Por Francisco das C. F. Santiago Júnior
O que gostaria de trazer para vocês são algumas reflexões que tratam sobre a relação entre imaginário político, as artes brasileiras, em especial o cinema, e a noção de raça no Brasil. Geralmente nossos discursos e práticas sociais se baseiam numa idéia comum de que nosso país seja mais tolerante do ponto de vista racial, e pesquisas científicas recentes apontam para a impossibilidade biológica de afirmar a existência de raças entre os seres humanos.
Contudo, recentemente, mais exatamente no ano passado, em 2009, foi aprovado no nosso Congresso Nacional o Estatuto da Igualdade Racial no qual uma série de medidas de reconhecimento legal da condição racial como fator estruturante da vida dos brasileiros foi colocado em evidência para que medidas e políticas públicas possam ser criadas no sentido de equilibrar e combater exclusões que partem da diferenciação racial. Nesta concepção “raça” é mais do que justificativa para exclusões: é um sistema classificatório aberto atuante que está internalizado no Brasil e em relação ao qual se desenvolvem muitos projetos sociais alternativos.
Essa contradição lógica não o é do ponto de vista sócio-antropológico, uma vez que de fato, cada vez mais grupos sociais trabalham com a concepção de raça. Importa lembrar, portanto, que a noção de raça tem sofrido inflexões na história principalmente, após os deslocamentos nos mitos étnicos-raciais brasileiros no final do século passado.
Nos campos que configuram a cultura visual brasileira foram muitas as formas pelas quais “raça” fora (é) atualizada. Trazemos aqui um fragmento dessa atualização durante os anos 1970, mostrando sintomas de um deslocamento na sensibilidade e no imaginário político brasileiro no campo cinematográfico. Acompanharemos a maneira como um discurso racialista surgiu a partir de um questionamento do filme Xica da Silva (1975), e como isso permitiu o surgimento de uma retórica da humilhação elaborada a partir da negação do campo visual, que tão somente gera contra-imagens neste mesmo campo.
Negro, classe e cinema
O campo cinematográfico viu-se às voltas com a questão do negro no momento em que se politizava o fazer cinema no Brasil em meados dos anos 1950. Surgiam as bases do chamado “Cinema Novo” e o cinema tornou-se um campo importante do debate cultural, elencando entre seus temas os destinos políticos do país. O negro tornou-se um dos muitos temas dos filmes e para os realizadores tratar do negro permitia mostrar desigualdades sociais mais amplas, as quais, na época, foram pensadas e visualizadas num discurso que partia do viés sócio-econômico2 . Desta maneira a marginalização dos negros fora mostrada como um traço de exclusão econômica, ou seja, como faces da exclusão de classe.
Classificações raciais e atribuições de origens africanas nos filmes mostravam um tipo de vítima da exploração econômica, o negro brasileiro. Entretanto, após 1968, ocorreu uma mudança importante. Decepções frente às utopias do potencial revolucionário do povo brasileiro idealizadas pelos realizadores do campo cinematográfico produziram uma revisão do papel dos próprios realizadores. Alguns dos remanescentes do Cinema Novo desistiram de mostrar o povo como o agente revolucionário da transformação (naquele momento, um discurso perigoso), mas continuaram a imaginá-lo (no sentido de „criar imagens‟) como agente político.
O segundo filme histórico sobre a escravidão de Carlos Diegues, Xica da Silva, surge dessa redefinição do papel político do povo, agora partindo de uma retomada histórica do negro escravo na figura da lendária subversiva das ordens do Arraial do Tijuco. A protagonista vivida por Zezé Mota usava da sensualidade para inverter os poderes da sociedade escravista, 4 impondo-se à nobreza branca e escarnecendo desta ao mimetizá-la de maneira singular.
