Publicamos a matéria do Correio da Manhã que relata a viagem científica do geneticista russo Nikolai Ivanovich Vavilov, realizada no Brasil entre dezembro de 1932 e janeiro de 1933.
Da Universidade de Cornell, onde presidiu um Congresso Internacional de Genética, o professor N. I. Vavilov, diretor do Serviço de Industria Vegetal da U.R.S.S., iniciou sua viagem pelo continente americano. Depois de percorrer todas as províncias do Canadá e a maior parte dos Estados Unidos, o professor Vavilov, descendo pela costa do Pacifico, contornou a América do Sul, achando-se atualmente no Pará, daí devendo seguir para Trinidad e Porto Rico e regressar a Moscou, via Nova York.
Nicolau Ivanovitch Vavilov nasceu em Moscou em 26 de novembro de 1887. Diplomado em 1911 pela Academia de Ciências Agrícolas de Moscou partiu em 1911 para a Inglaterra, tendo trabalhado como assistente do sábio professor Bateson. Em 1913 publicou o professor Vavilov o seu primeiro trabalho devotado ao estudo da imunidade das plantas contra as doenças infecciosas. Em 1918, 1920 e 1922, três novos trabalhos vieram á luz e, com eles, a lei das séries homologas na variação que abriu novos horizontes ás pesquisas genéticas e que é hoje mundialmente aceita. O ultimo trabalho do professor Vavilov, publicado em 1926, expõe uma nova teoria sobre as bases botânicas e geográficas do melhoramento das plantas bem como o problema momentoso da origem das plantas cultivadas.
O professor Nicolau Ivanovitch Vavilov é considerado a maior autoridade em questões de economia agrícola, assim como em genética e fitogeografia. Presidente da Academia de Ciências Agrícolas de Leningrado, presidente da Sociedade de Geografia da U.R.S.S., diretor do Instituto de Industria Vegetal, diretor do Laboratório de Genética da Academia de Ciências da U.R.S.S., Alemanha e da França, membro da Sociedade de Botânica e de Genética da Inglaterra, editor da revista de “Applied Botany, Genetis & Plant Breeding”, o professor Vavilov é um sábio de universal e indiscutível competência.
No intuito de transmitir aos seus leitores a opinião do professor Vavilov sobre assumptos relacionados com a economia brasileira bem como de obter informes sobre o desenvolvimento agrícola e cientifico da U.R.S.S., o “Correio da Manhã” entrevistou o ilustre cientista, que assim se externou sobre alguns pontos de palpitante interesse para o nosso país:
UMA VIAGEM DE ESTUDOS
“— Estou empreendendo uma viagem científica para estudar os novos métodos culturais empregados na Agricultura mundial. Nestes últimos dez anos percorremos todas as regiões agrícolas do mundo tendo, somente eu, visitado 50 países. Com essas excursões, obtivemos valiosíssimas coleções que, hoje, são as mais importantes do mundo. De trigo, para só citar um exemplo, possuímos 30.000 amostras vivas, oriundas de todos os países. Esse material enorme servirá de base para o trabalho de seleção e numeração das variedades que constituem o segredo da agricultura moderna.
Na minha viagem pela América do Sul, o que sobretudo me impressionou foram as riquezas naturais inexploradas e a enorme capacidade de expansão da área cultivada e da população. Pode-se dizer que até agora o homem mal arranhou o continente sul-americano. Somente 3½% do solo brasileiro é cultivado.
Na minha estadia no Brasil, visitei todos os grandes centros de cultura cientifica e de realizações agrícolas. Os institutos brasileiros de medicina experimental são famosos no mundo e indicam claramente que é possível dar idêntico desenvolvimento a outros ramos científicos atualmente pouco eficientes. O Brasil tem compromissos enormes no progresso da humanidade. Pressinto que a agricultura mundial do futuro será a dos países tropicais e, entre estes, o Brasil ocupa o primeiro logar.”
A FLORA
“— No estrangeiro o Brasil é particularmente conhecido pelos estudos botânicos que aqui se realizaram e se realizam. Nenhum país do mundo possui sobre a sua flora obra semelhante á de Martius que é o trabalho mais monumental que jamais foi feito sobre esta especialidade. A região amazônica continua a ser estudada e, pouco a pouco, vaie-nos revelando aspectos de importância capital.
