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[Conteúdo] Reforma antimanicomial no Brasil: do horror aos dias de hoje

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7 minutos de leitura

Entrevista de Paulo Amarante, coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ENSP/Fiocruz) ao FioTec

Atualmente muito se fala sobre depressão, mas, além dessa, há outras pautas tão importantes quanto na agenda da psiquiatria. Em um passado não tão distante, pessoas com transtornos mentais recebiam tratamento considerado absurdo e obscuro dentro de hospitais psiquiátricos brasileiros. Segundo o livro “(Colônia) – uma tragédia silenciosa”, homens e mulheres eram submetidos a condições sub-humanas, perdiam o direito à cidadania e eram amontoados em hospitais superlotados que usavam de tratamentos violentos que, muitas vezes, resultavam em morte – os cadáveres eram vendidos para laboratórios de anatomia de universidades. Há registros de pelo menos 60 mil mortes entre homens, mulheres e crianças em hospitais psiquiátricos brasileiros.

Além disso, há também casos em que pessoas sem transtornos mentais foram internadas apenas para serem afastadas do convívio social, por inúmeras razões. O coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ENSP/Fiocruz), Paulo Amarante, foi pioneiro na luta contra esses abusos. Como consequência, junto a mais dois amigos, chegou a ser demitido de seu emprego e dali em diante começou uma longa história de lutas e vitórias na busca da reforma antimanicomial brasileira.

Paulo – que também foi um dos organizadores do livro “(Colônia): uma tragédia silenciosa”, ponto de partida para outras obras sobre os absurdos dos hospícios brasileiros – conta um pouco de sua experiência de vida na psiquiatria e como está a situação brasileira na área.

Você participou da reforma antimanicomial no Brasil após a década de 70. Como foi sua participação nesse movimento?

Fiz a primeira denúncia com mais dois colegas sobre a situação de violência e abandono dos manicômios e essa denúncia deu origem a nossa demissão [Paulo refere-se ao ano de 1978, quando trabalhou na Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam) e notou ausência de médicos nos plantões, deficiências nutricionais nos internos e violência (a maior parte das mortes causada por cortes, pauladas, não investigadas e atribuídas a outros pacientes), e investigou essas situações, incluindo a denúncia de presos políticos internados nestes hospitais. Após sua demissão, um abaixo-assinado foi organizado, o que culminou na demissão de mais 263 pessoas e gerou a chamada “crise da Dinsam”. Informações retiradas da Revista Radis]. Em razão disso, teve início uma corrente de solidariedade que acabou culminando no Movimento de Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM) e, depois, no Movimento de Luta Antimanicomial.

A reforma psiquiátrica brasileira começou nos anos 70 e eu participei desde o primeiro momento. É o projeto mais importante da minha vida. O tempo todo eu me dediquei a isso, enquanto formador, enquanto pesquisador e enquanto militante. Dediquei-me exclusivamente a formar profissionais nesse novo cenário, a formar conhecimento e a produzir pesquisas. Como militante participei do Conselho Nacional de Saúde Mental e de outros espaços, representando o movimento social.

A primeira grande denúncia realizada sobre os hospitais psiquiátricos, nesse nível de mídia, foi feita no filme “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton, logo após a segunda vinda do Franco Basaglia (famoso psiquiatra italiano que promoveu uma importante reforma no sistema de saúde mental) ao Brasil. Depois disso, nós fizemos uma grande denúncia no livro “(Colônia): uma tragédia silenciosa”, do qual eu fui um dos organizadores e editores junto com o Jairo Toledo Furtado.

No final dos anos 80 surgiram os primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que funcionavam como uma “alternativa” aos manicômios. Como era esse trabalho e qual o papel do CAPS atualmente?

O surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), e também dos Centros de Referência em Saúde Mental (Cersam), foi um momento fundamental na virada dos anos 80 para os 90, quando nós criticávamos o modelo manicomial, mas não tínhamos práticas assistenciais alternativas. Foi a partir deles que começou a ser possível demonstrar que era viável tratar um paciente grave fora dos manicômios, em regime aberto, vinculado à família e ao trabalho, e envolvido em outras atividades.