Enquanto muitos críticos, intelectuais e artistas se refestelaram com a inversão da ordem social e a “estética carnavalesca” do filme, mostrando como Xica usava do deboche e da avacalhação para alterar seu mundo outros criaram uma interpretação alternativa que trazia para o primeiro plano o debate racial. No dia 15 de outubro de 1976, no jornal Opinião, Carlos Hansenbalg, Beatrix Nascimento e Carlos Frederico publicaram críticas severas à fita entre as quatro páginas que o periódico dedicou ao assunto. Aqui, focalizaremos apenas ao caso de Beatriz Nascimento, a qual faz interessantes considerações.
A crítica mais voraz foi feita pela historiadora Beatriz Nascimento, que classificou a fita como um item a ser proibido pelo:
“desrespeito que impõe a um episódio da história de um povo, desrespeitado
quanto a história de todo um povo, desrespeito na medida em que vilipendia
este povo, desrespeito por manter os estereótipos em relação a um povo que
no momento procura, em função de sua autonomia cultural, se livrar
justamente desses estereótipos.” (NASCIMENTO, 1976)
O trabalho de Diegues fugia, segundo ela, da veracidade histórica, desinformava a população e “em termos da crítica das relações raciais no Brasil, nos remete a Idade da Pedra”[grifos nossos]. Nascimento identificou imediatamente o que considerou a matriz ideológica da obra:
“Repete como já dissemos Casa Grande e Senzala. Os portugueses no filme,
desde João Fernandes, passando pelo intendente, até o frouxo „inconfidente‟
são opressores, exploradores, mas complacentes com os negros, escravos,
sentimentais (o pai do „Inconfidente‟ e João Fernandes) e, acima de tudo,
bons apreciadores dos jogos do amor. Os negros, escravos e quilombolas são
passivos, rebeldes inconseqüentes (bandidos salteadores) e reconhecidos da
bondade e generosidade do Senhor (…) O conflito racial (que não consegue
transpirar satisfatoriamente) só parte das pessoas menos dotadas (…)
Em suma, o ethos português colonizador é de humanidade e reconhecimento
da pessoa dos negros: uma escravidão amena e divertida [grifo nosso].”
(NASCIMENTO, 1976).
Finalmente, no final do artigo para Opinião, Nascimento faz sua grande crítica ao que podemos chamar de uma fortaleza ideológica branca no Brasil:
“Confesso que perdi as esperanças quanto à compreensão do intelectual
branco brasileiro sobre a real história do negro. (…) Se o senhor Diegues descesse um pouco da sua onipotência e fizesse uma reflexão sobre si mesmo e a implicação da história do seu povo em si antes de confeccionar o filme, entenderia que, devido às relações sociais e culturais, ele como um homem branco brasileiro possui introjetado, de forma específica, o negro brasileiro, sua posição em termos de homem e de raça. Mas ele, como a maioria dos seus iguais, deve ter um grande receio de descobrir esse ponto oculto.” (NASCIMENTO, 1976).
A película de Diegues atingira frontalmente as sensibilidades dos analistas que se expressavam no jornal, em especial Nascimento. Nenhum deles participava diretamente como diretor, roteirista, crítico do campo cinematográfico, eram intelectuais que indagaram a fita a partir de um ponto de vista que pode ser tomado como indício de como dada parcela da população brasileira reagiu à maneira como o negro aparecia. Ao designarem o hábito “introjetado” dos “intelectuais brancos” de ignorar a história e de enveredar nos estereótipos da mulher negra, os analistas apontam sérios dramas sociais da sociedade brasileira.
Beatriz Nascimento identifica o olhar branco em Xica da Silva e no cineasta Carlos Diegues: uma perspectiva que mostra o negro, mas não seria capaz de representá-lo. Nascimento racializou a discussão ao desenvolver uma retórica que insere o traço da identificação racial um componente fundamental do olhar fílmico. Desta maneira, denunciando a tentativa de invisibilização do “povo negro” como “raça”, acreditava mostrar que as imagens fílmicas não eram uma representação dos negros e de sua história. Película, diretor e protagonista eram reprovados, de maneira a demarcar a diferença e a distância entre o povo negro, sua cultura e os “intelectuais [homens] brancos” brasileiros e suas produções. O negro, nomeado mostrado pela fita, foi transformado, pelo discurso de Nascimento, num “outro” racial. Desta maneira, a retórica de Nascimento transformava o filme num componente da retórica branca que idealizava o negro a partir “velha compreensão ocidental da África e do africano, como um primitivo, um selvagem” (NASCIMENTO, 1976).