Passei o dia de Natal na Estação Biológica do Alto da Serra dirigida pelo Dr. Hoehne, de São Paulo. É o paraíso dos naturalistas e mais interessante que as Estações de Buitenzorg e de Ceilão. Essa instituição me pareceu magnifica para estudos da flora brasileira. Muito lastimei não me ter sobrado tempo para visitar a Estação Biológica do Itatiaia que possui condições de altitude muitos raras e onde o campo para estudos ecológicos e fitogeográficos é inestimável.
A riqueza do Brasil em florestas é, quantitativa e qualitativamente, insuperável, podendo-se, esmo, afirmar que, aqui, o problema florestal tem tanta importância quanto o agrícola. No nosso país já existe um Ministério das Florestas e, no entanto, nesse ponto de vista, as possibilidades brasileiras são maiores que as nossas.
Reparei que o trabalho botânico brasileiro deve ser ativado, e centralizado. Um quarto das espécies vegetais conhecidas no mundo, ou sejam 60.000, ocorrem no Brasil. As bases genéticas de plantas mundialmente cultivadas como o algodão, o milho e a batata, encontram-se certamente, no território brasileiro É preciso descobri-las. Os óleos vegetais e os hidratos de carbono são substancias cuja importância, na alimentação animal, cresce de dia para dia e, ainda nesse ponto de vista, nenhum país pôde concorrer com o Brasil.
No Museu Nacional, cujas magnificas coleções examinei, vem sendo realizado um trabalho de muita utilidade no sentido de explicar o desenvolvimento e a marcha da cultura na América do Sul.
AS ORGANIZAÇÕES DE AGRICULTURA CIENTÍFICA
Em Campinas, visitei o Instituto dirigido pelo dr. Camargo, cujas pesquisas em química agrícola e em fisiologia vegetal são clássicas, mesmo na Europa. Há pouco, foram lá iniciados estudados e pesquisas de genética, parecendo-me, no entretanto, que essa ciência requer um desenvolvimento muito maior. Fiquei deveras admirado ao saber que a seleção e a genética do café somente nestes últimos anos vêm sendo desenvolvidas. Há um século, seguramente, que o café representa a economia brasileira; é tempo, portanto, de iniciar estudos genéticos que lhe assegure, no futuro, a primazia de que hoje goza. A qualidade do produto exportável é, hoje em dia, um fator econômico primordial. A seleção vegetal não se faz nas fazendas, nem nos congressos, nem nos armazéns portuários, mas sim nas Estações Experimentais. Essa verdade foi descurada no Brasil.
Ainda em São Paulo, visitei a Escola Agrícola de Piracicaba, cuja organização muito me agradou.
O Serviço do Algodão do Rio, que visitei detidamente em companhia do dr. A. Franco, pareceu-me a única organização federal especializada, fortemente articulada, com estações experimentais distribuídas pelas zonas algodoeiras. A Estação Experimental de Itaocara, no entanto, figurou-se pouco desenvolvida. As possibilidades da cultura algodoeira no Brasil são imensas. O melhor algodão do mundo – há muito cultivado no Egito e, ultimamente, introduzido na U.R.S.S. – é autonomicamente brasileiro. Os fatores genéticos dessa variedade que concorre poderosamente para a fortuna do Vale do Nilo e que valorizou as nossas culturas, jazem no território brasileiro. É preciso descobri-los e utiliza-los economicamente.
Nesse ponto, o trabalho das Estações Experimentais deve visar principalmente a seleção de variedades indígenas. Não quatro, mas quarenta ou mais variedades devem ser estudadas experimentalmente, pois as condições mesológicas do país assim o exigem.
Na U.R.S.S. muito temos feito nesse sentido e a adaptação de variedades com 40 e mais mm de comprimento de fibra já é uma realidade agrícola que triplicou o valor econômico das nossas terras. Aproximadamente a metade da humanidade anda seminua e é fácil prever a importância mundial do algodão. Ainda nesse sector, a Natureza destinou ao Brasil a “leading place”. É preciso ocupá-la.