Aqui no Brasil o Caps foi revolucionário. Um novo serviço que começou a tratar de maneira intensiva as pessoas com necessidades muito fortes. Mas ao contrário do hospício, elas não ficavam isoladas e esquecidas e, ao contrário dos ambulatórios, não era uma simples prescrição médica periódica. Os centros davam uma atenção cotidiana, com leitos para situações de emergência. Ao contrário do que muitos pensam, a luta antimanicomial não é contra a internação; é contra a internação naqueles modelos de segregação permanente a que as pessoas eram submetidas.

Atualmente, nós temos no Brasil cerca de 2.500 Caps. A maioria mudou o cenário da assistência da saúde mental, contribuiu para retirar muitas pessoas de instituições psiquiátricas ou evitou que muitas pessoas fossem internadas nesses lugares. São trabalhos abertos, em residências, com atendimento de turno, multiprofissional, ligado à família e ligado aos recursos da comunidade.

Muito se fala nos dias de hoje sobre o “mal do século” – que seria a depressão. De acordo com as últimas estimativas da OMS, mais de 300 milhões de pessoas vivem com depressão, um aumento de mais de 18% entre 2005 e 2015. Você acredita que a depressão é mesmo uma das principais vilãs da saúde atualmente? E a que se deve esse aumento tão grande?

A questão da depressão é emblemática para o debate que chamamos de “patologização da vida cotidiana” ou de “medicalização”. Os transtornos mentais têm uma elasticidade muito grande e uma falta de precisão diagnóstica. Uma situação de vida e de crise – como uma pessoa desempregada ou uma pessoa que passou por uma separação, ou por um luto, por exemplo – pode facilmente ser vista como uma doença. E não é, necessariamente. A depressão, a tristeza, a perda e o luto são processos comuns à vida e devem ser enfrentados. Inclusive, é muito importante que a pessoa “elabore o luto” – é assim que nós costumamos dizer, elabore uma rejeição e supere uma crise para ir além.

A psiquiatria atualmente transforma tudo em doença e, desta maneira, dá também uma concepção de que doença mental é um transtorno neuroquímico e que, portanto, o tratamento é a correção desse transtorno. Em geral, este tratamento é feito a partir de técnicas e de usos de psicofármacos e, algumas vezes, de psicoterapias e outros tratamentos. Nestes casos, retira-se da pessoa essa visão mais ampla de que ela passa por uma crise, da análise das situações que ela está vivenciando, e transforma isso em depressão. Nesse sentido, essas experiências de sofrimento e de dificuldade de lidar com essas demandas acabam sendo individualizadas por serem considerados transtornos individuais. É preciso entender que doenças são alterações bioquímicas no sujeito e não são um processo que, muitas das vezes, é coletivo nas grandes cidades, como em situações de catástrofe, de crise econômica e crise política. Nesses casos, não é uma questão de recuperação do indivíduo exclusivamente, mas sim de entender que, enquanto processo, eles são ligados à saúde coletiva, transcendem o campo da saúde e partem para questões que são de ordem econômica, de ordem política, algo mais geral.

Em dezembro de 2017, foi aprovada a reformulação da política de saúde mental do País. O novo modelo reforça o papel de hospitais psiquiátricos, que voltam a fazer parte da rede de atendimento. Qual sua opinião sobre a decisão e como isso influencia no trabalho de vocês?

Esta política foi aprovada por intermédio de portarias, ou seja, contrária a todo o processo de formulação das políticas públicas de saúde no Brasil – desde a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que implica em conferências e em conselhos de saúde – foi uma política aprovada dentro de uma estratégia específica de um regime de exceção democrática que estamos vivendo. Este é um retrocesso muito grande e acredito que a sociedade precisa resistir.

A reforma psiquiátrica brasileira é um avanço internacionalmente reconhecido por organismos, universidades e instituições. Inclusive, autores de livros e trabalhos já declararam o quanto que a experiência do Brasil é importante. O fato de ela não ter sido plenamente desenvolvida, com todas as suas possibilidades, não é justificativa, em hipótese alguma, para que ela seja interrompida; ao contrário, ela deveria ser ampliada.

FONTE:  fiotec.fiocruz.br

Conteúdo relacionado à Alienação e liberdade – escritos psiquiátricos.

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