A categoria racial, portanto, foi positivada na identificação do desrespeito dos brancos às “coisas” do povo negro. Essa ofensa foi identificada a partir de um sentimento de humilhação sentida pelos agentes sociais que não se reconheciam na fita, e, portanto, não eram capazes de transformar a imagem fílmica em auto-imagem, em representação.
Um pensamento negro?
Ocorreram significavas alterações no cenário social e político brasileiro que tornaram possíveis as intervenções de Beatriz Nascimento e de Carlos Hasenbalg sobre o filme Xica da Silva. Buscar as bases de como essa retórica de racialização tomara forma será útil para entender como a elaboração de uma contra-imagem, por meio da escrita, deu outra magnitude à questão do negro no Brasil.
A re-definição da concepção racial como dotada de força política tal como aparece nos discursos de Carlos Hasenbalg e Beatriz Nascimento fazia parte da reformulação dos marcos políticos brasileiros na década de 1970. A nova retórica da raça estava alicerçada num contínuo movimento histórico que atingira o campo cinematográfico apenas depois de ter tomado forma em outros campos sociais e culturais. Os discursos veiculados n‟Opinião, para além de intervenções no campo cinematográfico, alimentaram e foram alimentados por uma tradição a qual chamaremos, por comodidade, de pensamento negro de artistas e intelectuais negros, o qual, comunicando-se com alguns discursos de setores da intelectualidade, montaram outra forma de compreensão social do Brasil.
Embora possamos identificar as origens dos discursos de negros e mestiços sobre si próprios ao século XIX, para efeito deste texto, o momento significativo fora a década de 1930 com a Frente Negra Brasileira. Na década seguinte surgiu, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, fundado por um destacado grupo negros que se dedicou às atividades culturais e políticas de denuncia do preconceito e do estigma racial no Brasil. Os componentes do FNB foram contemporâneos do surgimento de novas oportunidades na década de 1930 para a população negra no mercado de trabalho, principalmente no setor público no período varguista.
O TEN5 criou um projeto para inclusão do negro a partir da defesa da idéia de que os negros brasileiros partilhavam do mesmo tipo de experiência de exclusão que os pobres. A associação negro & pobre foi criada pelo TEN na forma de uma arte e pensamento negros como expressão da maioria excluída e não da minoria racial ressentida (GUIMARÃES, 2004).
A sociologia deu também um importante impulso na ampliação do arsenal teórico e ideológico das muitas associações negras que começaram a surgir no contexto da redemocratização. As mitologias cordiais e de plasticidade brasileiras foram confrontadas com novas pesquisas que, a partir de 1950, revelavam um país repleto de preconceito racial. Roger Bastide, Florestan Fernandes, Guerreiro Ramos e Fernando Henrique Cardoso forneciam nesse quadro um novo arcabouço que se contrapunha à visão freyriana do Brasil. Entretanto, a maneira de enfrentar o problema racial não era tomá-lo como um estruturador social.
Contudo, aparentemente o maior vetor de transformação no pensamento negro brasileiro foram os movimentos políticos e culturais negros estrangeiros. Popularizou-se no Brasil, desde os anos 1960 principalmente, reportagens sobre questão racial no Brasil. Os movimentos de descolonização na África criavam um cenário de africanos (negros) lutando por seus direitos que se intensificou sobremaneira a partir da década de 1950, suscitando uma libertação do domínio europeu não apenas no sentido político, mas também ideológico. Finalmente, a onda norte-americana de movimentos sociais e luta pelos direitos civis com líderes carismáticos como Martin Luther King e Malcom X, ou a ação assertiva dos Panteras Negras repercutiram no mundo todo, e no Brasil em particular, estimulando a criação de novas organizações negras no Brasil.