A CRISE ECONOMICA MUNDIAL
Como todos os professores no nosso país, estudei detidamente a doutrina de Marx, e, do ponto de vista dessa teoria, a crise que constrange a humanidade apenas entrou na sua fase inicial. Esta minha convicção é partilhada pelos mais notáveis economistas americanos com os quais, ultimamente, estive em contato. É preciso, pois, estudar seriamente as questões da produção internacional e da organização agrícola-industrial e, ainda sobre esse aspecto, a experiência da U.R.S.S. é de um interesse considerável. Creio que sobre esse assunto já se errou bastante, urge regular cientificamente as coordenadas internacionais da qual depende a existência normal dos povos. As barreiras alfandegarias, erguidas por uma falsa e pueril concepção de politica “soi disant” econômica, devem desaparecer. O desenvolvimento da agricultura e da indústria tem de se operar sincronizadamente com o dos centros consumidores, e o sincronismo das partes sendo função do sincronismo do todo.
Essas questões que começam a ser compreendidas constituirão o grande problema de amanhã o qual só será resolvido por condições de equilíbrio cientificamente estabelecido. Sobre esses assumptos de vital interesse para o Brasil e outros países da América do Sul, nenhum trabalho importante me foi comunicado. Os economistas receiam encarar de frente essas questões que se impõem universalmente. É tempo de estuda-las e resolve-las e o trabalho não será pequeno pois grande é a soma de erros acumulados e longa foi a indiferença ante a realidade.
A economia rural não existe na América do Sul. O Brasil, e o próprio Estado de São Paulo que produz a metade do café consumido no mundo, não possuem nenhum mapa do seu solo. A ciência agrícola está apenas esboçada e o Ministério da Agricultura nada fez, limitando-se, com relação ao aproveitamento das espécies aborígenes a repetir as experiências dos pobres índios, da era pré-colombiana. As origens genéticas do milho se encontram na América do Sul, e, no entanto, nessa cultura, o progresso realizado é praticamente nulo. Um botânico brasileiro de muita nomeada, a quem indaguei do futuro das regiões tropicais, respondeu-me que no Brasil ainda não se pensava nisso. É tempo de começar, não somente para o Brasil, mas para toda a humanidade cujos interesses essenciais se acham intimamente ligados ao assumpto.
Infelizmente, não existe no Brasil um “plano quinquenal” para a ciência e, ao meu ver, nada seria mais útil para impulsionar a agricultura e reconquistar o tempo perdido. Mesmo em caso de insucessos parciais, seriam inestimáveis os proveitos que de um plano pré-estabelecido e de uma ação em conjunto resultariam para o país, pois é incontestavelmente preferível saber como e porque um dado objetivo não pôde ser realizado em 5 anos do que continuar a não pensar nisso. Uma pequena expedição nossa que trabalhou durante 3 anos na América do Sul realizou uma série de descobertas científicas que mudaram por completo todas as nossas concepções sobre o assumpto estudado.
PROGRESSO SCIENTIFICO NA U.R.S.S.
Em nosso país, a politica é a ciência. Não foi acidentalmente que os dois maiores políticos do mundo moderno, Marx e Lenine, foram grandes sábios. Nas questões praticas da agricultura e da indústria, os governantes são os técnicos: agrônomos, engenheiros, químicos, etc.
As modificações que realizamos nesses últimos anos foram radicais. 70% das propriedades acham-se unidas coletivamente; 90% das terras cultivadas o são em sectores, como o denominamos; 27 milhões de pequenas, pobres, miseráveis propriedades rurais, de 6 e 7 hectares, já iniciaram a era da agricultura mecânica especializada, unidas em sectores de 1.000 a 3.000 hectares. Do arado de madeira chegamos, em poucos anos, aos tratores agrícolas, por nós mesmos fabricados em numero de 400 por dia.
Nos três últimos anos, aumentamos de 20% o terreno cultivado que atinge hoje a 140 milhões de hectares, ou sejam 8% da superfície total. Nossa cultura algodoeira é hoje em extensão 3 vezes e, em valor, 5 vezes maior do que em 1914.
