mãe. A branca, a chamada le- gítima esposa, é justamente a outra que, por impossível que pareça, só serve prá parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a “mãe preta” é a mãe.

E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira, como diz Caio Prado Júnior. Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês. A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente (GONZALEZ, 1979c). Ela passa prá gente esse mundo de coisas que a gente vai chamar de lin- guagem. E graças a ela, ao que ela passa, a gente entra na ordem da cultura, exatamente porque é ela quem nomeia o pai.

Por aí a gente entende porque, hoje, ninguém quer saber mais de babá preta, só vale portuguesa. Só que é um pouco tarde, né? A rasteira já está dada. [CONTINUA]

 

Lélia Gonzalez. (Belo horizonte, MG, 1935 – Rio de Janeiro, RJ, 1994)

Historiadora, antropóloga e professora, dedicou parte importante de sua trajetória a explicitar a perversa combinação de racismo e sexismo na situação das mulheres negras. Discutia linguagem e criou as noções de amefricanidade e pretuguês. Foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado e do Coletivo de Mulheres Negras N’Zing.

FONTE: SANTANA, Bianca (org.). Vozes insurgentes de mulheres negras, São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2019.

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