Multiplicaram-se gestos e símbolos de afirmação negra: o cabelo black Power, a produção de músicas, festas e movimentos culturais. Se na ditadura pós-1964 ocorreu um refluxo inicial dos movimentos negros (inclusive com o exílio de alguns de seus principais membros como Abdias do Nascimento) e os governos militares transformaram o mito das três raças em “doutrina” do regime, com os anos, principalmente no governo Geisel, pipocaram os movimentos negros que questionaram a situação social do negro. Acima de tudo: tais movimentos desenvolveram a noção de que havia a alienação do próprio negro de sua condição enquanto negro, não apenas como pobre.
A partir daí o mito das três raças e o ideal da democracia racial foram combatidos, vinculados à política do branqueamento que negativizava o negro e positivava o branco. O mulato e o mestiço como símbolos nacionais foram revistos como mecanismos da dominação branca.
Essas mudanças estavam ligadas, evidentemente, a uma nova classe média de famílias negras cujos filhos começaram a entrar nas universidades e na sociedade de consumo. O crescimento econômico motivado pelo estado autoritário (o milagre brasileiro) tornou acessível o emprego de negros não apenas na produção primária de bens de consumo, mas também na indústria (SANSONE, 2006, p. 43).
Como dissemos acima, apesar da repressão aos direitos políticos, o afrouxamento do regime permitiu um período de crescimento das organizações negras e da cultura negra. Nasceram inúmeras organizações culturais com fins políticos tendo por bases comunidades negras ou negros interessados na criação de discursos identitários de caráter racial e étnico.
Parte desses movimentos era ligada às universidades, vinculando Academia e militância pró-identidade negra. Um desses grupos de trabalhos, sediado na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, foi o Grupo de Trabalho André Rebouças, fundado em 1973 por Beatriz Nascimento. Congregava acadêmicos (as) negros (as), contando com contatos constantes com estudiosos como Eduardo Oliveira Oliveira, Juana Elbeins dos Santos, Ivonne Maggie, Décio Freitas. Agora afinal podemos situar a origem daqueles discursos racialistas que surgiram contra Xica da Silva.
Beatriz Nascimento nasceu em 12 de julho de 1942 e migrou com a família ainda criança para o Rio de Janeiro, onde cursou História na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 1968 e 1971. Estagiou como pesquisadora no Arquivo Nacional e tornou-se ativista dos movimentos culturais e políticos negros cariocas, ajudando na articulação das organizações negras nos dois lados da Guanabara e mantendo contatos com movimentos negros do Brasil inteiro, inclusive com o Movimento Negro Unificado que surgiria em 1978.8 . Há registros de suas entrevistas e jornais em nível de circulação nacional tais como a Revista de Cultura Vozes, Estudos Afro-asiáticos, Opinião, Folha de São Paulo, etc. Partindo da sua preocupação pessoal como mulher negra, alimentada pelas novas polêmicas de sua época, Nascimento passara a refletir não só sobre o lugar do negro em sociedade, mas, fundamentalmente, sobre o lugar do negro em si, sua autoimagem, a introjeção do preconceito e da ideologia social para o negro no Brasil.
Em 1974, na revista Vozes, escrevia:
“Não se pode incorrer na perpetuação de mistificações, de estereótipos que
remontam às origens da vida histórica de um povo que foi arrancado de seu
habitat, escravizado e violentado na sua História real (…) Quem somos nós, pretos, humanamente? Podemos aceitar que nos estudem como seres primitivos? Como expressões artísticas da sociedade brasileira? Como classe social, confundida com todos os componentes da classe economicamente rebaixada, como querem muitos? Pergunto em termos de estudo. Podemos ser estudados, ser confundidos com os nordestinos pobres? Com os brancos pobres? Com os índios?… Não será possível que tenhamos características próprias, não só em termos “culturais”, sociais, mas em termo humano? Individuais? Creio que sim. Eu sou preta, penso e sinto assim.” (NASCIMENTO, 2007, p. 93).