O Instituto de Industria Vegetal, do qual sou diretor há 12 anos, conta com um corpo técnico composto de 1.500 especialistas que trabalham nos diferentes ramos da botânica da economia agrícola. Nossas estações experimentais se estendem de norte até as fronteiras da Turquia e to Turquistão. A ideia fundamental do nossos Instituto é dar uma base científica e material aos serviços de emigração de plantas e de introdução na cultura de novas espécies e de novas variedades. No ultimo decênio, enviamos aos países estrangeiros, principalmente aos que foram sedes de antigas civilizações, 60 expedições científicas que descobriram na Cordilheira dos Andes, no Himalaia e na Abissínia, valiosíssimas espécies e variedades cultivadas na antiguidade. O resultado desses trabalhos acham-se publicados em monografias escritas em inglês. Nossa coleção econômica de plantas vivas atinge o numero de 400 mil variedades que são cultivadas nas nossas Estações Experimentais.
As pesquisas de fisiologia vegetal são dirigias pelo Dr. Máximo, nosso maior técnico nessa especialidade. Dentre as mais recentes descobertas, saliento, pela sua importância e aplicabilidade imediata na agricultura, um processo novo e muito simples de encurtar o ciclo evolutivo de algumas espécies, acelerando o ritmo-foto-periódico a que estão sujeitas.
Em todos os nossos serviços agrícolas, trabalha um exercito de 45 mil agrônomos especializados, distribuídos por 500 Estações Experimentais. Desses, 10 mil se dedicam a pesquisas pura e exclusivamente.
O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL
Para acompanhar, cooperando, essa formidável expansão agrícola, fez-se mister incrementar a nossa indústria. O movimento de urbanização é o índice do progresso industrial que temos realizado: a população de Leningrado, somente no biênio 1930-1931, sofreu um aumento de 400.000 habitantes. Novas cidades industriais surgem em locais tecnicamente pré-determinados.
Essas atividades febris, que agitam profundamente todo o país exigem um serviço de controle demográfico incessante para evitar que o ritmo da nossa evolução sofra os acidentes que são inelutáveis quando o desenvolvimento não se opera de conformidade com os princípios científicos. A fome, que no nosso país, como no Brasil, é resultado de secas prolongadas que assolam periodicamente determinadas regiões, vem sendo combativa nas suas causas primarias, já determinadas. Ha dois anos que não mais existe no território da U.R.S.S. um operário sem trabalho.
A CIÊNCIA E SUAS FINALIDADES SOCIAS
Para compreender nossas civilização é preciso encara-la em dinamismo sob o prisma da nossa finalidade social. Inauguramos no mundo a era da ciência. Não de uma ciência facultativa, fechada, estéril, mas sim da ciência em função social, dinâmica e obrigatória. As sessões da nossa Academia, um dos institutos científicos de maior renome no mundo, têm seu prolongamento nas fabricas para que o operário compreenda, em conjunto e sinteticamente, as finalidades econômico-sociais do seu trabalho.
A propaganda da ciência é a base de toda a nossa educação. Sem ciência não há agricultura independente, nem indústria real nem progresso. Nosso trabalho apenas se inicia e, desde já, se nos afigura enorme e sem fim, mas o que importa, o que é de relevância, é que sabemos o que fazer e como faze-lo. Em todas as direções, obstáculos se nos antepõem, mas, para ataca-los e vence-los, temos o entusiasmo que é hoje a qualidade especifica da nossa civilização.
O edifício novo da U.R.S.S. está em construção. Há muita poeira, muitos destroços amontoados e nem sempre é a todos visível o monumento que se alevanta. Breve, porém, os próprios cegos o verão. Para nós que o erguemos ele já se nos mostra magnifico.
Cumpre-me agradecer aos técnicos do Ministério da Agricultura e aos demais colegas a cordialidade com que me receberam e que jamais esquecerei. Em nome da Academia de Ciência e da Academia de Ciências Agrícolas do meu país afirmo o prazer que teremos em receber os técnicos brasileiros e com os mesmos compartilhar das pesquisas que vimos realizando sobre questões de interesse mutuo para as nossas pátrias.
Ao Dr. Lisboa, diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e aos seus assistentes, bem como ao dr. Franco, companheiros e guias que me foram, minhas saudades e minha gratidão.”
Conteúdo relacionado ao capítulo 3, A sublime arte da mímese.
FONTES: “A economia agrícola brasileira apreciada por um scientista de nome”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p.3, 07 jan. 1933.