Ainda naquele ano, Beatriz indagava não só sobre o negro real, mas sobre a imposição sobre este de um conjunto de imagens culturais, de sua redução às expressões simbólicas do Brasil que o alijavam de sua especificidade. Clarificando para si e seus leitores a constituição da imagem da cultura negra por agentes externos a ela, evidenciava como tais imagens eram estranhas à vivência da população negra:
“As manifestações preconceituosas são tão fortes que, por parte de nossa intelectualidade, de nossos literatos, de nossos poetas, da consciências nacional, vamos dizer, somos tratados como se vivêssemos ainda sob o escravismo. A representação que se faz de nós em literatura, por exemplo, é a de criado doméstico, ou, em relação à mulher, a da concubina do período colonial. O aspecto mais importante do desleixo dos estudiosos é que nunca houve tentativas sérias de nos estudar como raça. … Os artistas, intelectuais e outros brancos, diante da crise do pensamento e da própria cultura do Ocidente, voltam-se para nós como se pudéssemos mais uma vez agüentar as suas frustrações históricas. É possível que agora, no terreno das idéias e das artes, continuemos a ser „os pés e as mãos‟ desta Sociedade Ocidental? Acham eles que por freqüentarem candomblé, fazerem músicas que falam de nossa alegria, sabedoria e outros estereótipos, podem também, subtrair a nossa identidade racial. Se um jovem loiro, burguês, intelectual brilhantíssimo, após alguns anos de estudo de uma de nossas manifestações chegar a conclusão que é mais preto do que eu, o que eu sou?” (NASCIMENTO, 2007, p. 94).
O negro era um outro não apenas cultural ou étnico, mas racial, específico e obliterado pela visão do branco. Nascimento não reconhecia àquelas imagens da literatura clássica como representações de seu povo, de seus iguais raciais, mas semelhantes ao que os brancos eram capazes de criar. Essa é uma das matrizes discursivas que está na base da intervenção de Nascimento quando do lançamento de Xica da Silva, dois anos depois. A mesma matriz reaparece em 1981, na cidade de Salvador, quando durante o Seminário Cinema e Descolonização, organizada pela Sociedade Brasileira de Estudos da Cultura Negra (SECNEB), com direção de Juana Elbein dos Santos, esposa de Mestre Didi e importante antropóloga ativista na defesa dos direitos e visibilidades da comunidade nagô baiana. Naquele ano, Nascimento colocava:
Vejam bem que Xica da Silva surge num momento em que toda uma faixa etária de jovens negros se preocupa em protestar contra discriminação racial através do som e das danças do Black Soul nas grandes cidades do Brasil. Sua nova identidade é a dos Muhamad Ali, dos James Brown, dos Malcom X e de outros líderes que lutaram para por fim à crise racial americana. Vivenciamos como essa preocupação cinematográfica que surge a partir de Xica da Silva atua como um banho de água fria numa população potencialmente produtiva; enquanto esses jovens e não jovens buscam sua identidade racial positiva, é feita uma obra de arte que volta a figurar uma escrava que aceita a aliança com o poder colonial (NASCIMENTO, 1982, p. 25).
Naquele seminário, porém, já havia ocorrido uma mudança de rota fundamental, uma vez que a abertura política do regime militar permitiu a organização de movimentos políticos de caráter racial, sendo o mais famoso deles, o Movimento Negro Unificado, de 1978. A batalha pela organização desse movimento envolveu muitos intelectuais negros e encontrou em alguns deles falas sincronizadas as quais se manifestaram em inúmeros campos culturais, inclusive o cinema. Beatriz Nascimento, neste sentido, em sua indagação sobre a imagem e a auto-imagem negra, estivera acompanhada por importantes nomes como Carlos Hanselbag, Eduardo de Oliveira, Muniz Sodré e outros.
Grosso modo, os escritos destes pensadores permitiam a re-composição de identidades étnico-raciais, as quais competiam com as propostas mestiças que seguiam o ideário modernista em finais dos anos 1970. A grande questão que gostaria de ressaltar aqui é que a etnicidade construída naquele contexto, ou seja, a idéia de uma cultura negra e afro-brasileira, foi instrumentalizada também para compor a noção positivada de raça no Brasil.
Essa proposta entrou em choque com filmes como Xica da Silva, mas seria possível ilustrar esse mesmo movimento em relação à outras obras tais como Tenda dos Milagres (1977), dirigido por Nelson Pereira dos Santos, ou A Força de Xangô (1978), de Iberê Cavalcanti. Seu traço mais significativo era colocar o reconhecimento da raça como categoria importante da sociedade brasileira, e usá-la como instrumento para reivindicar novas imagens e novas formas de participação na sociedade, inclusive desarticulando velhas imagens e ideologias.
Última palavra: humilhação
É sabido há muito tempo que o final dos anos 1970 viu a emergência dos chamados novos movimentos sociais, baseados em uma série de reivindicações identitárias. Apontar a ação de intelectuais como Beatriz Nascimento é apenas uma reconstatação de como concepções alternativas foram surgindo, embora talvez nunca seja suficiente lembrar para o fato de que a retomada do discurso racial, a racialização perpetrada naquele momento histórico, no qual a concepção de raça transformou-se em positiva e instrumento de resistência e transformação ideológica e política, reforçou novos parâmetros raciais no Brasil.
A afirmação do discurso racial nos anos 1970 articulou novidades no contexto histórico, a qual pode ser acompanhada nas polêmicas do campo cinematográfico brasileiro e rastreado para além dele. Se a racialização emergiu de forma explícita nas reações às produções e discussões sobre o negro do campo cinematográfico, fez-se alimentar pelo crescimento de um sentimento de pertença entre diversos indivíduos devido a partilha do que consideraram experiências em vários níveis de humilhação.
Especificamente aqui, estamos falando de uma experiência de humilhação articulada nas imagens cinematográfica. No caso em questão, o “pensamento negro” forneceu à Beatriz Nascimento instrumentos para articular conceitos capazes de dar conta da sistematização da imagem que é criada pelos negros em filmes como Xica da Silva promovem atribuições visuais-identitárias que diminuem o “negro” apresentado. A chamada de atenção para o ponto de vista do artista e intelectual branco que elabora a imagem do negro e nada mais faz do que atualizar os estereótipos sobre este, numa perspectiva do outro-negro, permitiu à Nascimento mostrar o outro-branco que cria a imagem.
A questão é que o negro do filme é tomado por algumas personalidades autodeclaradas negras como um “outro” também, irreconhecível senão na humilhação pela qual são reconhecidos em imagens. Onde esteve essa experiência? Onde pudemos detectá-la? Pelo fato de que os discursos de Beatriz Nascimento, entre tanto, tornam-se discursos racialistas ao se fazerem discursos do humilhado que decide denunciar o próprio rebaixamento.
A película de Carlos Diegues e o próprio foram apontados como sintomáticos da prática cultural do rebaixamento, as imagens do filme negavam o negro brasileiro, o qual só encontrava visibilidade pela lente do branco, em relação ao qual se encontrava em situação desigual por não ser ele próprio, ainda, um criador de contraimagens.
Ora, a racionalidade do ato de humilhação consiste em incutir um tipo específico de sofrimento ao se realizar como ataque à interioridade dos negros, atingidos tanto individual como coletivamente, desvalorizados e inferiorizados nas suas posições9 . Como chama atenção Pierre Ansart, a humilhação é uma poderosa arma de repressão, ou pode ser usada como instrumento para ativar a liberação. Contra a retórica humilhante que estaria contida no filme de Diegues, os escritos de Nascimento criaram contra-imagens que rejeitavam as concepções de relações raciais atenuadas no Brasil e do hábito de culturalizar o negro, reduzindo-o à sua “cultura”, o que fora compreendido por intelectuais negros como a despolitização do negro.
A retórica anti-humilhação era uma forma de re-politizar o negro e a denúncia virulenta da qualidade da imagem de cinema “branca”, de seu olhar idealizador do negro como história, cultura e diversão, foi formatada sempre em contraposição à experiência negra que jamais fora realmente visualizada na forma de cinema.
A humilhação era tomada como maior conforme se percebia que Carlos Diegues e a intelectualidade “branca”, não compreendiam a vileza do papel que estavam cumprindo. Ao investirem em imagens do negro super-sexualizado, da escravidão amena e da permissividade e do carnavalesco, para citar alguns elementos de Xica da Silva a fita foi identificada com um processo de humilhação.
Aquilo que para uns era um retrato da brasilidade, no recorte racial montado nos anos 1970, era um retrato humilhante de “outro povo” – o negro – dentro da nação. Parte da audiência não se reconheceu nas imagens, considerou-as alheias, viram-se retratados como objetos. Contudo, se a reação veio na forma de devastadoras críticas num dos mais importantes jornais brasileiros de então, isso foi sinal de um deslocamento histórico no debate político. Ao entrar na defensiva demonstrando sua revolta, e colocando-se como porta voz de uma rejeição coletiva, Beatriz Nascimento (e outros) procuraram articular transformações. O que foi isso senão a reversão ao colocar o branco sobre mira, ao mostrar as implicações da produção de seu olhar? Ao mostrar o branco como agente do sofrimento, contestava-se a ordem social de uma perspectiva racialista, pois só se pôde criar o negro criando um branco pelo qual pode se tomar uma referência.
No texto de 1974 citado acima, Nascimento, vale lembrar, antes de Xica da Silva já refletia:
“A todo momento o preconceito racial é demonstrado diante de nós, é sentido. Porém como se reveste de uma certa tolerância, nem sempre é possível percebermos até onde vai a intenção de nos humilhar existiu. De certa forma, algumas destas manifestações já foram inclusive incorporadas como parte nossa. Quando, entretanto, a agressão aflora, manifesta-se uma violência incontida por parte do branco, e mesmo, nestas ocasiões (…) Temos, vamos dizer, uma atitude de amor e ódio por nós mesmos; a presença o confronto com o outro nos incomoda também.” (NASCIMENTO, 2007, p. 93).
No final, não foi o próprio cinema brasileiro, que, realizado, divulgado e comentado hegemonicamente pelos „brancos‟, da perspectiva de Nascimento, tornara-se o “outro” do povo negro? Estamos em frente a um dos aspectos da complexa elaboração de imagens de humilhação e afirmação sobre a subjetividade no Brasil setentista, no qual, a opção racial produz um deslocamento na cultura visual.
Últimas considerações
O que depreender de tudo isso? Inicialmente que ao acompanhar as reações às imagens de Xica da Silva, nos anos 1970, observamos a sistematização de uma nova classificação racial no Brasil, a qual se realiza na positivação do pólo negro do espectro racial, e da transformação da raça em vetor político. Isso implicou, e aqui está o interesse por essa pesquisa, em contrapor às imagens do cinema, discursos os quais poderiam vê-las ao contrapelo.
Ainda que o campo cinematográfico, ao contrário do que advogava os intelectuais negros, não estivesse simplesmente reproduzindo estereótipos e o objetivo de Diegues (essa também foi a interpretação dominante de boa parte dos críticos e jornalistas sobre Xica da Silva) fosse fazer da imagem do negro e sua cultura formas políticas capazes de apontar novos rumos para a nação10, sua produção na atendeu a uma importante demanda social daquele momento.
Oferecendo outra forma de politização e partindo de sinais fornecidos pela cultura visual explícita de sua época, os produtores e produtos do cinema foram transformados em alienadores na retórica anti-humilhação de Nascimento, elaborada a partir de um prisma racial. Como um novo padrão numa área em que sua atuação era difusa, a raça “cardeal” surgia quando o olhar branco humilhador era identificada na imagem humilhante do cinema, contra a qual o negro regira com vigor no desmantelo de suas próprias limitações. Com a imagem branca humilhante, surgiu o negro humilhado, agora esforçando-se para contra-atacar a fonte de seu rebaixamento.
Observa-se um traço importante de mudanças nas afetividades políticas brasileiras, na medida em que se deslocou a maneira de lidar com o problema do negro pela aceitação (ou invenção?) da existência da humilhação, do constrangimento e do rebaixamento contido nas imagens do negro vistas por meio do olhar identificado como “branco”. Movimento este que se resolve dolorosamente nas polêmicas e disputas, materializadas nos discursos veiculados na imprensa, que são a forma social da rejeição desta humilhação. Isso demonstra, como coloca Pierre Ansart, que os agentes humilhados (Nascimento) são produtores e produtos do processo de afirmação da dignidade, rejeição da “temporalidade tal como construída pelo poder” (ou pelo que identificam como poder), opondo-lhe um “outro tempo” e restaurando um futuro ao qual tentam “impor sua própria temporalidade” (ANSART, 2005, p. 20).
Compreendendo-se que se a cultura política é repleta de um conjunto de atitudes e sistemas de classificação e hierarquização pela qual, num dado contexto, os sujeitos atualizam, reproduzem e modificam sua relação com o campo político, e que tais padrões são mutantes e sofrem influências de inúmeros campos sociais, pode-se entender que o cinema criou imagens que ancoraram o imaginário brasileiro sobre o negro, mas suscitou disputas que permitiram a emergência de novas categorias culturais que foram imaginadas e consideradas como formas políticas. A atualização da “raça” fora uma alteração na sensibilidade social que aponta para uma nova sensibilidade política, um traço das culturas políticas brasileiras que começaram a se formar no regime militar.
Expandindo a questão da racialização como componente afetivo político que se constitui na relação com a cultura visual, ficou-nos evidente que o conjunto das imagens disponíveis nos eixos de produção e comunicação cinematográficos foram problematizadas pela reação a essas mesmas imagens, observadas aqui nas palavras de Beatriz Nascimento ao filme Xica da Silva. Ulpiano Meneses (2003) já havia chamado atenção aos campos temáticos dos estudos históricos da visualidade, divididos didaticamente entre visível (em relação com os sistemas de poder que torna algo visto ou não visto), visual (campo da comunicação e o conjunto das imagens disponíveis na cultura) e visão (dispositivos de visão e estruturas cognitivas). O processo de ressignificação de imagens cinematográficas como imagens da humilhação raciais expostas acima, processou-se pela investigação do mundo visível, daquilo que numa sociedade é mostrado, mas não pensado, a raça negra.
Do ponto de vista de alguns agentes sociais, a exegese das imagens do cinema, racializadas, repensou-as como produções do campo visível que mostrava o negro, mas não conferia especificidade. Tratar-se-ia de um “roubo – branco – da imagem negra”. A retórica da humilhação marcou uma hipersensibilidade crescente naquele momento histórico com a falta de poder da parte de alguns representantes dos movimentos sociais negros (aos quais Beatriz Nascimento estava associada) para controlar a própria representação. Como já colocaram Robert Stam e Ella Shohat (1995), essa assimetria costuma gerar ressentimento.
Contudo, ao denunciar os limites do campo visível da sociedade brasileira, Nascimento, transforma o negro racializado numa alegoria (no sentido de representante metafórico do campo semântico da palavra/imagem negro11) e as interpretações das imagens dos negros produzidas no Brasil passaram a ser pensadas pelo “fardo da representação”, que se manifesta, inicialmente, pela denuncia dos estereótipos raciais. Todo negro num filme torna-se, segundo este prisma racial, sinal de uma subrepresentação que visualiza o negro, mas invisibiliza a raça, tornando não apenas mister, mas um dever social, uma discursividade para criar contra-imagens e denunciar um dispositivo branco de humilhação.
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Fonte: asc-cybernetics.org
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